Na última postagem falei de Aristide, da minha interpretação sobre os eventos que fomentaram a sua queda. Outro dia, em uma conversa com um amigo pelo MSN, começamos a discutir sobre como o país poderia organizar um concerto de forças políticas para promover o desenvolvimento. Fiquei angustiado, pois não conseguia explicar a este amigo o que ocorre aqui. Primeiro, por uma total dificuldade de conhecer de fato quais as forças políticas que estão sob o tabuleiro, jogando. É fácil saber que Aristide e o Lavalas (seu ex-grupo político) jogam um papel decisivo, pelo seu peso como movimento de massa, no entanto, não conseguia identificar as forças políticas.
Quando faço a mesma pergunta aos meus interlocutores haitianos, as respostas são difusas, todos dizem que há partidos, mas deputados e senadores não são senão "homens de negócios, com interesses muito particulares e pouco interesse pela coisa pública". Insisto em perguntar pelo "espírito público", pela "idéia de república" e pela "democracia", alguns destes interlocutores só faltam rir de mim. No entanto, parece que há atores fortes no cenário político. Isso não impede, porém, que o país esteja sem um primeiro ministro há quatro meses.
Há coisa de alguns meses, pouco antes das manifestações políticas contra "Laviche" (La vie chère), o elevado preço dos alimentos, sobretudo do arroz, essencial na dieta haitiana, que acabaram por derrubar o ex-primeiro ministro Alexis, houve um intenso debate político em torno do fato de um senador daqui possuir dois passaportes ou, na verdade, pelo fato de ter nascido nos EUA, sendo filho de haitianos e que vive no Haiti, o que lhe possibilitou ter dupla nacionalidade. Este debate que se prolongou por semanas, no meu entendimento, levantava uma falsa questão, posto que boa parte de deputados e senadores do país estão nesta mesma situação: possuem um passaporte de outra nacionalidade. Aliás, imagino que boa parte dos ricos do país tem essa mesma condição: um pé do lado de fora do país. A polêmica acabou por cassar o tal senador, que supostamente seria um forte candidato à presidência, um grande empresário com influência significativa no ramo de telecomunicações local.
A queda de Alexis, que veio logo depois desta longa polêmica, nem mobilizou tanto senadores e deputados quanto o debates da dupla nacionalidade. Espanta, portanto, que após quatro meses, os parlamentares locais, tão empenhados em garantir a pureza das casas legislativas do país, evitando que "alguém que possa ser estrangeiro" ocupe posições chave na política do país, não demonstrem o mesmo empenho para escolher o novo primeiro ministro. Na verdade, demonstraram este "empenho" após a primeira indicação de Preval, o presidente do país, para o posto, recusado exatamente por "não conseguir provar a ascendência haitiana de seus pais".
Agora, Preval faz a sua segunda indicação, a intelectual Michelle Pierre-Louis. Logo que cheguei aqui, estive em um debate na Université Quisqueya, onde esta falara, fazendo uma interessante crítica aos processos de ocupação do país por forças militares estrangeiras e as quinze missões das Nações Unidas no país no período entre 1987 e 2008. Crítica da presença estrangeira no país, ela crê que o país deve procurar saídas para as crises sem recorrer à "ajuda" externa. Não descarta, porém, neste momento ainda a presença da Minustah. Ela inclusive destaca que todas as intervenções da ONU no país foram solicitadas pelos governos locais. Sua indicação, entretanto, tem sido contestada por alguns, com base em acusações de uma suposta homossexualidade, o que lhe impediria de ter a unanimidade dos votos no senado, essencial para sua homologação como primeira-ministra do país. Num programa de rádio cheguei a ouvir as palavras de um deputado que dizia que "ela não poderia ser escolhida, embora não tenha na da contra os homossexuais, não crê que este tipo de pessoa possa estar à frente de um país". Na câmara dos deputados, seu nome passou com maioria absoluta dos votos, com apenas um voto contra e abstenções de algumas forças políticas. Espera-se que o senado cumpra o seu papel e finalmente, após quatro meses sem governo, homologue o nome de Pierre-Louis no posto de primeiro ministro.
O título da postagem é, de fato, uma provocação...
Provocação diante de certas situações que tenho presenciado no Haiti, onde a saída pela força quase sempre se apresenta como solução possível, onde a ausência de diálogo e de uma interlocução responsável obriga alguns atores sociais a apelar para condições onde seja necessária uma imposição pela força. Quando analisei a situação que ensejou a queda de Aristide, percebi que é possível vislumbrar um quadro curioso: um presidente democraticamente eleito, que conta com forte apoio da massa, talvez da maioria da população (pobre, principalmente) do país, é obrigado a renunciar, não sem antes armar esta massa de apoiadores para garantir o exercício de seu mandato. Sua "renúncia" é cercada de controvérsias: há uma tese de um "seqüestro" que motivou sua saída do país, seus milicianos armados são líderes criminosos das favelas e bairros pobres da capital do país, Aristide é recebido por líderes da esquerda e de facções democráticas diversas como um grande líder político. Quem é afinal, Jean Bertrand Aristide?
Eu não ouso responder, continuo com dúvidas, mas cada vez mais me parece que as resistências de alguns setores a ele forjaram a criação de um ditador. Tal como acusam Chavez de populista e proto-ditador (este, aliás, grande defensor de Aristide), porque governa com mecanismos de democracia direta e popular, não seria possível pensar em Titid (como é chamado pelo povão) desta maneira? Não sei...
O que sei é que se fosse interesse das forças políticas locais articular um concerto de forças, um pacto social e político, seria essencial que um dos interlocutores fosse Aristide, que parece ser o ator político mais evidente daqueles que são colocados em cena por aqui. O amigo com quem conversava objetou sobre o papel dos intelectuais daqui. Se não é possível identificar atores no cenário político, de fato, é fácil fazê-lo entre os intelectuais. Entretanto, as clivagens entre estes são realmente perturbadoras e impossibilitam muitas vezes o diálogo.
A indicação de uma intelectual, por exemplo, não mobilizou os intelectuais daqui em sua defesa contra a onda de rumores em torno de sua vida pessoal, e foi preciso que a reação viesse de intelectuais haitianos radicados no Canadá e nos EUA, através de um documento divulgado pela imprensa, para que os que estão aqui começassem, de modo tímido a tomar uma posição. Ouvi de alguns que não dariam uma resposta a tais rumores, exatamente para não motivar o debate em torno da vida pessoal da (futura) primeira ministra. Não sei dizer se concordo com tal atitude, que mais me parecia omissão diante dos fatos. E quando perguntei sobre a sua indicação, as respostas foram sempre evasivas, pois acham que ela não tem meios (e nem competência) de implementar políticas sérias para o desenvolvimento do país.
Assim, cada vez mais percebo que as muitas clivagens no âmbito das elites, econômicas e intelectuais, entre políticos, por conta de uma permanente indefinição de quais são as reais forças que jogam o jogo da política, e a principal e maior de todas, entre estes e a maior parte da população do Haiti, impedem a possibilidade de pensar um caminho para o país, a busca de soluções para os problemas energético, ecológico, econômico e social do país. Iniciativas como a criação de um instituto de pesquisas para o desenvolvimento, uma espécie de think tank para o país, esbarram no jogo de vaidades e interesses pessoais dos diversos grupos, e não prosperam porque há uma espécie de sabotagem interna que impede qualquer projeto político-intelectual mais ambicioso de avançar.
E com isso o país perde precioso tempo e seu povo continua na mais absoluta situação de penúria...