terça-feira, 22 de julho de 2008

Fabricando ditadores?

Na última postagem falei de Aristide, da minha interpretação sobre os eventos que fomentaram a sua queda. Outro dia, em uma conversa com um amigo pelo MSN, começamos a discutir sobre como o país poderia organizar um concerto de forças políticas para promover o desenvolvimento. Fiquei angustiado, pois não conseguia explicar a este amigo o que ocorre aqui. Primeiro, por uma total dificuldade de conhecer de fato quais as forças políticas que estão sob o tabuleiro, jogando. É fácil saber que Aristide e o Lavalas (seu ex-grupo político) jogam um papel decisivo, pelo seu peso como movimento de massa, no entanto, não conseguia identificar as forças políticas.
Quando faço a mesma pergunta aos meus interlocutores haitianos, as respostas são difusas, todos dizem que há partidos, mas deputados e senadores não são senão "homens de negócios, com interesses muito particulares e pouco interesse pela coisa pública". Insisto em perguntar pelo "espírito público", pela "idéia de república" e pela "democracia", alguns destes interlocutores só faltam rir de mim. No entanto, parece que há atores fortes no cenário político. Isso não impede, porém, que o país esteja sem um primeiro ministro há quatro meses.
Há coisa de alguns meses, pouco antes das manifestações políticas contra "Laviche" (La vie chère), o elevado preço dos alimentos, sobretudo do arroz, essencial na dieta haitiana, que acabaram por derrubar o ex-primeiro ministro Alexis, houve um intenso debate político em torno do fato de um senador daqui possuir dois passaportes ou, na verdade, pelo fato de ter nascido nos EUA, sendo filho de haitianos e que vive no Haiti, o que lhe possibilitou ter dupla nacionalidade. Este debate que se prolongou por semanas, no meu entendimento, levantava uma falsa questão, posto que boa parte de deputados e senadores do país estão nesta mesma situação: possuem um passaporte de outra nacionalidade. Aliás, imagino que boa parte dos ricos do país tem essa mesma condição: um pé do lado de fora do país. A polêmica acabou por cassar o tal senador, que supostamente seria um forte candidato à presidência, um grande empresário com influência significativa no ramo de telecomunicações local.
A queda de Alexis, que veio logo depois desta longa polêmica, nem mobilizou tanto senadores e deputados quanto o debates da dupla nacionalidade. Espanta, portanto, que após quatro meses, os parlamentares locais, tão empenhados em garantir a pureza das casas legislativas do país, evitando que "alguém que possa ser estrangeiro" ocupe posições chave na política do país, não demonstrem o mesmo empenho para escolher o novo primeiro ministro. Na verdade, demonstraram este "empenho" após a primeira indicação de Preval, o presidente do país, para o posto, recusado exatamente por "não conseguir provar a ascendência haitiana de seus pais".
Agora, Preval faz a sua segunda indicação, a intelectual Michelle Pierre-Louis. Logo que cheguei aqui, estive em um debate na Université Quisqueya, onde esta falara, fazendo uma interessante crítica aos processos de ocupação do país por forças militares estrangeiras e as quinze missões das Nações Unidas no país no período entre 1987 e 2008. Crítica da presença estrangeira no país, ela crê que o país deve procurar saídas para as crises sem recorrer à "ajuda" externa. Não descarta, porém, neste momento ainda a presença da Minustah. Ela inclusive destaca que todas as intervenções da ONU no país foram solicitadas pelos governos locais. Sua indicação, entretanto, tem sido contestada por alguns, com base em acusações de uma suposta homossexualidade, o que lhe impediria de ter a unanimidade dos votos no senado, essencial para sua homologação como primeira-ministra do país. Num programa de rádio cheguei a ouvir as palavras de um deputado que dizia que "ela não poderia ser escolhida, embora não tenha na da contra os homossexuais, não crê que este tipo de pessoa possa estar à frente de um país". Na câmara dos deputados, seu nome passou com maioria absoluta dos votos, com apenas um voto contra e abstenções de algumas forças políticas. Espera-se que o senado cumpra o seu papel e finalmente, após quatro meses sem governo, homologue o nome de Pierre-Louis no posto de primeiro ministro.
O título da postagem é, de fato, uma provocação...
Provocação diante de certas situações que tenho presenciado no Haiti, onde a saída pela força quase sempre se apresenta como solução possível, onde a ausência de diálogo e de uma interlocução responsável obriga alguns atores sociais a apelar para condições onde seja necessária uma imposição pela força. Quando analisei a situação que ensejou a queda de Aristide, percebi que é possível vislumbrar um quadro curioso: um presidente democraticamente eleito, que conta com forte apoio da massa, talvez da maioria da população (pobre, principalmente) do país, é obrigado a renunciar, não sem antes armar esta massa de apoiadores para garantir o exercício de seu mandato. Sua "renúncia" é cercada de controvérsias: há uma tese de um "seqüestro" que motivou sua saída do país, seus milicianos armados são líderes criminosos das favelas e bairros pobres da capital do país, Aristide é recebido por líderes da esquerda e de facções democráticas diversas como um grande líder político. Quem é afinal, Jean Bertrand Aristide?
Eu não ouso responder, continuo com dúvidas, mas cada vez mais me parece que as resistências de alguns setores a ele forjaram a criação de um ditador. Tal como acusam Chavez de populista e proto-ditador (este, aliás, grande defensor de Aristide), porque governa com mecanismos de democracia direta e popular, não seria possível pensar em Titid (como é chamado pelo povão) desta maneira? Não sei...
O que sei é que se fosse interesse das forças políticas locais articular um concerto de forças, um pacto social e político, seria essencial que um dos interlocutores fosse Aristide, que parece ser o ator político mais evidente daqueles que são colocados em cena por aqui. O amigo com quem conversava objetou sobre o papel dos intelectuais daqui. Se não é possível identificar atores no cenário político, de fato, é fácil fazê-lo entre os intelectuais. Entretanto, as clivagens entre estes são realmente perturbadoras e impossibilitam muitas vezes o diálogo.
A indicação de uma intelectual, por exemplo, não mobilizou os intelectuais daqui em sua defesa contra a onda de rumores em torno de sua vida pessoal, e foi preciso que a reação viesse de intelectuais haitianos radicados no Canadá e nos EUA, através de um documento divulgado pela imprensa, para que os que estão aqui começassem, de modo tímido a tomar uma posição. Ouvi de alguns que não dariam uma resposta a tais rumores, exatamente para não motivar o debate em torno da vida pessoal da (futura) primeira ministra. Não sei dizer se concordo com tal atitude, que mais me parecia omissão diante dos fatos. E quando perguntei sobre a sua indicação, as respostas foram sempre evasivas, pois acham que ela não tem meios (e nem competência) de implementar políticas sérias para o desenvolvimento do país.
Assim, cada vez mais percebo que as muitas clivagens no âmbito das elites, econômicas e intelectuais, entre políticos, por conta de uma permanente indefinição de quais são as reais forças que jogam o jogo da política, e a principal e maior de todas, entre estes e a maior parte da população do Haiti, impedem a possibilidade de pensar um caminho para o país, a busca de soluções para os problemas energético, ecológico, econômico e social do país. Iniciativas como a criação de um instituto de pesquisas para o desenvolvimento, uma espécie de think tank para o país, esbarram no jogo de vaidades e interesses pessoais dos diversos grupos, e não prosperam porque há uma espécie de sabotagem interna que impede qualquer projeto político-intelectual mais ambicioso de avançar.
E com isso o país perde precioso tempo e seu povo continua na mais absoluta situação de penúria...

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Pequenas histórias haitianas...

Catherine e Simone: as duas jovens e o futuro pela frente... Futuro?

Catherine e Simone são duas jovens de Jacmel, são primas. Perto da casa dos vinte anos, ambas já concluíram seus estudos secundários, no entanto, não têm muitas perspectivas sobre o que farão no futuro mais próximo... Tentar uma faculdade seria bom, no entanto, são poucas as vagas na Université d’Etat e uma universidade particular é cara. A escolha por uma faculdade em Port au Prince ainda implicaria em custos maiores, como habitação, alimentação, entre outras coisas. Isso demandaria, talvez, trabalhar enquanto cursam a faculdade. E os empregos simplesmente não existem em Jacmel e são escassos em Port au Prince. Perguntam-me se existem faculdades e empregos no Brasil, se é fácil fazer uma faculdade... Respondo-lhes que talvez... Isso depende... Mas no meu íntimo, depois de tantos anos, começo a crer que as perspectivas no Brasil para um jovem que termina o secundário, que são tão poucas, são assustadoramente maiores do que as daqui... Ambas falam de ir para “Saint Domingue” (como chamam por aqui a República Dominicana) seguindo a trilha de tios e do irmão mais velho, atrás de emprego... Para talvez não voltar...


Wilson é estudante de ciências sociais. Fala seis idiomas, entre eles o português, além do créole... Aliás, não são poucos os poliglotas por aqui. Não raro é possível encontrar gente que fala no mínimo duas línguas além do créole (normalmente o francês e mais uma, quase sempre espanhol ou inglês), é claro, entre os que possuem pelo menos o nível secundário. Wilson está no fim de seu curso. Morador de Martissant, uma das zonas mais pobres e violentas dos arredores de Port au Prince, ele gostaria de fazer um mestrado ou doutorado no exterior, mas antes precisa de dinheiro para terminar o seu curso, por isso se vira em diversos “bicos” como intérprete e tradutor para sobreviver. Sabe que só conseguirá alcançar seu objetivo se tiver uma bolsa de estudos e um bilhete para sair do país... Para sair e talvez não voltar... Seu irmão mais novo é um ativo militante de uma igreja protestante e Wilson torce para que ele siga o caminho missionário para sair do país... E, provavelmente, não voltar...


Pierre é professor de línguas... Formado em Letras e História, leciona em uma pequena escola na localidade de Carrefour Durandisse, na rota entre Leôgane e Jacmel. Pierre fala nada menos que quatro idiomas: créole, francês, inglês e espanhol. Para complementar o baixíssimo salário de professor numa escola comunitária, trabalha à tarde como moto-taxista em Jacmel. Sabe que com sua formação tem poucas perspectivas... Sonha sair do país, para, provavelmente, não voltar...


O “talvez não voltar” sempre aparece como uma possibilidade forte. Afinal, todos falam em voltar. Sobretudo, porque estas idas para o exterior têm íntima relação com o envio de dinheiro para ajudar a família que fica no país. Aliás, esta parece ser boa parte da renda da maior parte das famílias pobres do país. Desde a minha primeira chegada ao Haiti me chamaram atenção duas coisas: o imenso número de lojas de loteria popular, a “borlette”, e as casas de remessa de dinheiro Western Union, Unitransfer, CAM. Algumas destas como a Unitransfer têm tal grau de sofisticação, que oferecem além das remessas de dinheiro, remessas de alimentos, com entrega no local de moradia. A CAM oferece uma chamada internacional gratuita para EUA e Canadá para aqueles que optam por utilizar seus serviços, para confirmar o recebimento do dinheiro enviado.


Ferdinand é técnico de informática, especialista e redes e suporte. Mora já há seis anos no Canadá, em Ottawa. Vem ao país todo ano para três semanas de férias. É um apaixonado conhecedor de nosso futebol. Vem ao país especialmente para matar a saudade da comida, do calor, da amizade e de uma alegria que, segundo, ele parece cada vez mais distante do dia a dia dos haitianos.


Muitos falam de uma permanente degradação da vida e do espaço público. Alguns mais velhos, curiosamente, elogiam a ordem e a organização da vida pública sob o regime ditatorial de Duvalier. Falam até com certo saudosismo das qualidades das condições de vida e das vias públicas, do controle da ocupação das ruas, sobre o fato do país não ter problemas com o abastecimento de energia elétrica. É claro que poucos consideram os aspectos que ensejaram a explosão demográfica que concentrou um quarto da população do país na capital nos últimos vinte anos.


Já entre as classes populares de Port au Prince é muito comum encontrar gente que apóia claramente o presidente deposto Jean Bertrand Aristide. Em Jacmel, não se vê tanta gente que apóie Aristide, mas na capital é interessante notar a força que este ainda exerce tanto sobre seus partidários mais inflamados, quanto para a gente comum das ruas. Consideram que Aristide tinha uma preocupação particular com os problemas das classes populares, e que sua queda beneficiou apenas determinada parte da burguesia nacional. Entre estes, mas, sobretudo, entre uma grande parcela dos intelectuais, Aristide é quase como um conjuro, um espírito maligno, algo a ser extirpado e exorcizado do país. Não há espaço para ponderações, a conversa começa a partir do ponto de que Aristide é um inimigo do país, um ilusionista perverso, que criou, tanto perante a população local, quanto perante uma boa parcela da comunidade internacional, a imagem de um líder popular, de líder progressista.


Estas reações apaixonadas vão desde uma (pelo menos para mim, por enquanto) não comprovada ligação direta entre o ex-presidente e o tráfico internacional de drogas, que teria tido sua vida facilitada durante seu governo, até os reais escândalos que envolvem o enriquecimento pessoal de um ex-padre católico por conta dos processos de privatização das telecomunicações no país. Seu carisma, no entanto, impressiona. E estas reações apaixonadas, de parte a parte mais ainda. Há gente que acuse seus defensores de “mechants”, criminosos, que estariam defendendo o interesse das gangues violentas que explodiram nos bairros pobres em 2004 após a sua partida.


Este processo, aliás, é curioso... Dou-lhes a minha interpretação, que muito pouco tem a ver com uma “verdade dos fatos”, mas que se apóia numa percepção impressionista do processo que antecedeu a saída de Aristide e tudo que ocorreu na sua seqüência. Essa impressão se tornou forte especialmente ao assistir alguns documentários que foram no período dos últimos quatro anos. Essa percepção é corroborada através de conversas com pessoas de extração variada no país, intelectuais, militantes estudantis, “gente comum”, etc.


Os documentários que assisti se dividem exatamente por esta tensão, por este conflito em escolher um lado, e levam-nos a discutir o já tão debatido tema da neutralidade jornalística, da “verdade dos fatos”. O filme de Nicolas Rossier, um suíço radicado no Canadá, por exemplo, é questionador e polêmico para mim, porque foi um dos poucos filmes que se pergunta até onde a queda de Aristide não obedeceu senão a outros interesses que muito pouco tem a ver com a “vontade do povo”. O filme, intitulado “Haïti, un chaos interminable”, foi exibido inicialmente na TV canadense, mas depois reeditado, com cenas acrescentadas, tais como uma entrevista exclusiva com Aristide no exílio, e se encontra na internet com o nome de “Une revolution sans fin – Aristide et l’avenir incertain d’Haïti”.


Outro documentário interessantíssimo é “GNB kont Atilla”, de Arnold Antonin. Este filme mostra a interessante luta dos estudantes contra Aristide nos momentos que antecederam sua queda. Embora seja de tendência radicalmente oposta ao primeiro, é um relato bem interessante sobre toda a movimentação de setores politicamente organizados para resistir a uma suposta tentativa de golpe da parte de Aristide. A idéia de que Aristide pretendesse ficar no poder por mais do que os cinco anos constitucionalmente estipulados foi exatamente o leitmotiv da construção dos argumentos em sua oposição. O filme ilustra, a meu ver, que o medo difuso de uma suposta ditadura comandada por partidários de Aristide foi o motor da organização de uma forte resistência de diversos setores e organizou numa outra ponta resistência armada. De outro lado, o filme mostra também a organização dos estudantes e sua luta contra uma polícia violenta e despreparada e, sobretudo, contra os partidários de Aristide, os “chiméres”, chefes locais de bairros pobres e favelas, que se tornam chefes de gangues criminosas. Este é o tema de outro documentário, “The Ghosts of Cité Soleil”, exibido no Brasil como “As gangues de Cité Soleil”.


Dirigido por Asger Leth e produzido pelo rapper Wyclef Jean (ex-Fugees), o filme é um interessante relato do processo de ascensão das gangues e da queda de Aristide. Acusado por intelectuais daqui de “romantizar as gangues”, o filme mostra, no entanto, um retrato significativo do processo que tirou Aristide do poder. Do meu ponto de vista parece ser claro que Aristide não contando com uma força armada nacional, para garantir seus poderes constitucionais (as forças armadas do país foram dissolvidas por ele em seu primeiro mandato presidencial, logo após a sua volta em 1994, com o fim do golpe de Estado), não podendo confiar na Polícia Nacional Haitiana, ainda sob forte influência dos militares golpistas de 1991 e mesmo dos Tonton Macoutes, do regime de Duvalier, o presidente se vê obrigado a formar uma espécie de “guarda de segurança particular” com seus partidários mais inflamados dos bairros pobres, em especial, de Cité Soleil. Ao armar estas “gangues” dos bairros pobres, Aristide acende o estopim que vai detonar a sua queda, pois será justamente daí que virá a desconfiança sobre um projeto de se manter no poder indefinidamente.


Há ainda um estranho filme, sem créditos, sem diretor ou qualquer referência, intitulado “Aristide the Truth”, que é feito em seqüência. Pude ver apenas uma parte que diz respeito ao golpe de 1991 e à volta de Aristide em 1994, já sob o apoio de Bill Clinton e dos “marines” americanos. Sua seqüência contaria exatamente a história da volta ao poder e da queda em 2004, mas ainda não encontrei-a disponível para venda. O filme tenta ser “imparcial” ao mostrar as ambigüidades da figura de Aristide. Sua oscilação entre um discurso radicalmente contra os EUA, enquanto padre ligado à teologia da libertação, e sua volta ao poder sob os auspícios de Bill Clinton, presidente do país que combatia em seus antigos discursos. O filme também mostra as ligações entre os militares golpistas de 1991 e a famosa “Escola das Américas”, como Raoul Cedras, presidente golpista, e seus assessores foram formados nesta, assim como uma suposta influência de George Bush Pai no processo que ensejou o golpe militar. Aliás, curiosamente, o filme de Nicolas Rossier faz uma associação entre o fato do golpe de 1991 contra Aristide ter se dado no governo de Bush pai, e a queda de 2004, foi sob o governo de Bush filho. É curioso, no entanto, que uma força internacional organizada por EUA e França tenha se antecipado à formação e aprovação do mandato da Minustah pela ONU, visando “garantir o governo provisório e evitar eventuais violações dos direitos humanos no país”.


Como disse todos estes filmes levam a uma única conclusão: a ambigüidade da figura de Jean Bertrand Aristide. Sua força junto à maioria da população impressiona. Mas ao mesmo tempo, falar seu nome é como conjurar um espírito maligno. Seus partidários evitam falar, mas é evidente que eles são uma maioria significativa, ao mesmo tempo, que aqueles que são contra, fora dos círculos da elite local e dos intelectuais, raramente se manifestam, temendo reações inflamadas de seus partidários. E isto nos leva de volta a Cathy, Simone, Wilson, Pierre e Ferndinand...


O que poderia fazer estas pessoas desejarem ficar em seu país?


Não sei. Lembro que numa determinada época, era forte o fluxo migratório de brasileiros para os EUA, e ainda hoje não é nada desprezível. Mas ao mesmo tempo, vejo que ao longo dos últimos 20 anos foram inúmeros concursos públicos, a despeito dos ferozes ataques, as universidades públicas têm, não apenas aumentado o seu número de vagas, mas iniciado um controvertido processo de políticas de inclusão, o atual governo tem investido massivamente na criação de novas universidades públicas e fortalecido a pós-graduação através de bolsas e editais de pesquisa, a inclusão de setores através do consumo e do crédito às classes D e E tem propiciado uma rota de crescimento ao país, o emprego cresce, ainda que timidamente...


Penso nisso e olho para o fato de que, a despeito das várias críticas à classe política do Brasil, isto decorre de um PROJETO DE NAÇÃO. Em que pesem as críticas à má formação de nossos parlamentares, ao despreparo de nossa classe política e a uma suposta corrupção endêmica desta, todos estes problemas são contrapostos exatamente ao alto nível de uma parcela importante da elite parlamentar, à formação de quadros técnicos em alto nível nos últimos 40 anos, a uma burocracia estatal capaz de fazer a máquina pública funcionar (sim, o Estado no Brasil, funciona e muito bem em muitos aspectos) e o aproveitamento destes quadros em setores chave ao desenvolvimento do país, bem como as recentes transformações, tal como a recuperação do rumo do investimento público, sem o qual não é possível haver desenvolvimento algum.


Perguntam-me meus amigos haitianos se tem emprego no Brasil?

Não sei...


Sei que o país deles necessita urgentemente de um projeto capaz de oferecer perspectivas para eles que, mesmo que saiam, tenham como voltar e como trabalhar no país.


Este, aliás, é o problema de Ferdinand, de Pierre e de Wilson quando conseguir de formar... São técnicos formados com bom nível de preparação para serem incluídos no mercado de trabalho, no entanto, a pergunta que ocorre é qual mercado de trabalho? Ferdinand conseguiu sair para o Canadá, país que é constantemente acusado por aqui de “roubar cérebros”. Mas e os outros dois? Quais serão as perspectivas de trabalho para estes aqui no país? E as meninas, que ainda nem chegaram à universidade?


Recentemente, um rapaz me abordou numa festa junina realizada pela Embaixada Brasileira, que reuniu não apenas brasileiros que estão no país, trabalhando na cooperação internacional, na embaixada, soldados da Minustah, mas também os alunos haitianos de língua portuguesa do CEB – Centro de Estudos Brasileiros. Falando um correto português, disse: “Senhor, eu gostaria de saber como eu faço para trabalhar para Minustah. Além de falar português, eu falo espanhol e francês. O senhor pode me apresentar o chefe da Minustah?”. Sem graça, lhe sorri amarelo e disse-lhe que não podia fazer muita coisa por ele, que sou apenas um estudante brasileiro aqui no Haiti. Alguns minutos depois seria apresentado a um dos comandantes brasileiros aqui no país, que me deu um cartão e disse que o procurasse diante de qualquer problema ou necessidade.


Fiquei com o cartão na mão, pensando no rapaz... Claro que não podia mesmo ajudá-lo. Mas fiquei assustado com isso, com essa falta de perspectiva de trabalho e com essa abordagem tão direta e sincera pedindo um emprego no meio de uma festa. Em que pese o inconveniente de tal atitude, ela é no mínimo corajosa, e pensei no que leva alguém a agir de tal maneira. Não achei uma resposta.


Assim como não tenho uma resposta quando pergunto às minhas amigas Catherine e Simone o que elas pretendem fazer no futuro... Elas respondem que não sabem, e perguntam, brincando, se quero levá-las para o Brasil quando eu voltar... Respondo, também brincando, que sim... Elas talvez levem a sério sua pergunta e a minha resposta... Não sei... Tal como Aristide e todas as coisas aqui, mas talvez todas as coisas da vida, tudo é muito ambíguo...