terça-feira, 22 de julho de 2008

Fabricando ditadores?

Na última postagem falei de Aristide, da minha interpretação sobre os eventos que fomentaram a sua queda. Outro dia, em uma conversa com um amigo pelo MSN, começamos a discutir sobre como o país poderia organizar um concerto de forças políticas para promover o desenvolvimento. Fiquei angustiado, pois não conseguia explicar a este amigo o que ocorre aqui. Primeiro, por uma total dificuldade de conhecer de fato quais as forças políticas que estão sob o tabuleiro, jogando. É fácil saber que Aristide e o Lavalas (seu ex-grupo político) jogam um papel decisivo, pelo seu peso como movimento de massa, no entanto, não conseguia identificar as forças políticas.
Quando faço a mesma pergunta aos meus interlocutores haitianos, as respostas são difusas, todos dizem que há partidos, mas deputados e senadores não são senão "homens de negócios, com interesses muito particulares e pouco interesse pela coisa pública". Insisto em perguntar pelo "espírito público", pela "idéia de república" e pela "democracia", alguns destes interlocutores só faltam rir de mim. No entanto, parece que há atores fortes no cenário político. Isso não impede, porém, que o país esteja sem um primeiro ministro há quatro meses.
Há coisa de alguns meses, pouco antes das manifestações políticas contra "Laviche" (La vie chère), o elevado preço dos alimentos, sobretudo do arroz, essencial na dieta haitiana, que acabaram por derrubar o ex-primeiro ministro Alexis, houve um intenso debate político em torno do fato de um senador daqui possuir dois passaportes ou, na verdade, pelo fato de ter nascido nos EUA, sendo filho de haitianos e que vive no Haiti, o que lhe possibilitou ter dupla nacionalidade. Este debate que se prolongou por semanas, no meu entendimento, levantava uma falsa questão, posto que boa parte de deputados e senadores do país estão nesta mesma situação: possuem um passaporte de outra nacionalidade. Aliás, imagino que boa parte dos ricos do país tem essa mesma condição: um pé do lado de fora do país. A polêmica acabou por cassar o tal senador, que supostamente seria um forte candidato à presidência, um grande empresário com influência significativa no ramo de telecomunicações local.
A queda de Alexis, que veio logo depois desta longa polêmica, nem mobilizou tanto senadores e deputados quanto o debates da dupla nacionalidade. Espanta, portanto, que após quatro meses, os parlamentares locais, tão empenhados em garantir a pureza das casas legislativas do país, evitando que "alguém que possa ser estrangeiro" ocupe posições chave na política do país, não demonstrem o mesmo empenho para escolher o novo primeiro ministro. Na verdade, demonstraram este "empenho" após a primeira indicação de Preval, o presidente do país, para o posto, recusado exatamente por "não conseguir provar a ascendência haitiana de seus pais".
Agora, Preval faz a sua segunda indicação, a intelectual Michelle Pierre-Louis. Logo que cheguei aqui, estive em um debate na Université Quisqueya, onde esta falara, fazendo uma interessante crítica aos processos de ocupação do país por forças militares estrangeiras e as quinze missões das Nações Unidas no país no período entre 1987 e 2008. Crítica da presença estrangeira no país, ela crê que o país deve procurar saídas para as crises sem recorrer à "ajuda" externa. Não descarta, porém, neste momento ainda a presença da Minustah. Ela inclusive destaca que todas as intervenções da ONU no país foram solicitadas pelos governos locais. Sua indicação, entretanto, tem sido contestada por alguns, com base em acusações de uma suposta homossexualidade, o que lhe impediria de ter a unanimidade dos votos no senado, essencial para sua homologação como primeira-ministra do país. Num programa de rádio cheguei a ouvir as palavras de um deputado que dizia que "ela não poderia ser escolhida, embora não tenha na da contra os homossexuais, não crê que este tipo de pessoa possa estar à frente de um país". Na câmara dos deputados, seu nome passou com maioria absoluta dos votos, com apenas um voto contra e abstenções de algumas forças políticas. Espera-se que o senado cumpra o seu papel e finalmente, após quatro meses sem governo, homologue o nome de Pierre-Louis no posto de primeiro ministro.
O título da postagem é, de fato, uma provocação...
Provocação diante de certas situações que tenho presenciado no Haiti, onde a saída pela força quase sempre se apresenta como solução possível, onde a ausência de diálogo e de uma interlocução responsável obriga alguns atores sociais a apelar para condições onde seja necessária uma imposição pela força. Quando analisei a situação que ensejou a queda de Aristide, percebi que é possível vislumbrar um quadro curioso: um presidente democraticamente eleito, que conta com forte apoio da massa, talvez da maioria da população (pobre, principalmente) do país, é obrigado a renunciar, não sem antes armar esta massa de apoiadores para garantir o exercício de seu mandato. Sua "renúncia" é cercada de controvérsias: há uma tese de um "seqüestro" que motivou sua saída do país, seus milicianos armados são líderes criminosos das favelas e bairros pobres da capital do país, Aristide é recebido por líderes da esquerda e de facções democráticas diversas como um grande líder político. Quem é afinal, Jean Bertrand Aristide?
Eu não ouso responder, continuo com dúvidas, mas cada vez mais me parece que as resistências de alguns setores a ele forjaram a criação de um ditador. Tal como acusam Chavez de populista e proto-ditador (este, aliás, grande defensor de Aristide), porque governa com mecanismos de democracia direta e popular, não seria possível pensar em Titid (como é chamado pelo povão) desta maneira? Não sei...
O que sei é que se fosse interesse das forças políticas locais articular um concerto de forças, um pacto social e político, seria essencial que um dos interlocutores fosse Aristide, que parece ser o ator político mais evidente daqueles que são colocados em cena por aqui. O amigo com quem conversava objetou sobre o papel dos intelectuais daqui. Se não é possível identificar atores no cenário político, de fato, é fácil fazê-lo entre os intelectuais. Entretanto, as clivagens entre estes são realmente perturbadoras e impossibilitam muitas vezes o diálogo.
A indicação de uma intelectual, por exemplo, não mobilizou os intelectuais daqui em sua defesa contra a onda de rumores em torno de sua vida pessoal, e foi preciso que a reação viesse de intelectuais haitianos radicados no Canadá e nos EUA, através de um documento divulgado pela imprensa, para que os que estão aqui começassem, de modo tímido a tomar uma posição. Ouvi de alguns que não dariam uma resposta a tais rumores, exatamente para não motivar o debate em torno da vida pessoal da (futura) primeira ministra. Não sei dizer se concordo com tal atitude, que mais me parecia omissão diante dos fatos. E quando perguntei sobre a sua indicação, as respostas foram sempre evasivas, pois acham que ela não tem meios (e nem competência) de implementar políticas sérias para o desenvolvimento do país.
Assim, cada vez mais percebo que as muitas clivagens no âmbito das elites, econômicas e intelectuais, entre políticos, por conta de uma permanente indefinição de quais são as reais forças que jogam o jogo da política, e a principal e maior de todas, entre estes e a maior parte da população do Haiti, impedem a possibilidade de pensar um caminho para o país, a busca de soluções para os problemas energético, ecológico, econômico e social do país. Iniciativas como a criação de um instituto de pesquisas para o desenvolvimento, uma espécie de think tank para o país, esbarram no jogo de vaidades e interesses pessoais dos diversos grupos, e não prosperam porque há uma espécie de sabotagem interna que impede qualquer projeto político-intelectual mais ambicioso de avançar.
E com isso o país perde precioso tempo e seu povo continua na mais absoluta situação de penúria...

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Pequenas histórias haitianas...

Catherine e Simone: as duas jovens e o futuro pela frente... Futuro?

Catherine e Simone são duas jovens de Jacmel, são primas. Perto da casa dos vinte anos, ambas já concluíram seus estudos secundários, no entanto, não têm muitas perspectivas sobre o que farão no futuro mais próximo... Tentar uma faculdade seria bom, no entanto, são poucas as vagas na Université d’Etat e uma universidade particular é cara. A escolha por uma faculdade em Port au Prince ainda implicaria em custos maiores, como habitação, alimentação, entre outras coisas. Isso demandaria, talvez, trabalhar enquanto cursam a faculdade. E os empregos simplesmente não existem em Jacmel e são escassos em Port au Prince. Perguntam-me se existem faculdades e empregos no Brasil, se é fácil fazer uma faculdade... Respondo-lhes que talvez... Isso depende... Mas no meu íntimo, depois de tantos anos, começo a crer que as perspectivas no Brasil para um jovem que termina o secundário, que são tão poucas, são assustadoramente maiores do que as daqui... Ambas falam de ir para “Saint Domingue” (como chamam por aqui a República Dominicana) seguindo a trilha de tios e do irmão mais velho, atrás de emprego... Para talvez não voltar...


Wilson é estudante de ciências sociais. Fala seis idiomas, entre eles o português, além do créole... Aliás, não são poucos os poliglotas por aqui. Não raro é possível encontrar gente que fala no mínimo duas línguas além do créole (normalmente o francês e mais uma, quase sempre espanhol ou inglês), é claro, entre os que possuem pelo menos o nível secundário. Wilson está no fim de seu curso. Morador de Martissant, uma das zonas mais pobres e violentas dos arredores de Port au Prince, ele gostaria de fazer um mestrado ou doutorado no exterior, mas antes precisa de dinheiro para terminar o seu curso, por isso se vira em diversos “bicos” como intérprete e tradutor para sobreviver. Sabe que só conseguirá alcançar seu objetivo se tiver uma bolsa de estudos e um bilhete para sair do país... Para sair e talvez não voltar... Seu irmão mais novo é um ativo militante de uma igreja protestante e Wilson torce para que ele siga o caminho missionário para sair do país... E, provavelmente, não voltar...


Pierre é professor de línguas... Formado em Letras e História, leciona em uma pequena escola na localidade de Carrefour Durandisse, na rota entre Leôgane e Jacmel. Pierre fala nada menos que quatro idiomas: créole, francês, inglês e espanhol. Para complementar o baixíssimo salário de professor numa escola comunitária, trabalha à tarde como moto-taxista em Jacmel. Sabe que com sua formação tem poucas perspectivas... Sonha sair do país, para, provavelmente, não voltar...


O “talvez não voltar” sempre aparece como uma possibilidade forte. Afinal, todos falam em voltar. Sobretudo, porque estas idas para o exterior têm íntima relação com o envio de dinheiro para ajudar a família que fica no país. Aliás, esta parece ser boa parte da renda da maior parte das famílias pobres do país. Desde a minha primeira chegada ao Haiti me chamaram atenção duas coisas: o imenso número de lojas de loteria popular, a “borlette”, e as casas de remessa de dinheiro Western Union, Unitransfer, CAM. Algumas destas como a Unitransfer têm tal grau de sofisticação, que oferecem além das remessas de dinheiro, remessas de alimentos, com entrega no local de moradia. A CAM oferece uma chamada internacional gratuita para EUA e Canadá para aqueles que optam por utilizar seus serviços, para confirmar o recebimento do dinheiro enviado.


Ferdinand é técnico de informática, especialista e redes e suporte. Mora já há seis anos no Canadá, em Ottawa. Vem ao país todo ano para três semanas de férias. É um apaixonado conhecedor de nosso futebol. Vem ao país especialmente para matar a saudade da comida, do calor, da amizade e de uma alegria que, segundo, ele parece cada vez mais distante do dia a dia dos haitianos.


Muitos falam de uma permanente degradação da vida e do espaço público. Alguns mais velhos, curiosamente, elogiam a ordem e a organização da vida pública sob o regime ditatorial de Duvalier. Falam até com certo saudosismo das qualidades das condições de vida e das vias públicas, do controle da ocupação das ruas, sobre o fato do país não ter problemas com o abastecimento de energia elétrica. É claro que poucos consideram os aspectos que ensejaram a explosão demográfica que concentrou um quarto da população do país na capital nos últimos vinte anos.


Já entre as classes populares de Port au Prince é muito comum encontrar gente que apóia claramente o presidente deposto Jean Bertrand Aristide. Em Jacmel, não se vê tanta gente que apóie Aristide, mas na capital é interessante notar a força que este ainda exerce tanto sobre seus partidários mais inflamados, quanto para a gente comum das ruas. Consideram que Aristide tinha uma preocupação particular com os problemas das classes populares, e que sua queda beneficiou apenas determinada parte da burguesia nacional. Entre estes, mas, sobretudo, entre uma grande parcela dos intelectuais, Aristide é quase como um conjuro, um espírito maligno, algo a ser extirpado e exorcizado do país. Não há espaço para ponderações, a conversa começa a partir do ponto de que Aristide é um inimigo do país, um ilusionista perverso, que criou, tanto perante a população local, quanto perante uma boa parcela da comunidade internacional, a imagem de um líder popular, de líder progressista.


Estas reações apaixonadas vão desde uma (pelo menos para mim, por enquanto) não comprovada ligação direta entre o ex-presidente e o tráfico internacional de drogas, que teria tido sua vida facilitada durante seu governo, até os reais escândalos que envolvem o enriquecimento pessoal de um ex-padre católico por conta dos processos de privatização das telecomunicações no país. Seu carisma, no entanto, impressiona. E estas reações apaixonadas, de parte a parte mais ainda. Há gente que acuse seus defensores de “mechants”, criminosos, que estariam defendendo o interesse das gangues violentas que explodiram nos bairros pobres em 2004 após a sua partida.


Este processo, aliás, é curioso... Dou-lhes a minha interpretação, que muito pouco tem a ver com uma “verdade dos fatos”, mas que se apóia numa percepção impressionista do processo que antecedeu a saída de Aristide e tudo que ocorreu na sua seqüência. Essa impressão se tornou forte especialmente ao assistir alguns documentários que foram no período dos últimos quatro anos. Essa percepção é corroborada através de conversas com pessoas de extração variada no país, intelectuais, militantes estudantis, “gente comum”, etc.


Os documentários que assisti se dividem exatamente por esta tensão, por este conflito em escolher um lado, e levam-nos a discutir o já tão debatido tema da neutralidade jornalística, da “verdade dos fatos”. O filme de Nicolas Rossier, um suíço radicado no Canadá, por exemplo, é questionador e polêmico para mim, porque foi um dos poucos filmes que se pergunta até onde a queda de Aristide não obedeceu senão a outros interesses que muito pouco tem a ver com a “vontade do povo”. O filme, intitulado “Haïti, un chaos interminable”, foi exibido inicialmente na TV canadense, mas depois reeditado, com cenas acrescentadas, tais como uma entrevista exclusiva com Aristide no exílio, e se encontra na internet com o nome de “Une revolution sans fin – Aristide et l’avenir incertain d’Haïti”.


Outro documentário interessantíssimo é “GNB kont Atilla”, de Arnold Antonin. Este filme mostra a interessante luta dos estudantes contra Aristide nos momentos que antecederam sua queda. Embora seja de tendência radicalmente oposta ao primeiro, é um relato bem interessante sobre toda a movimentação de setores politicamente organizados para resistir a uma suposta tentativa de golpe da parte de Aristide. A idéia de que Aristide pretendesse ficar no poder por mais do que os cinco anos constitucionalmente estipulados foi exatamente o leitmotiv da construção dos argumentos em sua oposição. O filme ilustra, a meu ver, que o medo difuso de uma suposta ditadura comandada por partidários de Aristide foi o motor da organização de uma forte resistência de diversos setores e organizou numa outra ponta resistência armada. De outro lado, o filme mostra também a organização dos estudantes e sua luta contra uma polícia violenta e despreparada e, sobretudo, contra os partidários de Aristide, os “chiméres”, chefes locais de bairros pobres e favelas, que se tornam chefes de gangues criminosas. Este é o tema de outro documentário, “The Ghosts of Cité Soleil”, exibido no Brasil como “As gangues de Cité Soleil”.


Dirigido por Asger Leth e produzido pelo rapper Wyclef Jean (ex-Fugees), o filme é um interessante relato do processo de ascensão das gangues e da queda de Aristide. Acusado por intelectuais daqui de “romantizar as gangues”, o filme mostra, no entanto, um retrato significativo do processo que tirou Aristide do poder. Do meu ponto de vista parece ser claro que Aristide não contando com uma força armada nacional, para garantir seus poderes constitucionais (as forças armadas do país foram dissolvidas por ele em seu primeiro mandato presidencial, logo após a sua volta em 1994, com o fim do golpe de Estado), não podendo confiar na Polícia Nacional Haitiana, ainda sob forte influência dos militares golpistas de 1991 e mesmo dos Tonton Macoutes, do regime de Duvalier, o presidente se vê obrigado a formar uma espécie de “guarda de segurança particular” com seus partidários mais inflamados dos bairros pobres, em especial, de Cité Soleil. Ao armar estas “gangues” dos bairros pobres, Aristide acende o estopim que vai detonar a sua queda, pois será justamente daí que virá a desconfiança sobre um projeto de se manter no poder indefinidamente.


Há ainda um estranho filme, sem créditos, sem diretor ou qualquer referência, intitulado “Aristide the Truth”, que é feito em seqüência. Pude ver apenas uma parte que diz respeito ao golpe de 1991 e à volta de Aristide em 1994, já sob o apoio de Bill Clinton e dos “marines” americanos. Sua seqüência contaria exatamente a história da volta ao poder e da queda em 2004, mas ainda não encontrei-a disponível para venda. O filme tenta ser “imparcial” ao mostrar as ambigüidades da figura de Aristide. Sua oscilação entre um discurso radicalmente contra os EUA, enquanto padre ligado à teologia da libertação, e sua volta ao poder sob os auspícios de Bill Clinton, presidente do país que combatia em seus antigos discursos. O filme também mostra as ligações entre os militares golpistas de 1991 e a famosa “Escola das Américas”, como Raoul Cedras, presidente golpista, e seus assessores foram formados nesta, assim como uma suposta influência de George Bush Pai no processo que ensejou o golpe militar. Aliás, curiosamente, o filme de Nicolas Rossier faz uma associação entre o fato do golpe de 1991 contra Aristide ter se dado no governo de Bush pai, e a queda de 2004, foi sob o governo de Bush filho. É curioso, no entanto, que uma força internacional organizada por EUA e França tenha se antecipado à formação e aprovação do mandato da Minustah pela ONU, visando “garantir o governo provisório e evitar eventuais violações dos direitos humanos no país”.


Como disse todos estes filmes levam a uma única conclusão: a ambigüidade da figura de Jean Bertrand Aristide. Sua força junto à maioria da população impressiona. Mas ao mesmo tempo, falar seu nome é como conjurar um espírito maligno. Seus partidários evitam falar, mas é evidente que eles são uma maioria significativa, ao mesmo tempo, que aqueles que são contra, fora dos círculos da elite local e dos intelectuais, raramente se manifestam, temendo reações inflamadas de seus partidários. E isto nos leva de volta a Cathy, Simone, Wilson, Pierre e Ferndinand...


O que poderia fazer estas pessoas desejarem ficar em seu país?


Não sei. Lembro que numa determinada época, era forte o fluxo migratório de brasileiros para os EUA, e ainda hoje não é nada desprezível. Mas ao mesmo tempo, vejo que ao longo dos últimos 20 anos foram inúmeros concursos públicos, a despeito dos ferozes ataques, as universidades públicas têm, não apenas aumentado o seu número de vagas, mas iniciado um controvertido processo de políticas de inclusão, o atual governo tem investido massivamente na criação de novas universidades públicas e fortalecido a pós-graduação através de bolsas e editais de pesquisa, a inclusão de setores através do consumo e do crédito às classes D e E tem propiciado uma rota de crescimento ao país, o emprego cresce, ainda que timidamente...


Penso nisso e olho para o fato de que, a despeito das várias críticas à classe política do Brasil, isto decorre de um PROJETO DE NAÇÃO. Em que pesem as críticas à má formação de nossos parlamentares, ao despreparo de nossa classe política e a uma suposta corrupção endêmica desta, todos estes problemas são contrapostos exatamente ao alto nível de uma parcela importante da elite parlamentar, à formação de quadros técnicos em alto nível nos últimos 40 anos, a uma burocracia estatal capaz de fazer a máquina pública funcionar (sim, o Estado no Brasil, funciona e muito bem em muitos aspectos) e o aproveitamento destes quadros em setores chave ao desenvolvimento do país, bem como as recentes transformações, tal como a recuperação do rumo do investimento público, sem o qual não é possível haver desenvolvimento algum.


Perguntam-me meus amigos haitianos se tem emprego no Brasil?

Não sei...


Sei que o país deles necessita urgentemente de um projeto capaz de oferecer perspectivas para eles que, mesmo que saiam, tenham como voltar e como trabalhar no país.


Este, aliás, é o problema de Ferdinand, de Pierre e de Wilson quando conseguir de formar... São técnicos formados com bom nível de preparação para serem incluídos no mercado de trabalho, no entanto, a pergunta que ocorre é qual mercado de trabalho? Ferdinand conseguiu sair para o Canadá, país que é constantemente acusado por aqui de “roubar cérebros”. Mas e os outros dois? Quais serão as perspectivas de trabalho para estes aqui no país? E as meninas, que ainda nem chegaram à universidade?


Recentemente, um rapaz me abordou numa festa junina realizada pela Embaixada Brasileira, que reuniu não apenas brasileiros que estão no país, trabalhando na cooperação internacional, na embaixada, soldados da Minustah, mas também os alunos haitianos de língua portuguesa do CEB – Centro de Estudos Brasileiros. Falando um correto português, disse: “Senhor, eu gostaria de saber como eu faço para trabalhar para Minustah. Além de falar português, eu falo espanhol e francês. O senhor pode me apresentar o chefe da Minustah?”. Sem graça, lhe sorri amarelo e disse-lhe que não podia fazer muita coisa por ele, que sou apenas um estudante brasileiro aqui no Haiti. Alguns minutos depois seria apresentado a um dos comandantes brasileiros aqui no país, que me deu um cartão e disse que o procurasse diante de qualquer problema ou necessidade.


Fiquei com o cartão na mão, pensando no rapaz... Claro que não podia mesmo ajudá-lo. Mas fiquei assustado com isso, com essa falta de perspectiva de trabalho e com essa abordagem tão direta e sincera pedindo um emprego no meio de uma festa. Em que pese o inconveniente de tal atitude, ela é no mínimo corajosa, e pensei no que leva alguém a agir de tal maneira. Não achei uma resposta.


Assim como não tenho uma resposta quando pergunto às minhas amigas Catherine e Simone o que elas pretendem fazer no futuro... Elas respondem que não sabem, e perguntam, brincando, se quero levá-las para o Brasil quando eu voltar... Respondo, também brincando, que sim... Elas talvez levem a sério sua pergunta e a minha resposta... Não sei... Tal como Aristide e todas as coisas aqui, mas talvez todas as coisas da vida, tudo é muito ambíguo...

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Em busca da pureza perdida?

Des Ermites: Vodu ou Católico? Ou um pouco dos dois?

Ontem, conversava por telefone com um brasileiro que está aqui no Haiti. Fotógrafo, nós havíamos tentado conversar para que eu o levasse à Des Ermites. Infelizmente, uma série de desencontros impediu que nos encontrássemos. Porém, muito gentil, ele perguntou se eu queria conhecer St. Michel du Sud, que segundo ele é um lugar de peregrinação e poderia ser muito interessante para mim. Disse a ele que infelizmente não poderia ir, pois quero estar ao máximo possível em Des Ermites, acompanhando a preparação da festa do santuário, no dia 2 de julho. Comentei que queria ir à Saut d’Eau na festa da Vierge des Miracles em 16 de julho.

Meu interlocutor disse que eu não devia ir neste dia, pois “se quisesse ver as coisas mais ‘puras’ da ‘religião mesmo’, que chegasse antes, por volta do dia 13 de julho”. Disse ainda que “a festa do dia 16 é mais ‘profana’, com gente bebendo cerveja e dançando”. Respondi-lhe que era engraçado o que ele dizia, pois como antropólogo não tinha o hábito de julgar assim as coisas que as pessoas faziam, pois não sou eu quem coloca o selo de “autenticidade” numa manifestação cultural.

Uma vez soube que um jovem antropólogo, numa espécie de auto-elogio ao seu trabalho de pesquisa, criticou o trabalho de outro antropólogo, pesquisador do candomblé, porque em seus livros sobre a música dos terreiros ele fazia as gravações em estúdio, e que do coro destas gravações participaram alguns músicos profissionais, entre eles, um cantor de samba, conhecido na noite do Rio de Janeiro. Disse ainda que suas gravações eram “autênticas” porque haviam sido feitas num terreiro, com os membros deste terreiro. O que não sabia o jovem antropólogo é que o coro que ele criticara era formado por membros de um terreiro ao qual o outro antropólogo é filiado e o cantor conhecido freqüentava a mesma casa de santo, ora como cliente, ora como visitante nas festas públicas.

Isto, de fato, não tem muita importância. O que importa é que certa visão da antropologia se preocupa em buscar uma essência, uma pureza que só existe como idéia nativa, e por isso se apresenta como um problema sociológico, e sendo uma idéia nativa, esta pureza é um “programa de verdade”, por isso se torna um interessante problema a ser pensado. Quando esta “verdade”, esta “pureza” se torna objeto de disputas intelectuais ela é também um problema sociológico, mas não sobre o ponto de vista nativo, na verdade, torna-se um problema de sociologia dos intelectuais, suas disputas, a formação do campo, etc., neste caso, intelectuais tornam-se “nativos”. Não confundir também isto com a questão dos “intelectuais nativos” ou “nativos intelectuais”. Enfim, este jogo de palavras está referido a uma questão: a questão da busca da “pureza” e da “verdade” das coisas.

Meu interlocutor talvez tenha razão. A festa do dia 16 de julho se tornou uma festa “profana”... Isso tira a sua “verdade” como celebração religiosa? Do meu ponto de vista, não. Por quê? Porque na vida real as coisas não se separam de modo distintivo. Separações desta natureza são exercícios de purificação operados a partir de determinados pontos de vista normativos sobre a ordem “verdadeira”, “boa” e “legítima” das coisas.

Olho então para a minha querida Salvador...

A festa do dia 02 de fevereiro, dedicada ao orixá Iemanjá, no bairro do Rio Vermelho é uma festa “de largo”, como dizem os baianos, ou uma festa que ainda guarda um conteúdo religioso? Não sei dizer... Mas vejo as pessoas depositarem suas oferendas no mar, os pequenos barcos saindo com flores e presentes para Iemanjá. Ao mesmo tempo, vejo nas ruas do Rio Vermelho um verdadeiro carnaval, hotéis oferecendo pacotes e camarotes para o dia da festa. Todo mundo enchendo a cara de cerveja e se divertindo. Todo mundo fazendo oferendas, pedidos e pagando promessas feitas à Iemanjá. Sagrado ou profano?

No Rio de Janeiro, no dia 23 de abril, o dia de São Jorge, é feriado. Milhares de pessoas se amontoam em torno do Campo de Santana, ali no final do SAARA, quase na esquina da Avenida Presidente Vargas. São devotos do Santo Guerreiro que vão à sua igreja louvá-lo. Muitos vestidos com roupas vermelhas ou vestidos de branco, chegam ainda na madrugada para aguardar o toque dos clarins dos policiais militares e bombeiros, a queima de fogos e a benção do padre da igreja, as muitas missas, a procissão e o cortejo do santo. Em Madureira, a cavalhada de São Jorge sai da quadra da Escola de Samba Império Serrano e vai até a igreja do santo em Quintino. Em torno de ambas as igrejas, muita festa, pagode, batucada e cerveja. Sagrado ou profano?

Volto para o Haiti. Em Des Ermites olho o modo como as pessoas dançam louvando a santa. Acho curioso, dançam sensualmente, quase de modo “profano”, bebem rum e cerveja, contam piadas e fazem brincadeiras, enquanto transcorre o serviço religioso e diante dos loas manifestados. Sagrado ou profano?

Há alguns anos escrevi um trabalho que intitulei “Profanando o Sagrado?”, que investigava uma pequena loja de artigos religiosos no bairro do Cachambi, Rio de Janeiro, onde sua dona, uma mãe de santo prestava todo tipo de atendimento espiritual na parte do fundo da loja. De um lado, um estabelecimento comercial, voltado à venda de produtos para religião. De outro lado, um verdadeiro templo religioso instalado no interior deste estabelecimento comercial. A minha conclusão era que não havia “profanação” alguma. Havia sim uma naturalização das relações entre uma coisa e outra, que atribuí então à visão de mundo do candomblé e das religiões afro-brasileiras em geral. Mais tarde, já quando defendi a minha dissertação de mestrado, aprofundava a questão afirmando que estas separações são operações de purificação utilizadas muitas vezes pelos agentes em situações de acusação. A vida real torna as coisas extremamente mescladas, complexas e precisamos separá-las para fazê-las inteligíveis.

Talvez Saut d’Eau não seja mais uma “festa religiosa” stricto senso. Mas de outro lado, aprendi que as festas religiosas sempre têm uma faceta profana, que é inseparável de seu lado mais sacralizado. Não desprezaria as observações de meu interlocutor, mas diria que para mim interessa muito mais essa festa mais “misutrada”, onde o “sagrado” parece sufocado pelo “profano”, talvez exatamente porque essa mistura não apresente as coisas “puras” ou “purificadas”, mas porque para mim, suponho, elas parecem mais próximas de como o mundo real se apresenta, sem máscaras ou fantasias.

Não quero dizer que há uma verdade nos fatos a ser descoberta, porque estaria incorrendo no mesmo erro daqueles que falam em “pureza”, “verdade” e outras coisas que no final acabam sendo formas de estabelecer uma visão normativa sobre o mundo. Só não quero também dirigir meu olhar sobre as coisas para fazê-las parecer aquilo que quero enxergar. Quero que as coisas, as sensações, os fatos, entrem pelos meus olhos, ouvidos, pelos meus poros, para que de alguma forma esse exercício quase poético me permita compreender os sentidos que as pessoas atribuem às suas ações.

E com isso, vamos à Saut d’Eau em julho, sem expectativas especiais, apenas para olhar o grande santuário católico/vodu, ver a fé das pessoas misturada com sua alegria, bebedeira e danças. Não quero ver apenas o Apolo do rito bem organizado e preparado, mas ver exatamente o Dionísio presente nestas festas. Porque estes vivem juntos e inseparáveis.

Quero juntar Rimbaud com Max Weber e ver no que dá...

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Um festival de incompetência


Se o Lúcio que tá lá, não agüenta ver, imagina nós???
Falando sério? Foi um festival de incompetência dos dois times...


O Brasil de Dunga é um time tão criativo quanto foi o bravo capitão do tetra. E eu nunca tinha visto um time argentino com tanto medo de ganhar do Brasil. Este é o retrato do jogo: um festival de incompetência dos dois lados. Covardia da Argentina versus a falta de brilho do time brasileiro...
O Vanderlei Luxemburgo costuma dizer que o medo de perder tira a coragem de ganhar. Eis o que aconteceu com os dois times, um jogo que empatou porque nenhum dos dois times teve realmente vontade de ganhar.

O técnico da seleção responde: “É preciso ver que do outro lado estava a Argentina”. Que Argentina?

Houve um tempo que a gente morria de medo de jogar com a Argentina. Bastava piscar o olho e... Pimba! Eles metiam um gol... E a gente não conseguia fazer nada... Era ridículo... Lembro daquela bisonha tentativa de voleio do Müller na Copa de 90... A Argentina não jogava nada, mas em um minuto, num vacilo, numa piscadela... Perdíamos...

Os tempos mudaram para os dois times...

Especialmente para a Argentina, que parece não ter forças para nos ganhar. Parece conformada com uma espécie de “escrita”. “Não, não vamos ganhar do Brasil, porque infelizmente não conseguimos...”. Não acreditam? Perdoem-me meus amigos argentinos, mas falaria de três lances neste jogo que a Argentina poderia ter provocado a (tão esperada) demissão do Dunga.

Querem ver?

Messi entra pela esquerda, nas costas de Lúcio, ganha na velocidade e está sozinho diante de Júlio César... Chuta... A bola sai pela lateral!!!

Julio Cruz recebe, aparentemente em impedimento... Sozinho, na cara do Júlio César. Hum! (Fecho olho) Agora f...! O bandeira vai dar (tem que dar!!!)... Não? Ai! Chuta por cima!!! Caraca!!! E não estava impedido? Não! Maicon dava condição lá pela direita.

Finalzinho do jogo, acho que lá pelos 43 minutos... Messi vem com bola pela esquerda, de novo... Hum, isso vai dar merda... Ele bate... Júlio César faz grande defesa, mas dá rebote... Cadê a zaga que não chega? Messi pega de novo e chuta por cima... Fim do jogo.

Começo a acreditar que os argentinos fizeram de sacanagem... Não quiseram ganhar o jogo para não provocar a saída do Dunga que é melhor para eles...

Os otimistas dirão ainda: “a Argentina não nos vence há três anos”. “Nos últimos sete confrontos ganhamos quatro e empatamos dois”. “A Argentina é uma seleção fortíssima”... Sim, não nego que respeito muito a seleção argentina. Sou da geração que ficou 24 anos sem ganhar uma Copa do Mundo, enquanto a Argentina ganhou as suas duas nas quatro que assisti pela TV (1978, 1982, a mais sofrida, 1986 e 1990) até 1994, e a de 1974 não lembro com tanta precisão de detalhes.

Mas na boa?

Esse time não deu nem para assustar... Cadê o Riquelme??? Acho que ele não se recuperou do sacode que tomou no Maracanã... O Messi??? O craque deles, a esperança, o “novo Maradona”, perdeu um gol bisonhamente... Onde está a Argentina do abusado Caniggia, do gigante Batistuta, do raçudo Kempes, do catimbeiro Simeone, do elegante Redondo, do imbatível Fillol, do genial Maradona???

Até o “bonde” do Jorge Valdano era melhor do que o Julio Cruz...

Meus amigos argentinos devem estar revoltados, pois eu falo de um festival de incompetência mútua, e até agora só descasquei o time argentino... Claro! Sou brasileiro!

Sim, sou brasileiro mas não sou cego... Vi o jogo, e vou falar da minha tristeza com a seleção...

Primeiro, porque aqui no Haiti todo mundo me diz assim: “Mwen fanatik Brésil”. Mas também desde aquele jogo contra a Venezuela, me perguntam: “Sa k pase avek Brésil?”. Para esta pergunta (“O que está acontecendo com o Brasil?”), eu tenho a resposta pronta: “Mesye Dunga pa klèr, li pa serie!” (“O Sr. Dunga não é muito ‘claro’, ele não é sério”). Alguns riem e dizem que ele ganhou a Copa América... E em cima da Argentina! Eu digo que é verdade... Mas... Maicon? Daniel Alves? Sei não...

Acho até bom que ele não desfalque o Flamengo e nem quero “puxar a brasa para a sardinha do meu time”, mas francamente, esses dois não jogam juntos a metade do que joga o Léo Moura. Caramba! Basta jogar na Europa para ser craque de seleção?

Ah, tá bom...

Tem mais? Tem de sobra...

Tudo bem que a gente tem que respeitar a Argentina, sim é verdade... Mas escalar QUATRO CABEÇAS DE ÁREA??? Isso parece coisa do Papai Joel...

Alguns ainda dirão, “ah, mas dá um desconto, o Júlio Baptista não é volante e o Anderson muito menos, pode até estar jogando como tal, mas sua posição de origem é de meia armador”. É... Pode ser... Mas respondendo a estes, direi: Sim, de fato, o Anderson não é um volante de origem, mas a origem do Júlio Baptista é jogar como volante, no final, dá tudo no mesmo: um não era volante e virou, o outro era volante e virou meia... No final, o que importa é que os dois jogaram como volantes... Não?

Querem ver?

Por volta dos 20 minutos do primeiro tempo, o Brasil ainda não havia dado sequer um chute em gol e a Argentina já tinha criado uma boa oportunidade numa cabeçada de Julio Cruz facilmente defendida por Júlio César. Olhando para o posicionamento do meio campo do Brasil, este formava uma linha de quatro jogadores atrás do grande círculo, com o Adriano isolado na frente, e o Robinho desaparecido por alguma lateral do campo, voltando para ajudar a defesa...
O meio campo do Brasil só acertava passes laterais, e os zagueiros faziam aqueles “lançamentos” (a famosa “ligação direta”) que caíam nos pés dos zagueiros argentinos. Para piorar, de onde se esperava algum lampejo de talento e algo mais que passes laterais, vinham passes afoitos, errados, muitas faltas e um cartão. Anderson, que supostamente entrou para “dar qualidade ao passe do meio campo”, não acertava lhufas... Júlio Baptista, o outro armador, fazia “o de sempre”, muito vigor, muita vontade, saúde, mas sem brilho...

Mas aos 22 minutos, um alento: Robinho... Ah, Robinho... Sumido, ele resolveu aparecer, dar o ar de sua graça. Numa bela entrada pela direita, dá uma meia lua no zagueiro, e bate em cima de Abondanzieri, a bola espirra e sobra para Júlio Baptista, agora vai! Ele bate em cima de Abondanzieri, de novo!!!

Agora vai... Vai para p...!!!

Numa dessas “ligações diretas” (daí o fato de muita gente achar que isso é uma “jogada ensaiada”, esse chutão dos zagueiros para o atacante brigar com a zaga) alguém “lançou” (desculpe, Gérson Canhotinha!) para o Adriano, impedido, mas este inteligentemente parou, pois o Robinho, vindo de trás, entrava em condições de jogo... O “Rei das Pedaladas” entra livre pela esquerda, dribla o goleiro, caminha para linha de fundo, Abondanzieri tenta detê-lo, não consegue, e quando consegue, agarra sua camisa (pelo que lembro, pênalti não tem “lei da vantagem”), mas Robinho não consegue chutar e nem cruzar... Ai, ai, ai!!! O locutor da TV haitiana diz: “Eternel!!!”.

E só... Isso foi a seleção no primeiro tempo...

Ah, ia esquecendo... Aos 33 minutos, o Anderson se machucou... Ai, cacete!!! Já vi tudo... O Dunga vai ter que tirar um volante e, tão óbvio quanto o futebol que ele jogava, vai colocar outro... Ai... Mas ele me surpreende... Coloca o Diego... Agora tem um lampejo de talento nesse meio de campo... Porém, Diego está numa noite infeliz... Como Anderson, apesar do talento, não consegue acertar nada...

Mas o Dunga como sempre, capaz de surpreender positivamente, como fez com aquele famoso “lançamento” para o Romário no jogo contra Camarões em 1994 (ninguém me tira da cabeça que aquilo foi uma tremenda cagada!), também nos surpreende negativamente...

Ok, o Diego não está bem... Não se achou em campo... Se você fosse o técnico, Zé Renato, o que faria... Eu???

Ah, tá bom... Vamos fazer o seguinte, dá para ganhar esse jogo, né? Dá!

Vamos fazer o seguinte, eu vou dizer para o Júlio recuar, e só “sair na boa”, vou botar o Robinho de quarto homem do meio de campo, e meter o Pato na frente... É bola ou búlica!!! Tudo bem, no Brasil todos somos técnicos e todos temos uma solução mágica para ganhar o jogo...

Mas essa solução não é nada mágica. Ele mesmo tentou e fracassou contra a Venezuela. Perdia o jogo e arriscou tudo... E o Júlio é volante de origem, o Robinho joga às vezes nessa função no Real... Pô, dá para ser...

Tá bom... Mas tirar o Diego e colocar o Daniel Alves???? O que ele quis fazer com isso???

Não! Assim é demais... Os haitianos que viam o jogo comigo, riam do meu desespero...

Mas não dá...

Enfim, não quero ser óbvio e nem reforçar o coro daquilo que todo mundo deve estar repetindo aí no Brasil: porém, FORA DUNGA!!!

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Respondendo aos comentários...

Resolvi postar em resposta à gentil atitude de dois meus 12 fiéis leitores em comentar as coisas que escrevo aqui...
Então aí vai...
Primeiro, ao João Marcelo...
Sim, meu caro, é exatamente este o problema que vimos colocando como questão central para a nossa pesquisa aqui no Haiti (a minha, de Federico e demais colegas) como perceber as coisas daqui sem recorrer aos modelos prontos, modelos estes que não são senão "modelos" que não se realizam nem mesmo nos países onde ele foram concebidos. Ora, a "república" francesa, berço da moderna noção de cidadania, nunca viveu tamanha crise de identidade ao se deparar com conflitos como aquele que você expõe. Os instrumentos "clássicos", como você chama, não estão conseguindo dar conta das tensões reais que as relações entre os mundos pós-coloniais e as ex-metrópoles estão impondo. Há uma conta a ser paga, e agora estão aí na porta batendo, cobrando o preço.
Porém, nosotros, daqui da periferia sempre nos acostumamos a lidar com um mundo mais desordenado e caótico do ponto de vista deles. E fazer a ordem desse caos...
O nosso modelo de ação afirmativa, por exemplo, confunde a cabeça de uma parcela significativa dos nossos intelectuais que estão sempre referidos, de forma crítica, ao modelo norte americano. Apontam que houve uma importação direta de um modelo que "cria um conflito onde ele não existe". Não incorporam, por exemplo, uma percepção que uma suposta tendência às "saídas negociadas", à "convergência para o centro", não são nada mais que expressões deste conflito. Só é possível haver negociação quando há interesses em choque. Ninguém negocia sem interesses.
E o mais interessante é perceber que em sociedade como o Haiti, onde supostamente todos são descendentes de ex-escravos, todos são, no limite, negros, há tensões raciais. Pode ser que estejamos falando da "linha de cor" de Dubois, ou ainda, de uma histórica tensão econômica entre negros boçais e mulatos ricos. De qualquer forma, há no seio uma sociedade que é, por assim dizer, negra, tensões raciais. Invocar a mestiçagem não soluciona o problema. E quando passamos para o outro lado da ilha, a República Dominicana, as tensões aumentam ainda mais. Nação e raça se confundem... Infelizmente, queiram ou não certos intelectuais invocar a biologia para dizer: "Ei, vocês estão enganados, raça não existe". Eles talvez precisem dar um passeio pelo mundo para entender melhor a sua própria casa e perceber que muitas vezes são eles mesmos que estão importando modelos políticos/analíticos que não dão conta da realidade. Não sou um empirista radical, mas acho que tem faltado a essa gente andar pelas ruas e se misturar com o seu material de pesquisa. Não adianta dizer que faz pesquisa há 30 anos com relações raciais... Precisam olhar o momento. Pesquisa é isso... É um frame...
Modelos são úteis para pensar, mas não podem dirigir de modo normativo o nosso olhar. Diferente de um microscópio ou um moderno telescópio, a pesquisa social requer que os instrumentos sejam permanentemente ajustados àquilo que estamos vendo... Enfim...
Agora o Leonardo, sobre o Obama.
Em primeiro lugar, foi exatamente isto que possibilitou a comparação entre ele e o Lula de 1989 (diria mesmo que o Lula de 2002 também) a idéia de que sua candidatura quebra um paradigma. Esta é a sua força (como sempre foi a força do PT e de Lula) trazer uma mensagem diferente, de esperança e de mudança. Mas sociedades reais resistem às mudanças, e quebras de paradigma às vezes se apresentam como mudanças demasiadamente radicais para ser incorporadas facilmente.
E isto é que me faz pensar que vou, infelizmente, ganhar a tal aposta.
Nossa experiência frustrada de 1989 nos mostrou que não adianta ser criativo na hora de fazer campanha. Certos golpes são duros demais para se absorver e como eu disse, não será fácil para um americano médio ouvir McCain se referir nos debates ao seu opositor como Mr. Hussein. E não adiantará Obama dizer que seu nome é Barack Obama. Isso só vai pesar contra ele, porque pode ser visto como uma negação de seu nome. Será um complicado jogo de xadrez, muito mais complexo do que convencer um partido (supostamente) progressista a adotar uma candidatura que rompe paradigmas.
E aí vem a questão da Unidade e Esperança... Sim, esse discurso é muito bom para nós. Mas mesmo Bush, no auge da crise do onze de setembro, invocou a nação Una e Indivisível sob os olhos de Deus. E com isso conseguiu fazer passar uma legislação que coloca por terra uma série de tradições ligadas aos direitos individuais nos EUA. E ainda, conseguiu criar uma situação que desrespeita protocolos internacionais relativos aos aeroportos, posto que país algum exige visto para estabelecer uma conexão entre vôos. Somente os EUA... Tudo em nome da unidade da nação e da esperança de manter unido este povo...
Sei não, meu caro, sou muito pessimista, o calo nos ensina a andar de sapato apertado...
Embora não seja partidário da noção de unidade, prefiro a pluralidade e o pluralismo, tenho sempre esperança. Como disse, aposto no Fluminense na final da Libertadores, mas não me incomodaria em perder. Aposto em McCain para a presidência dos EUA, adoraria perder!
O que parece ainda mais interessante é como estas eleições afetam o Haiti e sobretudo a comunidade haitiano-americana. Afeta tanto que meu amigo da aposta vai falar no sábado em um programa de rádio, transmitido para a Flórida (onde se encontra parte substantiva da comunidade haitiana nos EUA), fazendo um manifesto em favor do voto dos haitianos em Obama. Disse a ele que isso não lhe fará ganhar a aposta, pois ele vai pregar para convertidos: imigrantes normalmente votam em candidatos democratas e, mesmo com o grande apoio dos haitianos ao casal Clinton e a pré candidata Hilary, será mais do que natural o voto destes em Obama.
Enfim... Acho que é isso...
Um abraço aos dois amigos e aos outros dez leitores

terça-feira, 10 de junho de 2008

"Antropologices" ou "A maldição"


Cada vez que converso com um hatiano que encontro pelo caminho das minhas pesquisas sobre o vodu, tenho a impressão de que muitos haitianos crêem que seu país sofre de algum tipo de maldição proferida por Deus ou pelos deuses.




Tenho percebido que há por aqui entre os cristãos, católicos, voduissants e protestantes,uma idéia muito forte de um Deus todo poderoso, ciumento e vingador, imagem que entre nós brasileiros parece muito mais recorrente em certas versões do protestantismo, referidas ao Deus do antigo testamento. Fosse tal visão apenas partilhada pelos religiosos, não pareceria estranho, no entanto, ela parece também atravessar de alguma forma a visão de certos intelectuais daqui sobre o seu país.




Enquanto para os religiosos a visão de mundo é atravessada por crenças em divindades sobrenaturais, em poderes superiores e inexplicáveis, pela ação de entidades maléficas exteriores aos homens, ou ainda que são parte de uma natureza pervertida da espécie humana, uma natureza marcada pelo pecado original, entre os intelectuais este pecado original está na Cultura. Cultura autoritária, cultura da violência, cultura da barbárie, cultura "macoute", cultura da "marronage", estão entre muitas associações entre o termo cultura e os males da nação.



Num certo sentido a cultura aparece como um deus ex-machina capaz de resolver e explicar todos os problemas, conferir sentido racional a tudo aquilo que parece fora de ordem ou desarrumado. Em outras palavras, a cosmologia de certa parcela dos intelectuais daqui pode ser enquadrada nos mesmos marcos que as explicações nativas sobre um suposto mal de raiz, uma "natureza" dos haitianos voltada para o mal, apoiadas nas crenças religiosas de católicos, voduissants e protestantes.



Para estes, o mal de raiz viria exatamente do ato de nascença do Haiti: o Sacrifício de Bois Caiman.



Tido como o ato que deflagrou a luta de independência na região norte do país, que uniu os escravos e eclodiu a revolta nas fazendas da região, Bois Caiman é um mito de origem nacional que faz uma associação perfeita entre construção nacional e vodu. Para quem não conhece a história do Haiti, Bois Caiman foi o local onde se realizou uma grande cerimônia vodu, liderada pelo jamaicano Boukman, que organizou os escravos e deu início à luta de independência, onde teria sido sacrificado um porco ou cem porcos às divindades vodu.



Por si só tal ato criaria uma cisão irreconciliável entre o movimento de racionalização, essencial às construção de uma ordem moderna e republicana, e as crenças ancestrais africanas, símbolos por excelência do atraso e da irracionalidade. Como criar uma nação a partir disto? Seria como se algum pintor "espírito de porco" pintasse o Grito do Ipiranga com D. Pedro com as calças na mão, depois de obrar, montado em um burrico. Nada mais realista e menos heróico.



Aliás, é deste modo que se estabelece de maneira perfeita o pecado original dos intelectuais, a ligação perfeita entre cultura haitiana e atraso: não é a razão instrumental que cria uma nação, não é esta que cria o novo mundo pós-colonial no Haiti, não é desta que brota uma nação, mas de seu extremo oposto: é a magia, o encanto e o mito que estão por trás da criação da nova nação. Eis o lugar onde a cultura aparece...



E este ato, Bois Caiman, é quase uma condenação à danação eterna: jamais será possível fazer prevalecer a razão num mundo onde os agentes mágicos se fazem tão presentes e com tamanha força. Não será possível criar uma nação sob os olhos de Deus onde os djab / esprit sejam tão fortes.



Evans-Pritchard escreveu um clássico sobre os Azande, conseguindo demonstrar que através da bruxaria é possível perceber um esquema racional capaz de explicar o funcionamento do mundo e do infortúnio. Fez isso sem recorrer ao esquema evolucionista spenceriano baseado no tripé magia-religião-ciência. Lévi-Strauss foi ainda mais longe ao perceber que os esquemas do "pensamento selvagem" e o pensamento mítico não estão tão distantes assim da "racionalidade" dos sistemas ditos "científicos".



O fato de estarmos fazendo pesquisa no Haiti nos oferece uma visão privilegiada para investigar espaços de pensamento "não purificados", onde oposições binárias não são capazes de explicar com precisão a complexidade da vida social. Seqüências binárias do tipo atraso/modernidade, racional/irracional, rural/urbano não são suficientes para entender o que se passa por aqui. É um mundo de milhões de telefones celulares pelos quais loup garrou e djab diversos se comunicam o tempo todo. As oposições rígidas não servem senão como um exercício heurístico permanentemente descartável. Usamos uma oposição binária no primeiro parágrafo, para descartá-la no segundo, sobretudo quando somos colocados diante de situações sociais reais, empíricas.



Aliás, somente estas situações sociais, as "cenas sociais" que Florence Weber propõe, interações momentâneas de caráter durável ou não, é que nos permitem perceber o quanto e como as tensões se evidenciam entre os modelos analíticos e o mundo que observamos. São exatamente as relações sociais e os sentidos atribuídos às ações pelos agente que talvez nos permitem compreender o que se passa por aqui no Haiti e talvez no resto do mundo.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Apostas

Há certos tipos de aposta que adoraríamos perder...
Por exemplo, se hoje eu tivesse que apostar na equipe que seria campeã da Taça Libertadores, apostaria de olhos fechados no Fluminense, e sei que fatalmente iria ganhar. Eis uma aposta que gostaria de perder...

Recentemente fiz uma aposta com um amigo haitiano entusiasta da candidatura de Barack Obama à presidência dos EUA. Seu entusiasmo é, sobretudo, com uma crença de que os EUA estariam mudando e que Obama representa esta mudança de mentalidade. Não é com menos entusiasmo que vejo esta candidatura como um sinal de uma importante mudança no mundo, a mais rica e poderosa nação, cuja história sempre foi marcada por uma radical clivagem racial, teria em sua presidência um “homem de cor”. Mas também olho com um pouco mais de realismo desencantado: não, os EUA ainda não estão preparados para ter um negro como seu presidente.

Então, fizemos uma aposta: Obama não derrotará McCain. Vamos jantar num caro restaurante chinês de Pétion Ville, se Obama se tornar presidente dos EUA, eu pagarei o jantar. Se ele perder, meu amigo pagará o jantar. Eis uma aposta que adoraria perder...
As eleições nos EUA sempre têm grande importância aqui no Haiti.

Os próprios movimentos da política nacional do Haiti estiveram nos últimos quinze anos muito relacionados com a alternância entre republicanos e democratas no poder nos EUA. O golpe de 1991 contra Aristide, segundo alguns relatos daqui, estaria intimamente ligado às ações da CIA, posto que um dos líderes deste golpe, que viria a se tornar presidente com a derrubada de Aristide, Raoul Cedras, foi aluno da malsinada “Escola das Américas”. Estes mesmos relatos afirmam que o golpe dado teria apoio do então presidente George Bush “Pai”.

De outro lado, a volta de Aristide ao poder, segundo o jornalista Jean Dominique, assassinado em 2000, foi um coup de télephone (literalmente, “golpe de telefone”), dado por Bill Clinton no governo Cedras. Dominique afirmava que os EUA derrubaram Baby Doc da mesma forma, e num programa de TV nos EUA, disse que se tratava do Presidente dos EUA tomar uma atitude contra o governo golpista e restituir Aristide ao seu lugar de presidente eleito. Aristide voltou ao país protegido pelos marines americanos e retomou seu posto de presidente.

Alguns críticos mais radicais e adeptos de teorias conspiratórias fazem uma associação curiosa entre a queda de Aristide em 2004 e o fato do presidente dos EUA ser George Bush, “Filho”. O fato é que a comunidade haitiana nos EUA apóia intensamente os democratas, pois crê que a política destes para o Haiti é mais positiva (e propositiva) que o “Big Stick” republicano. O curioso é que algumas informações que tive por aqui diziam que esta comunidade apoiava a candidatura do casal Clinton e, reforçando a crítica comum à Obama, que este não seria “suficientemente negro”. Outros afirmam que este apoio viria de partidários de Aristide, que são muitos na Flórida, principalmente, que conta com a simpatia e o apoio do casal Clinton.

O cenário das eleições nos EUA tem grande importância no Haiti por variadas razões. Boa parte da comunidade haitiana nos EUA sustenta a economia do país através de remessas de dinheiro e alimentos para os parentes daqui. Uma das principais alternativas para melhoria de vida por aqui é a ida para os EUA, para desta forma remeter dinheiro para os parentes daqui. A falta de perspectivas dos jovens e jovens adultos faz dos EUA um eldorado e o sonho do Green Card povoa até as demandas aos sacerdotes vodu, que têm na diáspora haitiana uma parcela significativa de sua clientela.

Neste momento, Obama já derrotou Hilary Clinton e está frente a frente com McCain para disputar a presidência do país. Meu amigo diz para mim que já venceu a metade da aposta, e eu lhe respondo que não, pois sempre lhe dissera que Obama seria capaz de derrotar Hilary. Digo sempre que o difícil será convencer algum morador do Kansas, ou do Alabama que o presidente dos EUA se chama Barack Hussein Obama... Ou ouvir McCain nos debates se referir à Obama como Mr. Hussein...

Em 1989 eu militava num partido que tinha como sonho levar um operário fabril à presidência do Brasil. Em 2002, com alguma desilusão e muito realismo chegamos com Lula ao poder, já não eram mais o mesmo projeto e o mesmo operário que chegava ao poder. Mas havíamos vencido. Vejo o caminho de Obama como este mesmo sonho. Será que ele se realiza tão rápido ou será ainda necessária uma longa espera, muitas desilusões e mudanças para chegar lá?

Abraço

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Impressões

Depois de algum tempo sem fazer nenhuma postagem, não sei se por falta de inspiração ou por preguiça, andei refletindo sobre uma questão que é recorrente por aqui e, em especial, para os estrangeiros que vêm ao país: o “problema do Estado Haitiano”.

Na verdade, mais do que tratar deste “problema”, a impressão que muitos estrangeiros temos no Haiti é exatamente o contrário, que não se trata de um problema, posto que o Estado Moderno “não existe ou não se realiza no Haiti”. Esta visão, atravessada de prescrições normativas sobre o modo de funcionamento das relações sociais e as formas de regulação destas, é demasiado complicada e prejudica a observação da realidade daqui, sem que as coisas sejam encaradas sempre pelo que chamo de “lógica falta”: “falta Estado”, logo, “faltam educação, comida, segurança, hospitais, etc.”. Do mesmo modo que as intervenções no espaço haitiano são exatamente fundadas nesta lógica: “O Haiti não tem segurança: damos a ele a Minustah”, “O Haiti não tem médicos, damos cooperação na área de saúde”, tudo que é feito por aqui parece operar com esse paradigma: é preciso “cobrir” estas “faltas”.

Mas precisamos nos perguntar até onde tais “faltas” não refletem de modo exato essa visão normativa, que impõe um modelo de funcionamento das coisas que não se realiza no mundo real, mas que corresponde a um ideal inatingível para sociedades “falíveis” ou “failble states”. Trata-se de pensar que diversas formas de intervenção no Haiti foram historicamente construídas a partir destas considerações: “o Haiti e os haitianos não são capazes de se governar, governemos por eles”.

É preciso também ter na cabeça que os mundos sociais são organizados exatamente a partir de formas sociais que não correspondem aos nossos ideais, e que certos universalismos senão todos no limite acabam sendo perigosas maneiras de estabelecer controle sobre os sujeitos que organizam seus mundos em torno de regras particulares. Não defendo aqui que tenhamos que sair do Haiti, todos os estrangeiros e pessoas que atuam no país como cooperantes, diplomatas, militares, agentes de diversas extrações, e que deixemos que eles resolvam seus conflitos de maneira interna, apenas este tipo de consideração, de que estamos aqui para “ajuda-los a resolver seus problemas”, já me causa arrepios. Porém, as imagens que vimos pela tv ou documentários diversos sobre os conflitos anteriores à chegada da Minustah e toda sua entourage despertam pânico, da mesma forma que diversas experiências pelo mundo, tais como Darfur, Timor, Ruanda, Serra Leoa, Bósnia, etc. colocam em xeque quaisquer idéias simplista sobre “autonomia dos povos”.

Os conceitos de autonomia e soberania dos povos são mais complexos do que parecem, não são apenas uma forma normativa de ordenar relações entre países, mas uma forma de estabelecer limites nas formas de agir sobre estes países. Acho mesmo que tais noções são extensões da noção moderna de indivíduo sobre coletividades e “nações”.

Um fato que salta aos olhos na primeira impressão sobre o Haiti é o alto grau de mercantilização da sociedade local. Todo lugar é potencialmente um mercado, e todo sujeito é potencialmente um mercador/consumidor. Isto parece simples, mas se pensarmos no alto grau de desregulamentação do país, nas formas de fiscalização e ordenamento do espaço público que passam ao largo do Estado, que aliás, independem absolutamente deste, na idéia de que a chamada “economia formal” no Haiti é incapaz de responder pelos fluxos de pessoas e mercadorias, no alto grau internacionalização da economia e na desregulamentação das relações de trabalho, se juntarmos todos estes aspectos, o Haiti é o modelo perfeito de país neoliberal.

Se não julgamos o país pelas suas “faltas”, mas exatamente pela forma que as coisas assumiram aqui, um Estado que permite um alto grau de liberdade econômica para os diversos agentes é, de fato, um modelo perfeito de sociedade neoliberal. Talvez seria necessário refinar estas idéias, mas parece perfeitamente possível perceber que alguma coisa deu errado no modelo neoliberal. E se deu errado, deu por aqui, no Haiti.

Não é preciso que eu repita, por exemplo, que qualquer indivíduo com pouco mais de US$ 2 está plenamente habilitado a se estabelecer nas ruas como comerciante. Talvez o mais complexo disto fosse saber quem, se não é o Estado, responde pela ocupação do espaço. No entanto, é muito significativo o fato de que diversas casas de família vendem “fritaj” ou “boisson glacê” nas suas portas, por vezes ocupando as calçadas. “Fritaj” é nome dado aos alimentos fritos vendidos em barracas na rua. Alguém controla esta ocupação do espaço. E eu creio, pessoalmente, que cabe exatamente ao Estado estabelecer formas de diálogo com a população através destes interlocutores responsáveis pela gestão, tida por alguns como “caótica”, do espaço público.

Mesmo que se trate de, como disse em conversa informal meu amigo João, “construir o Estado a partir da domesticação dos interesses privados”, a luta para organizar o espaço público depende sempre de estabelecer uma interlocução precisa entre estes agentes públicos. Eis me aqui criticando o idealismo de certas concepções de espaço público e de política, oferecendo um outro idealismo...

O que entendo de fato é que faz se necessária uma perspectiva que seja mais habilitada a entender como se constrói o espaço público por aqui, como os atores sociais chegam à estabelecer uma “ordem pública”?

Outro dia, fui ao bairro pobre de Des Ermites, uma favela em Pétion Ville, onde há uma capela católica que foi transformada em santuário vodu, em honra à Ezili Dantor. Escolhi este lugar como um espaço privilegiado para a minha pesquisa e para talvez entender melhor como se estabelecem certos processos sociais no Haiti. A vizinhança pobre com vielas e rotas pedregosas que nos dias de chuva podem causar tombos e acidentes mais graves.

Pois bem, há duas semanas voltava da capela, pela rota, quando deparei com um grupo de pessoas trabalhando na rota, e com uma caixa de papelão pediam contribuições para fazer melhorias na rota. Não acho que isto seja um modelo a ser seguido, quando os cidadãos, na ausência da ação do Estado, tomam para si o dever de melhorar as condições das vias públicas. Porém, o que se vê é que, naquele lugar, as pessoas têm plena consciência de que as vias são um bem público e que eles devem zelar por elas e garantir seu bom estado, para sua própria segurança.

Ora, o que mais ouço por aqui é “os haitianos não têm noção de espaço público”. E esta pequena situação entre muitas outras demonstram que não é bem assim. O que parece faltar a todos é exatamente isto: meios para agir. De um lado, há uma esperança de que a cooperação internacional, a Minustah e todos que estão por aqui, “façam algo pelo Haiti”. Porém, a coisa não se processa desta forma. O país precisa de um projeto nacional, de meios para enfrentar a crise, meios que não provém destes organismos internacionais, mas de uma vontade política de organizar e criar onde as coisas são muito precárias. De outro lado, há uma voz permanente das elites locais, de diversas extrações, que parecem aceitar certa incapacidade de mudar as coisas, aquilo que Nelson Rodrigues chamava de “Complexo de Vira-Lata”, quando se referia à incapacidade de nosso futebol de vencer uma Copa do Mundo, mas que refletia de uma maneira geral o sentimento do brasileiro diante dos outros povos do mundo.

Pobre Haiti? O país com o menor IDH das Américas? Sim, de fato... Como mudar?

Este é o ponto. O Haiti é capaz de encontrar as suas saídas, não a partir de certas regras pré-determinadas em manuais sobre desenvolvimento, Estado e Sociedade, mas exatamente a partir das formas locais, particulares e exclusivas de um povo singular e ao mesmo tempo universal em sua experiência humana. O Haiti pode nos ensinar muito sobre o futuro do mundo. A pergunta a ser feita é se, de fato, estamos prontos para aprender com quem julgamos “inferiores”.

quarta-feira, 7 de maio de 2008

TRISTEZA D'ALÉM MAR...

"Tristeza não tem fim...
Felicidade sim..."


O poeta Vinícius de Moraes escreveu estes versos. Não se inspirava no seu Botafogo, que na época andava por cima no futebol. Eram os anos 60 e no seu time jogaram alguns dos maiores gênios do futebol brasileiro de todos os tempos. O futebol não inspirava o botafoguense Vinícius...


Nestes últimos tempos no entanto, vinha sendo o futebol a única inspiração para eu escrever no blog, era o que me fazia sentir mais conectado aos acontecimentos do Brasil, além da família e os amigos. Hoje, juntando o futebol com algumas coisas que estão acontecendo comigo, aumentou demais a minha saudade de casa, da minha mãe e dos meus amigos... Talvez fosse mais sofrido ter ido ao Maracanã hoje, ver o vexame do Flamengo. Com ares de novela mexiacana, o Flamengo perdeu...

"Eu tiro o domingo para descansar
Mas não descansei, que louco fui eu
Regressei do futebol
Todo queimado de sol
O Flamengo perdeu
Pro Botafogo
Amanhã vou trabalhar
E o patrão que é vascaíno
E de mim vai zombar

Foram noventa minutos
Que eu sofri como um louco até ficar rouco
Obina passa a Tardelli
Tardelli passa a Obina
Que preparou prá chutar
Aí o juiz apitou
O tempo regulamentar"

O Flamengo já inspirou alguns versos e foi paixão de artistas geniais de nossa música. Para citar alguns, Ary Barroso, João Nogueira, Jorge Ben (antes de ser "Benjor")... E mesmo os não rubro negros reconhecem a grandeza do Mengo: foi um tricolor, Nelson Rodrigues que melhor definiu o espírito do Flamengo: na derrota, sangramos como um César apunhalado, ou ainda, "a baba elástica e bovina e o olho rútilo do crioulo sem dentes gritando: Mengo!"... Sim, o Flamengo inspira amores enlouquecidos e ódios furiosos, acima de tudo a paixão pelo Flamengo afeta mesmo aqueles que não são Flamengo...

"Quando você gritou 'Mengo'
No segundo gol do Zico
Tirei sem pensar o cinto
E bati sem cansar
Três anos vivendo juntos
E eu sempre disse contente:
Minha preta é uma rainha
Porque não teme o batente
Se garante na cozinha
E ainda é Vasco doente

Daquele gol até hoje
O meu rádio está desligado
Como se irradiasse a tristeza de um gol anulado
Eu aprendi que a alegria
De quem está apaixonado
É como a falsa euforia
De um gol anulado"

Essa foi escrita por um vascaíno, Aldir Blanc, mas é a prova mais perfeita de que mesmo aqueles que não são Flamengo, estão sempre sendo afetados pela sua presença...

Hoje estou triste, muito triste. Não apenas porque o Flamengo perdeu.

Apenas porque estou triste e o Flamengo, que perdeu, me deixou um pouco mais triste.

O Flamengo é uma das minhas paixões, junto com o meu trabalho, que é tentar fazer antropologia. E como diz a música, a alegria de quem está apaixonado é sempre como a falsa euforia de um gol anulado...

Abraços

domingo, 4 de maio de 2008

ALEGRIA LONGE DE CASA!!!!


Meu grande amigo Fernando Rabossi, argentino, torcedor do Boca Juniors, me contou de seu sofrimento e alegria solitários em plena Suécia, quando o seu Boca conquistou um título mundial...


Vivi hoje essa emoção ao acompanhar de um cyber café, como já havia feito nos jogos contra o Cienciano na Libertadores e contra o América, e no ano passado, aqui mesmo no Haiti, quando o Flamengo se sagrou campeão nos penaltis, contra o mesmo Botafogo.
Estou feliz da vida, o Flamengo ganha um título, segue na Libertadores, quem sabe, com chances de ganhar mais um título nesta temporada, que igualaria o meu sentimento solitário e os gritos abafados dentro de um cyber em Jacmel, Haiti...
Estou feliz... o Flamengo ganha mais um título... Longe de casa, nestes momentos sinto saudade do Maracanã lotado, a casa da Nação Rubro Negra, o território desta Nação imensa e feliz...
Perdoem a preguiça dos últimos tempos e as poucas postagens... está difícil escrever... às vezes estamos cansados, com saudades e sem ter condiçõs de ordenar as idéias para escrever e dizer algo realmente interessante...
Por isso mando essa garrafa com uma mensagem de alegria!!!
Estou Feliz... O Flamengo é campeão!!!!!
Beijos a todos

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quarta-feira, 16 de abril de 2008

HEROLD



Grandes espíritos não montam em maus cavalos - Provérbio Haitiano extraído da epígrafe do livro "Divine Horsemen" de Maya Deren
Há duas semanas atrás, antes de estourarem os protestos e as tensões em PaP, estive na cidade circulando por áreas que jamais fora antes. Nas duas vezes que estive aqui antes, apenas numa delas passei por fora de La Saline, para me dirigir ao Marche Croix des Bossales. No entanto, desta vez pude ir à Cité Soleil e sua gente. Desta vez também pude ir aos mercados do centro de PaP, o próprio Croix des Bossales, la Polite, Têt Boeuf e Marche en Fer. Nestes últimos pude ir desta vez com Herold.


Herold é uma daquelas figuras inesquecíveis, que no Brasil certamente seria um diretor de harmonia ou compositor de uma escola de samba, partideiro, militante, pessoa querida por todos na vizinhança, respeitado pelos velhos, adorado pelas crianças, enfim, essas figuras míticas que conhecemos fazendo pesquisa de campo em antropologia. Herold é o cara...


Sabe o que é sair pelas vizinhanças falando com todo mundo de Carrefour Feuilles, por Bel Air ou La Saline, favela onde ele nasceu, se criou e saiu de lá para se tornar uma figura que opera neste nebuloso meio campo entre pesquisadores, cooperantes, agências e demais figuras que estão agora e sempre estiveram no Haiti.


Formado em Psicologia Social, Herold fez questão de, após nosso passeio pelos mercados, sabendo de meu interesse no vodu, levar-me ao Bureau de Ethnologie e me apresentar lá como um pesquisador brasileiro, interessado no vodu. Disse-me que ele mesmo é um serviteur dos loas. E foi essa a mediação que me levou a entrar fundo em La Saline e conhecer alguns ougáns, mambos e hounsis (servidores dos loas) de lá.
Havíamos saído pelos mercados na segunda e terça feira de manhã. Nestes dois dias conversamos muito e marcamos encontro para domingo. Saí de Jacmel para PaP bem cedo, quase madrugada. Queria chegar na hora. Cheguei cedo ao Oloffson, onde marcamos nosso encontro, tomei um café da manhã reforçado, pois não comera nada antes de viajar. Pontualmente, às 11 da manhã ele apareceu no estacionamento do hotel, cercado das crianças de Bel Air. Parou para falar com uma francesa que trabalha em alguma agência internacional, enquanto os moleques se penduravam nos seus braços. Subiu, tomou um copo d'água, flertando com a garçonete do Oloffson e seguimos para a rua.
Na rua, paramos várias vezes para ele falar com gente da vizinhança, moleques, homens adultos, senhoras que vendem mercadorias nas ruas. Como disse a ele que não tinha um carro, pegamos um tap tap.
Antes de entrarmos nas vielas estreitas e sujas de La Saline, ele fez questão de cada vez que passávamos pelos "chefes do local" me apresentar e dizer o que eu estava fazendo lá. Para cada um, um sorriso, uma piada, uma gentileza. Fomos direto procurar Samba Papito, um músico e líder comunitário de La Saline que havia conhecido há uma semana. Herold caminha pelas vielas a passos largos, pára de repente e fala com alguém. Caminhamos mais um pouco, ele pára mais adiante para me dizer: "Este é fulano e faz isso assim, assim", "este você precisa saber quem é, para procurar mais tarde para a sua pesquisa", etc.
Encontramos Samba Papito, que almoçava um prato de arroz e feijão, com um molho. Ele juntou-se a nós para nos levar para mais dentro ainda da favela. Dali chegamos num inusitado sítio dentro da confusão da favela. Uma espécie de quintal, com uma árvore, com panos e objetos amarrados. Estava claro que aquela árvore, naquele lugar, não era uma árvore comum. As pessoas da casa se juntaram para buscar cadeiras e sentamos para conversar. Ao lado havia um poço, coisa rara nestas favelas. Ali, disseram-me, morava o esprit que montava a jovem Nadine, o mesmo que montou durante anos sua mãe, até que esta morresse e que foi herdado por Nadine. Não era nem uma árvore, nem um poço comuns. A água esverdeada do poço parecia esconder mistérios que nem comecei ainda a desvendar. Aliás, um dos nomes dados aos loas é exatamente este: mistérios.
Depois fomos procurar um outro jovem ougán. Herold sempre me apresentava fazendo várias (boas) recomendações, de que fossem atenciosos comigo. Este segundo encontro foi revelador. Sobretudo pelas coisas que se desenrolaram ao longo da semana, com os protestos. Este jovem ougán, Michel, estava acompanhado de outros jovens, que estavam intrigados com minha presença. O que quereria um brasileiro ali? Expliquei várias vezes enquanto conversávamos, mas isto não resolvia. Até que disse que eles poderiam colocar questões para mim, que pergutassem o que quisesse. Sumiram as desconfianças e sorrisos apareceram nos rostos quando disse que não era do governo brasileiro, nem da Minustah e nem estava ali em uma missão especial. Estava por minha conta, recebia uma bolsa para estudar um tema que foi de minha escolha, e tinha autonomia perante a embaixada ou qualquer agência, exceto à Capes, que financiava a minha pesquisa, mas que ela não interferia em absolutamente nada.
Daí em diante falaram muito, falaram das perseguições que o vodu sofrera ao longo da história e de seu papel na independência do país. Falaram com orgulho de Bois Caiman, o sacrifício realizado por Buckman e que deflagrou a luta de independência, e que os espíritos ancestrais estavam sempre lutando para libertar o Haiti. Falaram da fome e que os espíritos não podem resolvê-la, mas que dão força para que eles lutem para enfrentá-la. Foi uma conversa emocionante, pois era a primeira vez que via voduissants falarem numa perspectiva de luta política e de enfrentamento através de sua religião, das perseguições e dos novos inimigos, os pentecostais que perseguiam o vodu. Convidaram-me então para uma festa que vai acontecer no fim do mês de maio. Agradeci e disse que faria questão de estar lá.
Fiquei longo tempo com eles até Herold voltar, para me levar a um outro jovem hounsi e seu tio, que me falaram de várias coisas. Falaram sobretudo que trabalhavam para o bem, mas se necessário, conheciam as artes necessárias para fazer malefícios. Mas que só faziam isso como contra-magia, contra os bokô (feiticeiros). Depois o tio me mostrou que com o asson, uma cabaça coberta com miçangas e um pequeno sino, dois ougáns e/ou os espíritos podem se comunicar entre si. Convidaram-me também para uma cerimônia no fim de abril, que fariam para alimentar o loa que monta o jovem Jean.
Saímos de La Saline conversando sobre muitas coisas, Herold esclarecia algumas dúvidas e fazias certas observações que me deixavam intrigado, mas que abriam novos interesses e questões. No fim, disse-lhe que gostaria de entrevistá-lo, ao que respondeu que faria com o maior prazer.
Despedimo-nos, ele seguiu para Carrefour Feuilles e eu fui voltei para Jacmel animadíssimo, pois combinamos que voltaria na semana seguinte para visitar alguns oufós e voduissants em Bel Air. Infelizmente, a semana quente em PaP impediu que nos encontrássemos, mas fica aberta esta nova e excitante possibilidade de pesquisa.
Abraços

O DIABO E O VODU




- Le diable est especiallement fort nan peyi d'Ayiti, nan Afrique - diz Mme. Evance

- Poukisa? -pergunto

- Paske nan peyi d'Ayiti genyen anpil hougán, anpil mambo. Li sont tout serviteur des esprit. Et les esprit son le Diable! responde Mme. Evance

- Men lè le esprit Bondieu manifeste nan église protestant? Kijan ou fét pou reconnais si est yon esprit de Dieu ou le diable?

- Nan église la seul le esprit Bondieu manifeste!


Este diálogo que mescla palavras em creóle e francês foi travado por mim e a cozinheira de Laennec, Mme. Evance. Conversávamos sobre Deus e o Diabo, quando Mme. Evance disse que "O diabo é especialmente forte no Haiti e na África". Perguntei-lhe o por quê disse, ela respondeu que nestes lugares há vários "servidores dos espíritos, mas que no fundo servem ao Diabo". Provocativamente, disse a ela que os espíritos se manifestam também nas igrejas pentecostais, e como era possível reconhecer a diferença entre a manifestação de um espírito numa igreja e os espíritos que possuem as mambos e ougáns (sacerdotes vodu). Sua resposta foi seca e direta: Na igreja só se manifesta o espírito de Deus!


Mme. Evance ainda me diria que o Haiti tem muito Maçon Loge, que os maçons daqui são todos ligados ao vodu.


Levei um tempo para refletir sobre isso e lembrei do meu primeiro encontro com Valsaint. Aliás, com exceção dos ougáns de La Saline, que fizeram sempre questão de falar de seu poder mágico, mas sem tentar com isso despertar medo ou terror, às vezes até omitindo algumas informações, sempre que tenho um primeiro contato com um ougán, ele sempre insiste em tentar provocar algum medo ou terror, falando de coisas místicas ou de poderes incontroláveis. Não sei se o que ocorreu em La Saline foi diferente em função da mediação de Herold, que me apresentava como "um estudante, pesquisador de antropologia, iniciado no culto vodu brasileiro", e isto transformava a relação entre eu e ougáns como uma relação entre iguais, numa troca de conhecimentos, mas realmente nesta situação ninguém falou do diabo.


O próprio Herold já me falara de uma distinção entre os ougáns, entre "aqueles que só trabalham para o mal", para fazer "magi nwa" ou "feitiçaria", que ele chama de "macoutes", e os outros ougáns, que tem poder para fazer o mal, mas preferem trabalhar com curas espirituais (guérison), para ajudar numa "expedition" (trabalhos de contra magia) ou para obter "une chance" (sorte no jogo). O fato é que sempre se fala em "trabalhos para a mão direita e para a mão esquerda".


No meu primeiro encontro com Valsaint sempre senti que ele, de alguma forma, queria me impressionar, mostrar algo assustador ou bizarro. As fotos que coloquei na postagem anterior lembram uma história que virou piada entre alguns amigos mais próximos, quando contei que ele me mostrara um caixãozinho e perguntou se eu queria ver o que havia dentro. Como respondi que não, na época ele riu e meus amigos também se riram da história. Desta vez, quando ele falou novamente do caixão, pedi para abrir, pois queria fazer uma foto. Ele disse que o espírito estava ali, mas era invisível, que eu veria um caixão vazio, mas que o espírito estava ali.


Num outro momento, Valsaint insistia em dizer que é mesmo um servidor do diabo. Aí lhe perguntei, mas Ogou não é Saint Jacques Majeur? Ele respondeu que sim... E perguntei-lhei mas então, como é que um santo católico pode ser um servidor do diabo? Se ele serve à Ogou e ao Baron Criminel, como é que ele serve ao diabo? Ele disse que servia com as duas mãos... A esquerda e a direita. Se eu quisesse, se eu lhe pedisse, ele disse que pode matar alguém. Fazer uma expedição para fazer o mal. A escolha é minha...


Fiquei intrigado... Ele disse, o Baron é o próprio diabo! Ele é o diabo... E ria...


Naturalmente, essa idéia de relação com o diabo, tão forte aqui no Haiti, nasce exatamente de uma influência significativa do catolicismo no mundo social do vodu. Não se pode falar em vodu no Haiti sem estar olhando para o catolicismo.


Um amigo que está aqui no Haiti recebeu uma incumbência de conseguir uma imagem do loa (lwa) correspondente ao orixá de um outro amigo. Quando ele me perguntou como faria para comprar uma imagem, tal como aquelas que hoje são comuns dos orixás africanos no Brasil, respondi-lhe que ele conseguiria no máximo uma imagem de um santo católico ou teria que conseguir uma estampa ou camisa com véve correspondente ao loa. As imagens dos loas aqui no Haiti são imagens católicas. São Tiago (Saint Jacques) é Ogou, mas diferente da relação que os cariocas fazem com o Santo Guerreiro, São Jorge, e o Ogum dos terreiros, onde as coisas aparecem separadas pelos praticantes da religião (lembro a famosa frase de Mãe Menininha "Santa Bárbara não é Iansã" e o Manifesto contra o Sincretismo, assinado por diversos pais e mais de santo baianos, entre eles a própria Menininha e Mãe Stella de Oxóssi), para os voduissants não parecer haver distinção alguma.


O que espanta mais é que supostamente dentro das concepções espiritualistas africanas, o diabo não existiria. Essa acaba sendo uma questão fundamental sobre a forma que os cultos às divindades africanas assumem no contexto das Américas e do Caribe. A continuidade entre a África e as práticas religiosas daqui fica em xeque, ou a suposta defesa da pureza africana é falaciosa. Mas de outro lado, como tratar dessa memória mítica da África? Esse é exatamente o ponto. Pouco importa se na África havia ou não o diabo, importa como os contatos entre africanos e europeus e afro-americanos e europeus produziram e reelaboraram seus sistemas de crença em relação uns com os outros. Se para o candomblé no Brasil, Exu não é o diabo, o Baron Cémetiére ou o Baron Samedi estão para o diabo, como Seu Sete Encruzilhadas e Exu Caveira estão.


Mesmo com as tentativas de domesticação destes princípios operadas pela chamada "Umbanda Branca" ou "Umbanda Esotérica" (pegando um pouco de empréstimo, muito superficialmente, as considerações de Renato Ortiz em "A morte branca do feiticeiro negro"), ou as operações de perseguição que marcaram historicamente a relação das elites haitianas com o vodu, tudo nos leva a crer que se não se trata do diabo, se trata realmente de potências incontroláveis, bárbaras, que precisam sempre ser contidas.


Se no Haiti foram sempre as elites mulatas que "diabolizaram" a religião vodu, foi o racismo da classe média branca no Brasil que agiu como esse operador que constrói o discurso do diabo nas religiões africanas.


O que ninguém contava é que os agentes sociais aceitassem essa "diabolização" e reformulassem ela em termos de outras formas de exercício de poder. Poder receber e controlar o poder do Diabo é uma forma de controlar o mundo, de fazer o possível num mundo onde tudo conspira contra você. É criar uma alternativa capaz de enfrentar a miséria diária e o sofrimento que afeta diariamente o haitiano.


Mme. Evance talvez tenha razão. O diabo é forte no Haiti. Deveria sê-lo mais, porque seria capaz de enfrentar as forças de um falso deus que sempre tentou domesticar e controlar esse povo, de tirar a sua força e sua capacidade de mover a roda da história a seu favor. Foi ao lado do "diabo" que os revolucionários haitianos derrotaram a França, a Espanha e a Inglaterra cristãs, que defendiam a escravidão, a exploração do homem pelo homem e todos os males que vinham junto com a fé cristã e o capitalismo.


Abraços a todos