quarta-feira, 16 de abril de 2008

HEROLD



Grandes espíritos não montam em maus cavalos - Provérbio Haitiano extraído da epígrafe do livro "Divine Horsemen" de Maya Deren
Há duas semanas atrás, antes de estourarem os protestos e as tensões em PaP, estive na cidade circulando por áreas que jamais fora antes. Nas duas vezes que estive aqui antes, apenas numa delas passei por fora de La Saline, para me dirigir ao Marche Croix des Bossales. No entanto, desta vez pude ir à Cité Soleil e sua gente. Desta vez também pude ir aos mercados do centro de PaP, o próprio Croix des Bossales, la Polite, Têt Boeuf e Marche en Fer. Nestes últimos pude ir desta vez com Herold.


Herold é uma daquelas figuras inesquecíveis, que no Brasil certamente seria um diretor de harmonia ou compositor de uma escola de samba, partideiro, militante, pessoa querida por todos na vizinhança, respeitado pelos velhos, adorado pelas crianças, enfim, essas figuras míticas que conhecemos fazendo pesquisa de campo em antropologia. Herold é o cara...


Sabe o que é sair pelas vizinhanças falando com todo mundo de Carrefour Feuilles, por Bel Air ou La Saline, favela onde ele nasceu, se criou e saiu de lá para se tornar uma figura que opera neste nebuloso meio campo entre pesquisadores, cooperantes, agências e demais figuras que estão agora e sempre estiveram no Haiti.


Formado em Psicologia Social, Herold fez questão de, após nosso passeio pelos mercados, sabendo de meu interesse no vodu, levar-me ao Bureau de Ethnologie e me apresentar lá como um pesquisador brasileiro, interessado no vodu. Disse-me que ele mesmo é um serviteur dos loas. E foi essa a mediação que me levou a entrar fundo em La Saline e conhecer alguns ougáns, mambos e hounsis (servidores dos loas) de lá.
Havíamos saído pelos mercados na segunda e terça feira de manhã. Nestes dois dias conversamos muito e marcamos encontro para domingo. Saí de Jacmel para PaP bem cedo, quase madrugada. Queria chegar na hora. Cheguei cedo ao Oloffson, onde marcamos nosso encontro, tomei um café da manhã reforçado, pois não comera nada antes de viajar. Pontualmente, às 11 da manhã ele apareceu no estacionamento do hotel, cercado das crianças de Bel Air. Parou para falar com uma francesa que trabalha em alguma agência internacional, enquanto os moleques se penduravam nos seus braços. Subiu, tomou um copo d'água, flertando com a garçonete do Oloffson e seguimos para a rua.
Na rua, paramos várias vezes para ele falar com gente da vizinhança, moleques, homens adultos, senhoras que vendem mercadorias nas ruas. Como disse a ele que não tinha um carro, pegamos um tap tap.
Antes de entrarmos nas vielas estreitas e sujas de La Saline, ele fez questão de cada vez que passávamos pelos "chefes do local" me apresentar e dizer o que eu estava fazendo lá. Para cada um, um sorriso, uma piada, uma gentileza. Fomos direto procurar Samba Papito, um músico e líder comunitário de La Saline que havia conhecido há uma semana. Herold caminha pelas vielas a passos largos, pára de repente e fala com alguém. Caminhamos mais um pouco, ele pára mais adiante para me dizer: "Este é fulano e faz isso assim, assim", "este você precisa saber quem é, para procurar mais tarde para a sua pesquisa", etc.
Encontramos Samba Papito, que almoçava um prato de arroz e feijão, com um molho. Ele juntou-se a nós para nos levar para mais dentro ainda da favela. Dali chegamos num inusitado sítio dentro da confusão da favela. Uma espécie de quintal, com uma árvore, com panos e objetos amarrados. Estava claro que aquela árvore, naquele lugar, não era uma árvore comum. As pessoas da casa se juntaram para buscar cadeiras e sentamos para conversar. Ao lado havia um poço, coisa rara nestas favelas. Ali, disseram-me, morava o esprit que montava a jovem Nadine, o mesmo que montou durante anos sua mãe, até que esta morresse e que foi herdado por Nadine. Não era nem uma árvore, nem um poço comuns. A água esverdeada do poço parecia esconder mistérios que nem comecei ainda a desvendar. Aliás, um dos nomes dados aos loas é exatamente este: mistérios.
Depois fomos procurar um outro jovem ougán. Herold sempre me apresentava fazendo várias (boas) recomendações, de que fossem atenciosos comigo. Este segundo encontro foi revelador. Sobretudo pelas coisas que se desenrolaram ao longo da semana, com os protestos. Este jovem ougán, Michel, estava acompanhado de outros jovens, que estavam intrigados com minha presença. O que quereria um brasileiro ali? Expliquei várias vezes enquanto conversávamos, mas isto não resolvia. Até que disse que eles poderiam colocar questões para mim, que pergutassem o que quisesse. Sumiram as desconfianças e sorrisos apareceram nos rostos quando disse que não era do governo brasileiro, nem da Minustah e nem estava ali em uma missão especial. Estava por minha conta, recebia uma bolsa para estudar um tema que foi de minha escolha, e tinha autonomia perante a embaixada ou qualquer agência, exceto à Capes, que financiava a minha pesquisa, mas que ela não interferia em absolutamente nada.
Daí em diante falaram muito, falaram das perseguições que o vodu sofrera ao longo da história e de seu papel na independência do país. Falaram com orgulho de Bois Caiman, o sacrifício realizado por Buckman e que deflagrou a luta de independência, e que os espíritos ancestrais estavam sempre lutando para libertar o Haiti. Falaram da fome e que os espíritos não podem resolvê-la, mas que dão força para que eles lutem para enfrentá-la. Foi uma conversa emocionante, pois era a primeira vez que via voduissants falarem numa perspectiva de luta política e de enfrentamento através de sua religião, das perseguições e dos novos inimigos, os pentecostais que perseguiam o vodu. Convidaram-me então para uma festa que vai acontecer no fim do mês de maio. Agradeci e disse que faria questão de estar lá.
Fiquei longo tempo com eles até Herold voltar, para me levar a um outro jovem hounsi e seu tio, que me falaram de várias coisas. Falaram sobretudo que trabalhavam para o bem, mas se necessário, conheciam as artes necessárias para fazer malefícios. Mas que só faziam isso como contra-magia, contra os bokô (feiticeiros). Depois o tio me mostrou que com o asson, uma cabaça coberta com miçangas e um pequeno sino, dois ougáns e/ou os espíritos podem se comunicar entre si. Convidaram-me também para uma cerimônia no fim de abril, que fariam para alimentar o loa que monta o jovem Jean.
Saímos de La Saline conversando sobre muitas coisas, Herold esclarecia algumas dúvidas e fazias certas observações que me deixavam intrigado, mas que abriam novos interesses e questões. No fim, disse-lhe que gostaria de entrevistá-lo, ao que respondeu que faria com o maior prazer.
Despedimo-nos, ele seguiu para Carrefour Feuilles e eu fui voltei para Jacmel animadíssimo, pois combinamos que voltaria na semana seguinte para visitar alguns oufós e voduissants em Bel Air. Infelizmente, a semana quente em PaP impediu que nos encontrássemos, mas fica aberta esta nova e excitante possibilidade de pesquisa.
Abraços

O DIABO E O VODU




- Le diable est especiallement fort nan peyi d'Ayiti, nan Afrique - diz Mme. Evance

- Poukisa? -pergunto

- Paske nan peyi d'Ayiti genyen anpil hougán, anpil mambo. Li sont tout serviteur des esprit. Et les esprit son le Diable! responde Mme. Evance

- Men lè le esprit Bondieu manifeste nan église protestant? Kijan ou fét pou reconnais si est yon esprit de Dieu ou le diable?

- Nan église la seul le esprit Bondieu manifeste!


Este diálogo que mescla palavras em creóle e francês foi travado por mim e a cozinheira de Laennec, Mme. Evance. Conversávamos sobre Deus e o Diabo, quando Mme. Evance disse que "O diabo é especialmente forte no Haiti e na África". Perguntei-lhe o por quê disse, ela respondeu que nestes lugares há vários "servidores dos espíritos, mas que no fundo servem ao Diabo". Provocativamente, disse a ela que os espíritos se manifestam também nas igrejas pentecostais, e como era possível reconhecer a diferença entre a manifestação de um espírito numa igreja e os espíritos que possuem as mambos e ougáns (sacerdotes vodu). Sua resposta foi seca e direta: Na igreja só se manifesta o espírito de Deus!


Mme. Evance ainda me diria que o Haiti tem muito Maçon Loge, que os maçons daqui são todos ligados ao vodu.


Levei um tempo para refletir sobre isso e lembrei do meu primeiro encontro com Valsaint. Aliás, com exceção dos ougáns de La Saline, que fizeram sempre questão de falar de seu poder mágico, mas sem tentar com isso despertar medo ou terror, às vezes até omitindo algumas informações, sempre que tenho um primeiro contato com um ougán, ele sempre insiste em tentar provocar algum medo ou terror, falando de coisas místicas ou de poderes incontroláveis. Não sei se o que ocorreu em La Saline foi diferente em função da mediação de Herold, que me apresentava como "um estudante, pesquisador de antropologia, iniciado no culto vodu brasileiro", e isto transformava a relação entre eu e ougáns como uma relação entre iguais, numa troca de conhecimentos, mas realmente nesta situação ninguém falou do diabo.


O próprio Herold já me falara de uma distinção entre os ougáns, entre "aqueles que só trabalham para o mal", para fazer "magi nwa" ou "feitiçaria", que ele chama de "macoutes", e os outros ougáns, que tem poder para fazer o mal, mas preferem trabalhar com curas espirituais (guérison), para ajudar numa "expedition" (trabalhos de contra magia) ou para obter "une chance" (sorte no jogo). O fato é que sempre se fala em "trabalhos para a mão direita e para a mão esquerda".


No meu primeiro encontro com Valsaint sempre senti que ele, de alguma forma, queria me impressionar, mostrar algo assustador ou bizarro. As fotos que coloquei na postagem anterior lembram uma história que virou piada entre alguns amigos mais próximos, quando contei que ele me mostrara um caixãozinho e perguntou se eu queria ver o que havia dentro. Como respondi que não, na época ele riu e meus amigos também se riram da história. Desta vez, quando ele falou novamente do caixão, pedi para abrir, pois queria fazer uma foto. Ele disse que o espírito estava ali, mas era invisível, que eu veria um caixão vazio, mas que o espírito estava ali.


Num outro momento, Valsaint insistia em dizer que é mesmo um servidor do diabo. Aí lhe perguntei, mas Ogou não é Saint Jacques Majeur? Ele respondeu que sim... E perguntei-lhei mas então, como é que um santo católico pode ser um servidor do diabo? Se ele serve à Ogou e ao Baron Criminel, como é que ele serve ao diabo? Ele disse que servia com as duas mãos... A esquerda e a direita. Se eu quisesse, se eu lhe pedisse, ele disse que pode matar alguém. Fazer uma expedição para fazer o mal. A escolha é minha...


Fiquei intrigado... Ele disse, o Baron é o próprio diabo! Ele é o diabo... E ria...


Naturalmente, essa idéia de relação com o diabo, tão forte aqui no Haiti, nasce exatamente de uma influência significativa do catolicismo no mundo social do vodu. Não se pode falar em vodu no Haiti sem estar olhando para o catolicismo.


Um amigo que está aqui no Haiti recebeu uma incumbência de conseguir uma imagem do loa (lwa) correspondente ao orixá de um outro amigo. Quando ele me perguntou como faria para comprar uma imagem, tal como aquelas que hoje são comuns dos orixás africanos no Brasil, respondi-lhe que ele conseguiria no máximo uma imagem de um santo católico ou teria que conseguir uma estampa ou camisa com véve correspondente ao loa. As imagens dos loas aqui no Haiti são imagens católicas. São Tiago (Saint Jacques) é Ogou, mas diferente da relação que os cariocas fazem com o Santo Guerreiro, São Jorge, e o Ogum dos terreiros, onde as coisas aparecem separadas pelos praticantes da religião (lembro a famosa frase de Mãe Menininha "Santa Bárbara não é Iansã" e o Manifesto contra o Sincretismo, assinado por diversos pais e mais de santo baianos, entre eles a própria Menininha e Mãe Stella de Oxóssi), para os voduissants não parecer haver distinção alguma.


O que espanta mais é que supostamente dentro das concepções espiritualistas africanas, o diabo não existiria. Essa acaba sendo uma questão fundamental sobre a forma que os cultos às divindades africanas assumem no contexto das Américas e do Caribe. A continuidade entre a África e as práticas religiosas daqui fica em xeque, ou a suposta defesa da pureza africana é falaciosa. Mas de outro lado, como tratar dessa memória mítica da África? Esse é exatamente o ponto. Pouco importa se na África havia ou não o diabo, importa como os contatos entre africanos e europeus e afro-americanos e europeus produziram e reelaboraram seus sistemas de crença em relação uns com os outros. Se para o candomblé no Brasil, Exu não é o diabo, o Baron Cémetiére ou o Baron Samedi estão para o diabo, como Seu Sete Encruzilhadas e Exu Caveira estão.


Mesmo com as tentativas de domesticação destes princípios operadas pela chamada "Umbanda Branca" ou "Umbanda Esotérica" (pegando um pouco de empréstimo, muito superficialmente, as considerações de Renato Ortiz em "A morte branca do feiticeiro negro"), ou as operações de perseguição que marcaram historicamente a relação das elites haitianas com o vodu, tudo nos leva a crer que se não se trata do diabo, se trata realmente de potências incontroláveis, bárbaras, que precisam sempre ser contidas.


Se no Haiti foram sempre as elites mulatas que "diabolizaram" a religião vodu, foi o racismo da classe média branca no Brasil que agiu como esse operador que constrói o discurso do diabo nas religiões africanas.


O que ninguém contava é que os agentes sociais aceitassem essa "diabolização" e reformulassem ela em termos de outras formas de exercício de poder. Poder receber e controlar o poder do Diabo é uma forma de controlar o mundo, de fazer o possível num mundo onde tudo conspira contra você. É criar uma alternativa capaz de enfrentar a miséria diária e o sofrimento que afeta diariamente o haitiano.


Mme. Evance talvez tenha razão. O diabo é forte no Haiti. Deveria sê-lo mais, porque seria capaz de enfrentar as forças de um falso deus que sempre tentou domesticar e controlar esse povo, de tirar a sua força e sua capacidade de mover a roda da história a seu favor. Foi ao lado do "diabo" que os revolucionários haitianos derrotaram a França, a Espanha e a Inglaterra cristãs, que defendiam a escravidão, a exploração do homem pelo homem e todos os males que vinham junto com a fé cristã e o capitalismo.


Abraços a todos

segunda-feira, 14 de abril de 2008

O PRESIDENTE E O PAÍS




Contei numa postagem anterior que tive um encontro mais do que casual com o Presidente do Haiti. Hoje, passando pelas ruas de Jacmel, fui abordado por estudantes e depois, encontrei M. Serge, dono de um cyber café, que falaram de Preval. Todos são unânimes em apontar que as raízes dos problemas que o país atravessa estão fundadas exatamente numa certa atitude de Préval, que se demonstra incapaz de agir e quando age não dá nenhuma impressão de que suas ações possam realmente surtir efeito.



Quanto a mim, nenhum encontro superficial pode causar alguma impressão que não seja absolutamente falsa sobre as coisas, e por mais que acreditemos que "a primeira impressão é a que fica", não poderia dizer nada de muito profundo sobre o presidente do Haiti. Mas de outro lado, os fatos que se seguiram a este encontro, toda a situação que forjou ele, o evidente confronto entre Marcelin e Préval naquele dia, velhos militantes políticos do país, o jogo de provocações mútuas que pouco podíamos entender que se desenrolava e a crise que explodiu uma semana depois permitem, como sempre digo, fazer um relato impressionista sobre o presidente. E é disso que vou falar. Vou, sem nenhum compromisso intelectual mais profundo, fazer relações entre aquele encontro e o desenrolar da crise da última semana.



Como contei, havíamos chegado de Cité Soleil, onde fomos com Marcelin, que faz lá um projeto de pesquisa/intervenção baseado nas demandas locais sobre os problemas. O projeto de Marcelin parte de uma percepção local de que, a despeito de todos os projetos de intervenção de ONGs em Cité Soleil, muito pouco aconteceu que mudasse efetivamente a vida das pessoas. As ONGs estão lá, o dinheiro chega, os projetos existem, mas Cité Soleil não avança sobre os reais problemas e, principalmente, não supera os estigmas ligados ao lugar. Isto posto, Marcelin propôs uma discussão com os agentes políticos locais, líderes, chefes de organizações populares, atores sociais envolvidos no cotidiano local, a prefeitura de Cité Soleil (sim, a maior favela do Haiti é uma cidade, com administração autônoma - seria como dizer que a Rocinha se tornasse um município). O objetivo desta discussão é organizar estes agentes e que eles proponham uma pauta de pesquisa que parta de seus próprios interesses e não dos acadêmicos ou agências de cooperação que olham e se debruçam sobre Cité Soleil.



Não sei até onde este tipo de idéia pode funcionar, mas o simples fato de ter uma idéia como essa já é bastante significativo e os resultados disto podem ser, no mínimo, muito interessantes. Poucas vezes vemos os atores sociais os quais estudamos pautarem nossas pesquisas. Voltamos ao Olofsson muito satisfeitos e animados com o que poderia acontecer no sábado, onde haveria um grande fórum. Marcelin estava elétrico quando chegamos ao Olofssoon, para que ele conversasse com Christophe Wargny, do Le Monde Diplomatique. Marcelin havia convidado-o para ir à Cité Soleil naquela sexta, porém, em virtude de sua agenda, Wargny disse que não poderia ir. Disse, no entanto, que queria conversar com ele sobre Cité Soleil.


Quando Marcelin chegou para falar com Wargny, este estava tomando um rum na varanda do Olofsson com Préval, e convidou-o a se juntar aos dois para conversar. Os outros havíamos seguido imediatamente para o quarto, onde conversávamos numa ante-sala, quando fomos chamados para descer e falar com o Presidente do Haiti. Como já contei, quase que não levo a sério o convite, afinal, o que é que o presidente do país ia querer comigo?


A conversa com o presidente foi esquisita. Esquisita pelo local, pela ausência total de protocolo, pelo inusitado de um estudante de doutorado em antropologia ser instado a falar com o presidente de um país. Há que se estranhar também o fato de estarmos sentados em uma varanda de um hotel, em Carrefour des Feuilles, uma das áreas onde nas semanas seguintes haveriam os mais pesados e violentos protestos contra o seu governo. Era inusitado que, num país onde os protestos assumiram a face que todos viram pela TV nos últimos dias, o presidente pudesse sentar na varanda de um bar ou hotel de Copacabana para conversar com amigos.


O que me incomodou especialmente foi a sua atitude quando era feita qualquer pergunta sobre os problemas dos país, sobre Cité Soleil e a pobreza violenta que ataca a maior parte dos habitantes do país. Quando perguntado sobre as organizações populares, ele apenas dizia que o "o povo prescinde do Estado para se organizar. O país tem que encontrar o seu caminho e é o próprio povo quem tem que fazer este caminho". A pergunta óbvia que nos incomodava era exatamente: Sim, presidente, e que caminho o senhor acha que o país tem que seguir? Escorregadio como uma cobra ensaboada, Preval se esquivava de qualquer resposta ou posição.


Causava até uma certa irritação suas declarações sobre o povo. Não era um desprezo ou um elitismo, mas uma espécie de indiferença, que parecia dizer algo sobre uma impotência do poder do presidente em mudar efetivamente as coisas. Não era uma indiferença prepotente, mas uma indiferença estranha, de quem conhece o drama, mas parece não mais acreditar nos instrumentos que dispõe para operar uma transformação efetiva. Não havia mau-caratismo nisso, apenas uma impotência que produz uma indiferença e uma indiferença que leva à inação.


Isso leva a pensar sobre o exercício do poder em países como o Haiti. Boa parte dos investimentos no país dependem essencialmente da cooperação internacional. A parte mais fundamental e essencial da segurança pública no país é feita pela Minustah, que ajuda a reorganizar e a dirigir a polícia nacional. É praticamente nula a capacidade de arrecadação do Estado e, com efeito, a possibilidade de investimento público é mínima. O país não tem reservas próprias de gás e combustíveis, essenciais para o funcionamento do país. O que pode um presidente fazer num quadro como este?


Nada?


Talvez, mas no mínimo, seria importante ele demonstrar vontade de fazer. Um desejo de potência que seria justamente a força capaz de fazer destas impossibilidades as armas para a criação de alternativas. Infelizmente, este não é Préval. Aliás, falta ao Haiti exatamente este tipo de líder, gente com vocação par criar um jardim de pedras em pleno deserto. Essa gente existe aqui, dispersa em meio as massas que protestam, que se matam e são mortas nestes conflitos. Pode ser que neste exato momento esteja sendo gestado no meio da massa um líder, um novo Louverture, um novo Dessalines, que possa conduzir este país à sua nova revolução.


Abraços




domingo, 13 de abril de 2008

REENCONTRO COM VALSAINT (E COM O VODU)






Depois de longo tempo, especialmente depois de voltar ao Haiti, ainda não havia procurado Avenant Valsaint, o hougan do vodu que conheci na minha primeira viagem ao Haiti. Parece estranho que tenha vindo ao país para pesquisar exatamente o vodu e que não tivesse saído em busca do tema da minha pesquisa, mesmo estando aqui há dois meses. Não acho isso, acho que antes de procurar o vodu, queria ser encontrado por ele ou encontrá-lo por acidente numa esquina do mercado, numa rua, numa conversa casual.


Foi assim, aos poucos, que fui reencontrar Valsaint.


Na verdade, não foi exatamente por causa do próprio Valsaint, mas porque conheci em PaP, na semana que estive por lá, Herold. Herold trabalha para uma série de organizações, inclusive para Unesco, ONU e para o Viva Rio. Formado em psicologia, foi aluno da Escola de Etnologia, mas sua principal característica é exatamente ser um cara que circula pelas ruas de PaP, de Carrefour Feuilles, de Bel Air, de La Saline e ser conhecido por todos nestes lugares. Cria da favela de La Saline, saiu de lá exatamente para se tornar esta figura que combina um intelectual acadêmico, com um homem que age a atua nas ruas, que faz mediações importantes para as agências internacionais presentes em PaP. Enfim, uma das muitas figuras fascinantes que conheci por aqui.


Com Herold pude não apenas andar pelos mercados de PaP, mas entrar em La Saline e conversar com alguns hougáns de lá e discutir uma série de coisas com o próprio Herold. E só assim, após ter "reencontrado o vodu", esbarrado por acaso com ele numa esquina do mercado, que pude reencontrar Valsaint.


Contarei em outro momento com mais detalhes estes dois encontros. Ficam as fotos para dar uma idéia da coisa...



Abraço


DIAS DE CALMA?


As coisas por aqui em Jacmel parecem ter retomado seu ritmo normal. Como costuma-se dizer por aqui, diferente de outras cidades do país, que têm uma certa tradição de agitação política, como Cap Haitien, Jeremie, Gonaives, Jacmel não costuma ser palco de protestos ou de ações mais incisivas no plano da política nacional do país. Mesmo entre os soldados e oficiais brasileiros da Minustah com quem tive contato, costuma-se dizer que é um lugar tranqüilo.


Os últimos dias, no entanto, pareciam dizer o contrário. Havia um clima pesado no ar, como nunca havia sentido, mesmo em 2006, quando supostamente a situação estava muito mais instável que nos dias de hoje. Há quem diga que a atual crise é justamente causada por isso, diante de um quadro politicamente estável, seria o momento de criar empregos, baixar preços, avançar em políticas de promoção social. Este clima tenso parecia se espalhar e nosso ar culpado de estrangeiros em um país ocupado, aumentava dentro de nós essa tensão.


As coisas supostamente avançaram. Mas ainda está longe de haver tranqüilidade. O primeiro ministro Jacques Edouard Alexis caiu, mas o seu substituto ainda não foi indicado. Preval é acusado constantemente de demorar a agir e de não usar os instrumentos que permitiriam baixar os preços e garantir as condições para matar a fome do povo. Pronunciamentos da ONU e dos organismos econômicos internacionais como BIRD e FMI falam que é preciso que se busque saídas para o problema da alta dos alimentos, que está provocando protestos não apenas no Haiti, mas estes podem se espalhar como um rastilho de pólvora por diversos lugares do mundo.


Ontem, achei curioso as crianças Wilkens e Kadoni, filhos de Veline, a moça que mora e trabalha na minha casa, brincarem de "Manifestation". Mas pensei em como cada pessoa por aqui tem uma opinião sobre a situação política. A política parece atravessar diariamente a vida das pessoas.


Ao mesmo tempo, as manifestações contra "La Vie Chére" combinam diferentes movimentos e correntes políticas. E essa combinação estabelece também pautas diferenciadas, com diversas clivagens. A queda do primeiro ministro, por exemplo, não interessava a alguns setores do Lavalas, antigo movimento político de J. Bertrand Aristide, que parece ser uma sombra, que paira como um fantasma sobre estes protestos. Para os estudantes, não interessa apenas a queda do atual gabinete, mas também de Preval e a saída da Minsutah. Para a maior parte da massa envolvida nos protestos, há o problema efetivo dos preços, o aumento absurdo do preço do arroz, alimento básico da dieta.


Um amigo me pediu uma vez que fizesse uma postagem definitiva sobre a Minustah. Hoje, mais do que nunca não sei o que dizer. Se de um lado, ela é uma força que garante um mínimo de equilíbrio e segurança, de outro lado, ela é um exército estrangeiro ocupando um país. Seria mais ou menos como se nós, cariocas, víssemos tropas da ONU ocuparem as favelas do Rio, porque o Estado brasileiro é incapaz de conter a violências nestas áreas. Antes que alguém apóie esta idéia, digo que sou contra, pois isto fere a autonomia e a sobreania de um povo. Logo, a soberania e a autonomia do Haiti estão em jogo neste tipo de situação. Há o fato do país não ter um exército nacional, dissolvido por Aristide em seu primeiro mandato, quando retorna ao poder em 1994, depois da derrota do golpe militar contra seu governo. A dissolução do exército parecia óbvia naquele momento, em função do grande contingente de elementos ligados à ditadura Duvalier, mas também pelas articulações destes militares contra governos constitucionais. Estes setores migraram para a Polícia Nacional Haitiana, que vem sendo renovada justamente pela ação da Minustah. O jogo é demasiado complexo para levantar opiniões superficiais.


Ontem à tarde, no entanto, mais um incidente aponta para um início de semana tenso. O assassinato de um policial da Minustah em PaP, próximo à catedral e aos mercados do centro da cidade, e as diversas versões sobre o incidente, indicam que os dias de calma estão longe de voltar. Me espanta muito saber essas coisas, pois há duas semanas passeávamos pelas ruas de PaP tranqüilos, como se o país vivesse dias paz. Na semana seguinte, vimos PaP e o país inteiro pegar fogo.


Não sei dizer exatamente o que virá, confesso que pela primeira vez no Haiti percebo a tensão que tanto se falava na primeira vez que estive aqui. Mesmo aqui em Jacmel o clima parece que pode esquentar a qualquer momento.


Vamos aguardar os próximos dias, talvez as coisas se acalmem e tudo não passe de uma crise momentânea.


Abraços a todos


quinta-feira, 10 de abril de 2008

A FORÇA INTERNACIONAL (ou "Os Haitianos e o Futebol II)




Já é fato sabido e repetido por mim que os haitianos amam o futebol...


Mas às vezes não custa chover no molhado um pouquinho para contar algumas histórias curiosas...


A primeira delas foi a nossa ida, do grupo de pesquisadores do Museu Nacional que está aqui no Haiti, a um jogo de futebol promovido pelo Viva Rio na "Praça da Paz" em Bel Air. Bel Air é um dos bairros centrais de PaP que estão tremendamente degradados, onde se estabeleceu um reduto de resistência à queda de Aristide e depois à presença da Minustah. A chegada do batalhão brasileiro mudou a relação no local, facilitando a retomada da vida do bairro e o desarmamento (?) das gangues locais. O fato é que Bel Air tornou-se uma "pacificada", chamada pela ONU de "Zona de Pós-Conflito", onde uma divisão específica da organização atua para criar as condições para a retomada da vida normal do bairro. É aí que entrou o Viva Rio, convidado pelo governo local e pela DDR, a tal divisão especial da ONU, cuja sigla significa Desarmamento, Desmobilização e Reintegração.


A ida à Bel Air, por si só, já teria sido muito interessante. Um torneio de futebol disputado entre policiais da área, times de duas escolas do bairro e um "time do Viva Rio", formado por jovens que "deixaram as armas para ajudar na pacificação do bairro". A combinação é meio esquisita e nem chega a dar a impressão que deu totalmente certo, mas já vale a pena imaginar que as tensões se transferiram para o futebol e não se transformam mais em conflitos armados. Seria mais ou menos como pacificar o complexo da Maré e marcar um jogo entre três times de zonas diferentes do complexo, controladas por facções rivais e policiais do Bope... Bem, até que não foi ruim, embora fosse sensível o clima de tensão no jogo.


Não vimos as outras partidas, apenas a decisão do torneio entre o time do Viva Rio, que venceu o time da polícia, e o Lycée Alexandre Pétion, uma das escolas mais antigas do bairro.


O jogo aliás era horroroso. Muitas entradas desleais, jogadas disputadas com virilidade execessiva, descambando mesmo para a violência. Houve um momento que um gozador na platéia que assistia disse: "E eles são o time do Viva Rio, que vem com essa história de paz...". Independente disso, os dois times eram violentos. Cartões amarelos para os dois lados logo nos primeiros minutos, mas depois o juiz esqueceu o cartão no bolso, só esquecendo de tirá-los no segundo tempo, na verdade para tirar apenas o vermelho e expulsar um jogador do Viva Rio, que já levara um cartão amarelo, por uma entrada desleal.


O gol da vitória do time Viva Rio, aliás, saiu num lance bizarro, em que o goleiro deixou passar entre as suas duas mãos e as pernas uma bola fraca, levantada na área. A bola sobrou para um atacante que empurrou-a para o gol. Um gol que foi a cara do jogo.


Entre as muitas aventuras deste dia, tive que encarar uma partida de basquete contra um dos garotos do lugar que me desafiou. Lá fui eu, com o peso de meus 40 anos mais 125 kg de carcaça. Me saí bem. Não perdi, mas pedi para parar quando os moleques empataram o jogo, porque a minha língua já estava sobre o meu umbigo...


Legal também foi ver as crianças de Bel Air e La Saline, que estavam por lá, fazendo uma algazarra incrível e conversando muito (ou pelo menos tentando fazê-lo) em créole conosco.


A segunda história é de Kenley, um haitiano daqui de Jacmel, segundo ele, como todo haitiano, "fanatic pou Brésil". Sempre que o Brasil joga, dizem por aqui que é "jou congée", dia de folga, feriado. Que é uma verdadeira loucura pelo Brasil. O gás da casa acabou e tive que sair para buscar um botijão novo. O primeiro botijão que trouxe estava com um problema, pois a válvula de segurança não funcionava, e foi Kenley que veio "atestar" para que trocássemos por outro. Enquanto esperávamos a troca conversamos sobre futebol, e ele falou de sua paixão por Ronaldô, Ronaldinhô, Kaká, Robinhô... Que os grandes times da Europa, todos têm que ter um brasileiro, pois isso os faz mais fortes...


Mas a melhor que Kenley me contou foi sobre a final da última Copa América...


Pois é, Kenley, como muitos haitianos, joga muito na borlette, apostam em brigas de galo e faz várias apostas de futebol. Entre elas esteve a Copa de 1990, quando Canniggia e Maradona derrubaram o Brasil de Lazzaroni, as Copas de 94 e 2002, esta última quando poucos acreditavam no Brasil, a Copa das Confederações 2005 e a Copa América de 2007, quando ele disse ter ganho algo em torno de US$ 2 mil, por bancar todas as apostas no Brasil, contra todos que diziam que a Argentina levaria a final da competição. Se pensarmos no quanto de dinheiro ele ganhou em apostas, num país pobre como o Haiti, é curioso. Mais curiosa é a sua coragem de apostar em um time que nem o mais ufanista e fanático dos brasileiros não levava fé.


A terceira e última história não é bem uma história... É uma constatação sobre essa força cósmica chamada CLUBE DE REGATAS DO FLAMENGO.


Pois bem, estávamos lá, próximos ao Champ Mars, indo para o Hotel Oloffson, no carro de Bello, motorista responsável por nos conduzir de Delmas para o Centro de PaP. E passando pela Rue Pétion, olhem no que eu esbarro: um cara vestindo o MANTO SAGRADO.


A história se repetia como em 2006, mas desta vez não era nem farsa, nem tragédia. Era a chance de provar o que eu disse na primeira viagem, que meus olhos não me enganavam, o sujeito vestia uma camisa do Mengão!!! E desta vez, diferente da situação anterior, estava com minha câmera!


Paramos o carro e pedi ao cara para tirar uma foto, expliquei a ele em créole que era brasileiro e rubro negro. Quando ouviu que éramos brasileiros, sorriu e me deixou fazer a foto.


Aí está ela...


Aliás, a "Força Internacional" do título não é a Minustah, mas o Flamengo, que não é Internacional, É cósmico, é sideral!!!!!


Abraços




P.S.: Ainda há tempo para amenidades no meio do fogo ateado no país...

quarta-feira, 9 de abril de 2008

FELIZ DA VIDA!!!!!!!!!!


Meus amigos,

Mesmo com um monte de problemas por aqui, hoje pude acompanhar pela internet o Flamengo jogando pela Libertadores.

O Grande Flamengo mostrou a sua força, superou a altitude, o forte adversário (que não perdia em casa desde dezembro do ano passado) e conseguiu arrancar a classificação a pulso!

Parabéns Flamengo, tu és o Maior!!!

Estou feliz e quero compartilhar com os amigos esta felicidade. Agora, é torcer para vencermos o segundo turno do Carioca e conquistar o primeiro de muitos títulos na temporada.

Abraços a todos



P.S.: Conheci dois grandes times que venceram na altitude. Foram os dois maiores times que vi jogar: O Flamengo de Zico em 1981 e a Seleção de 1982

NOU PA PÈ, NOU PAP JANN PÈ!




"Nou pa pè, nou pap jann pè!" - Grito ouvido na manifestação em Jacmel, que significa "Nós não temos medo, nós jamais teremos medo!".

"Preferimos morrer pelas balas à morrer de fome" - Fala de um manifestante de Port au Prince



Hoje, pela primeira vez desde novembro 2006, quando cheguei por aqui da primeira vez vi manifestações de rua que chegavam muito próximas da imagem que as pessoas fazem daqui. Hoje, pela primeira vez estive diante de manifestações e ações da população local face ao quadro político do país, de uma forma que ainda não conhecia pessoalmente. Ainda que de muito longe de PaP, onde as coisas assumiram realmente uma proporção intensa e violenta, exatamente no olho do furacão, as manifestações aqui tiveram também uma face um tanto assustadora, apesar de não ter havido confrontos.



O pior de tudo por aqui é saber que as notícias que chegam são as mesmas que todos recebem no Brasil. São poucas as informações. Tudo o que sei é que a situação está quente em PaP, as pessoas tentaram invadir o Palais National, houve confrontos entre manifestantes e as tropas das Minustah. Aliás, a propósito disto, algumas pessoas ficam preocupadas com as ações dos contingentes brasileiros por aqui. Podem ter certeza que nossos soldados, pelo menos pelas informações que temos, são os menos "violentos", muito embora quando julguem necessário, utilizem demasiada força. Os contingentes militares mais conhecidos pelo abuso no uso da força são exatamente os jordanianos e as tropas do Sri Lanka, justamente os que estão lotados em Léogane e Jacmel, de onde vos escrevo.



No entanto, hoje os soldados do Sri Lanka deram uma demonstração de frieza e tranquilidade diante de uma situação realmente tensa.



Em virtude das muitas notícias do dia anterior e da possibilidade de haver manifestações no centro de Jacmel, já havia entre nós a intenção de ficar em casa. Digo nós, porque no momento formamos uma equipe de pesquisadores do Brasil aqui em Jacmel, formada pelo meu orientador, Federico Neiburg, a recém doutora pelo Museu Nacional, Natacha Nicaise, e os estudantes de mestrado Flávia Dalmaso, Pedro Braun e Felipe Evangelista. Junta-se a nós o estudante de sociologia da Université d'Etat d'Haïti, da Faculdades de Ciências Humanas (FASCH), William Jean, fluente em português, que vem nos ajudando com o créole com aulas e algumas vezes como intérprete. Mas assim mesmo, de manhã cedo, saíram para a cidade Federico, Natacha, William e Felipe. Por volta das 9 h da manhã, recebi uma ligação no celular de Federico, dizendo que não devíamos descer para a cidade, pois havia muita confusão e correria. As manifestações que haviam agitado a capital do país no dia anterior chegaram à Jacmel.



Na verdade, já havíamos presenciado uma manifestação em Canapé Vert, Port au Prince, quando descíamos para visitar o centro de PaP, a zona de Bel Air, La Saline, os mercados Croix de Bossales, Polite e Têt Bouef. E realmente ficamos assustados com a multidão vindo em direção a nós, ao carro que estávamos, segurando ramos de árvores, gritando contra a fome. Seguimos descendo pela Rue Lamartinière comentando a força do movimento, a tensão que sentimos...



Voltando ao que falava antes, já em Jacmel, os que ficamos em casa, Pedro, Flávia e eu, naturalmente ficamos assustados, um pouco preocupados com o que poderia estar acontecendo. Pouco tempo depois eles voltaram, um pouco tensos, mas passando calma para nós. A coisa estava estranha, mas como disse, longe de ser como está em Port au Prince. Ficamos em casa, esperando passar o tempo, enquanto conversava com Wisler, que chegou com o pessoal. Wisler é um haitiano que conheci no ônibus de PaP para Jacmel. Muito inteligente e articulado, Wisler foi bastante simpático comigo, e hoje, quando passou lá em casa, falou de sua família, principalmente do avô, que é ougan e do tio, que depois de um AVC do avô, passou a cuidar da vida espiritual familiar.



Saímos enfim à rua, para ver o que estava acontecendo na Av. Barranquilla, muita gente passando e um ônibus atravessado, na avenida, a cerca de 100 m da esquina do Ballade, com a rua onde fica a minha casa. Voltei em casa, para me vestir e para sair para comer algo. Decidimos que íamos almoçar todos no Ballade, e como fiquei para trás, fui o último a chegar, quando vi os carros da Minustah (Missão das Nações Unidas de estabilização do Haiti), as tropas da ONU, próximas ao ônibus atravessado, parecendo que queriam tirá-lo da rota, para garantir a circulação.



Foi neste momento, pouco depois de entrar no Ballade que comecei a ouvir cada vez mais forte os gritos dos manifestantes: Nou pa pè, nou pap jann pè! Num claro desafio às tropas que continham manifestantes vindos da direção de Cayes Jacmel e tentavam tirar da rota o ônibus. Confesso que fiquei muito tenso ante um eminente conflito entre as tropas e manifestantes. Estes vinham correndo e reduziram o ritmo da marcha exatamente a cem metros do local onde estavam as tropas. E nós todos, dentro do Ballade, que fechava as portas para evitar que os manifestantes pudessem fazer algo. O responsável pela porta dizia para entrarmos correndo. Uma das meninas que trabalham lá, diziam que havia um local melhor para observar, uma espécie de varanda no alto.



Dali vimos as pessoas pegando pedras, restos de objetos de metal, carros, madeiras. Alguns vinham com pneus, e gritavam agitados. Parecia mesmo que o confronto ia acontecer. A esta altura, os soldados já haviam retirado da rua o ônibus atravessado e se posicionaram no acostamento, permitindo que os manifestantes passassem. Nossa tensão era enorme, pois de onde estávamos não podíamos ver exatamente como estavam dispostos os soldados e nem o que de fato estava acontecendo.



Estranhamente, apesar de todo o clima de violência e tensão, havia crianças entre os manifestantes, o que causava espécie. Apesar da retórica de enfrentamento, de toda a tensão no ar, muitas mulheres e crianças. Os manifestantes passaram. As tropas ficaram lá, esperando e logo depois, se retiraram, pegando uma rota por dentro da zona rural, evitando a Barranquilla. Ficamos um tanto aliviados por um tempo, mas logo após ouvimos os gritos de novo, com os manifestantes passando de volta, descendo rumo à cidade. Quando parei para olhar por uma grade, um dos manifestantes disse, de forma agressiva, algo que entendi como: não fique nos olhando... Saí, e voltei para a mesa.



Pouco depois silêncio. A rua coberta de pedras e escombros, cacos de vidro quebrados. Gente passando, indo e voltando...



Ainda não posso dizer nada sobre o que aconteceu, apenas registrar de maneira muito impressionistas aquilo que vi.



Sabemos que a foi a alta dos preços, especialmente do arroz, básico na dieta do país, que provocou essa reação violenta. Sabemos também que foi a leniência do governo, sua longa inação que levou às coisas a esta situação. Não quero fazer nenhum juízo de valor, mas confesso que depois daquele encontro com Preval, muitas coisas nas ações do povo nestes dois dias fazem totalmente sentido.



Ao mesmo tempo, é justamente a falta de meios que provoca esta inação. É estranho pensar numa nação soberana sob ocupação militar. Uma nação soberana que não tem um exército nacional, que não "detém o monopólio legítimo da violência", confiando este às forças estrangeiras da ONU. Uma nação cujos projetos para educação, saúde e coisas básicas dependem de modo extremo da cooperação internacional. Um Estado que não tem nenhum poder de definir a sua política econômica, que não tem recursos próprios para gerir a vida do país.

Estou bem, ainda um pouco preocupado, mas bem... Vamos ver o que virá. Desde já, esta é uma das experiências mais incríveis da minha vida, e o simples fato de estar aqui, com ou sem pesquisa de doutorado, já terá valido a pena.

Um abraço a todos, Paz!

Notícias frescas e reclamações...

Ok, amigos...
A despeito dos inúmeros problemas retratados na TV, da violência das imagens, estou bem. Como disse, estou em Jacmel, capital do departamento Sudeste do país, longe de todos os problemas que estão acontecendo em Port au Prince, capital do país.
Gostaria apenas de lamentar algumas reações das pessoas que estão aí no Brasil, de que eu tenho sido "frio" e "distante" nas mensagens e, quando respondo porque estou "frio", as pessoas ficam ofendidas e me chamam de "grosso".
Ando um pouco cansado de tudo. Estou há dois meses longe de casa, aprendendo a cada dia a falar uma língua difícil, que não se parece com nada que tenha estudado antes (nem com o francês), preocupado com o quadro atual de crise que aparece no país e como isso poderia intervir no futuro de minha pesquisa. Preocupado em como farei para pedir à Capes um bilhete de volta, caso as coisas compliquem ainda mais. Preocupado se vou conseguir, depois de tanto esforço para chegar, realizar a minha pesquisa aqui e sair daqui com um material capaz de produzir uma tese.
Não foram poucas as vezes que disse que há vários problemas por aqui... Não estes de agora, resultantes de uma situação de tensão política. Mas problemas de energia elétrica, de comunicação, pois não tenho internet em casa, e por telefone a ligação é cara e até uma vizinha norte-americana neurótica, que me atormenta diariamente...
Mas tem gente que acha sempre que está com os maiores problemas do mundo... Eu não sou assim, mas me permito ser duro com algumas coisas, coisas que julgo infantis e sem importância.
Por isso, quero estabelecer um compromisso com meus leitores. Não quero mais ter que falar disso, desses problemas aqui. E quando alguém me mandar um e-mail, mensagem ou scrap perguntando se estou com algum problema pessoal com essa pessoa, ela já saberá que simplesmente vou ignorar este tipo de coisa, pois tenho muito mais o que fazer. As pessoas querem atenção, eu não tenho tempo neste momento, infelizmente, para dar este tipo de atenção.
O mundo está pegando fogo em Port au Prince... Manifestações contra a fome, gente morrendo em confrontos com as tropas da Minustah e da polícia nacional haitiana, um presidente absolutamente nulo, incapaz de tomar uma atitude política diante da crise e uma rota de manifestações que tende a aumentar. Sinceramente, não temos tempo para caprichos pessoais. Com todo respeito e com todo o carinho que tenho pelos amigos, no momento, eu também estou precisando de atenção, carinho e compreensão neste momento.
Abraços a todos

quinta-feira, 3 de abril de 2008

Silêncio... Ritmo Intenso!




Amigos leitores deste blog,


Perdoem o longo silêncio do últimos dias, mas meu amigo João Marcelo (um dos 12 leitores deste blog. Sim, pelos últimos comentários alguns novos leitores se juntaram a ele) costuma dizer que quanto mais postagens no blog, menos pesquisa... Não é bem assim... Mas realmente as duas últimas semanas foram intensas e ocupadas com muitas coisas novas, contatos, idas e vindas, enfim...


Para se ter uma idéia, até com o presidente do Haiti eu estive... Não, não é gozação não... É sério...


Bem, o que aconteceu foi que na última semana de março, Jacmel esteve às escuras, com problemas no motor da usina termo-elétrica que produz energia para a cidade e, por isso, a cidade passou cinco dias na mais total escuridão. O ruim disso foi ver as coisas que comprei estragarem na geladeira, que sem corrente elétrica não fucionava. Uma lição que aprendi foi que, infelizmente, preciso fazer compras diariamente para comer.


Nesse meio tempo, com um acesso intermitente, mesmo restrito à internet, recebi uma mensagem do Federico, me convidando para ir à PaP, para uma conversa com o novo Embaixador do Brasil no Haiti, Igor Kippman, um simpático curitibano, ex-chefe da área do Caribe e América Central do Itamarati. A conversa foi ótima. Falamos de nossos projetos de pesquisa no Haiti e da relação com a Embaixada, que parece cada vez mais sólida.


Depois, fui para o Hotel Oloffson, para a festa semanal de lá, às quintas, onde toda quinta feira toca o grupo RAM, uma banda que faz um som com grandes referências ao vodu. Aliás, o Hotel Oloffson é um lugar interessantíssimo, um ponto de encontro de todos os agentes da cooperação internacional, que se encontram em sua varanda para suas reuniões de planejamento. Lá também está a base logística do Viva Rio em terras haitianas. E neste dia, tive oportunidade de conhecer o jornalista Christophe Wargny, do Le Monde Diplomatique, que já escreveu alguns artigos bem interessantes sobre o Haiti. Durante o jantar, conversamos com lele sobre o país. Wargny conheceu bem Aristide, e foi seu colaborador, antes de seu exílio nos EUA (ele mesmo diz em artigos no Diplo que Aristide, depois de voltar dos EUA, tornou-se Harry Stide). Talvez pela intensa proximidade, no âmbito do debate na imprensa internacional, Wargny tornou-se uma voz forte em oposição à Aristide. Mas a conversa com ele não foi sobre Aristide. Falamos mais sobre o Haiti em geral e sobre o polêmico (e segundo ele, "mal compreendido") título de seu livro "Haïti n'existe pas" (O Haiti não existe).


No dia seguinte, sexta feira, fui parar na reunião de planejamento do próximo encontro da Haitian Studies Association, onde pude acompanhar algumas questões burcocráticas sobre a preparação de um encontro desta ordem. Seria mais ou menos como se eu fosse convidado para o conselho organizador da ABA ou da Anpocs, para os mais familiarizados com a área de ciências sociais. Embora não pudesse opinar ou dizer qualquer coisa, já foi uma experiência interessante. Mas a sexta feira apenas começava. Pois fora para PaP com o objetivo de encontrar Herns Marcelin para ir à Cité Soleil.


Era mesmo uma oportunidade única, ir à PaP para conhecer a maior favela do país. De cara já descobri que Cité Soleil não é apenas mais uma favela. Ela é uma municipalidade, com prefeitura e administração autônomas de PaP. Mais interessante ainda foi cair com Marcelin numa reunião com alguns líderes comunitários do local. A questão principal foi descobrir como uma quantidade incrível de projetos de ONGs e da cooperação internacional não conseguem transfomar efetivamente a vida das pessoas. As lideranças locais apontavam para esta questão. E mais, descobre-se com isso, que sem uma política de Estado para atuar nestes espaços, muito pouco se pode avançar, senão pontualmente e em alguns aspectos.


Não entrei em Cité Soleil como tal, nas áreas mais internas da "cidade" e nos bairros mais pobres, fiquei apenas numa área, que pode-se dizer que é como entrar na Maré e ir por ali no centro cultural, não entrar fundo em áreas mais complicadas da favela. Mas de qualquer forma foi já um choque. Maior ainda é o choque de perceber que as pessoas têm consciência total que serão as políticas públicas de longo alcance, e não a ação pontual de ONGs que vão mudar as coisas nestes lugares. Fica a lição para o Brasil onde, segundo as notícias que recebo aqui, está recebendo um grande investimento do Estado nas principais favelas do Rio de Janeiro. Esperemos o futuro nos dizer o que virá...


Na volta ao Oloffson, cansado, porém animado, sentei para tentar escrever alguma coisa, que falasse um pouco desta experiência, pois no dia seguinte ela teria continuidade com um encontro mais amplo, organizado por Marcelin, envolvendo todos os agentes comunitários e atores políticos engajados em projetos em Cité Soleil. Este encontro visava preparar uma pesquisa que construa suas questões a partir das demandas locais. Marcelin quer estabelecer uma pauta de pesquisa a partir de uma espécie de "diagnóstico nativo", na falta de um melhor termo, sobre os problemas de Cité Soleil. Uma técnica interessante de trabalho, que pode produzir efeitos bem interessantes. Estava sem camisa, sentado numa varanda com o laptop, quando alguém fala assim em créole: "Anda, se veste que o presidente está esperando vocês!".


Claro que não dei atenção... Achei que era uma brincadeira ou que eu estava entendendo mal o créole.


Foi quando Natacha virou-se para mim e disse: "Anda Zé, se veste, que o Preval tá lá embaixo! Ele quer nos conhecer!". COMO ASSIM???? O PRESIDENTE DO HAITI QUER ME CONHECER???? CARACA!!!!!


Me vesti correndo e desci... Lá estava ele, bebendo rum numa mesa da varanda do Oloffson com Wargny e Marcelin. Escrevo depois para contar como foi... Mas foi engraçado conversar informalmente com um presidente da república de um país...


Falamos muito sobre Cité Soleil, ele porém não se empolgou de ir até lá...


No sábado de manhã, novamente Cité Soleil...


Foi emocionante ver o encontro que Louis preparou... Uma situação simplesmente fantástica, várias lideranças de lugares variados de Cité Soleil que já enfrentaram em conflitos em outras ocasiões ali discutindo como os diversos projetos de cerca de 33 ongs nunca foram capazes de promover uma mudança efetiva nas suas vidas e apontar as questões centrais para uma pesquisa sobre a vida das famílias de Cité Soleil.


Saí de Cité Soleil para buscar no Aeroporto o pessoal de nossa equipe de pesquisa que chegava do Brasil. Passeamos pela cidade um pouco, depois fomos ao Oloffson jantar e encontrar Federico e Natacha. No dia seguinte iríamos à Belair, para a final de um torneio de futebol organizado pelo Viva Rio na região... Depois também postarei algo sobre esta partida e sobre este encontro.


A agenda destes dias em PaP foi cheia... Pois nos dias que se seguiram, ainda fomos duas vezes à La Saline, uma imensa favela de PaP, próxima ao Mercado de Croix des Bossales e depois fomos na terça, antes de viajar para Jacmel, circular pelos três principais mercados de PaP, o Tèt Bouef, o Croix des Bossales e o Marché en Fer, para terminar em Belair depois deste passeio.
Contarei ainda com detalhes tudo isso em outras postagens...
Abraços a todos.
P.S.: As duas primeiras fotos são de Cité Soleil e a terceira de La Saline, no Marché Croix des Bossales