quarta-feira, 28 de maio de 2008

Impressões

Depois de algum tempo sem fazer nenhuma postagem, não sei se por falta de inspiração ou por preguiça, andei refletindo sobre uma questão que é recorrente por aqui e, em especial, para os estrangeiros que vêm ao país: o “problema do Estado Haitiano”.

Na verdade, mais do que tratar deste “problema”, a impressão que muitos estrangeiros temos no Haiti é exatamente o contrário, que não se trata de um problema, posto que o Estado Moderno “não existe ou não se realiza no Haiti”. Esta visão, atravessada de prescrições normativas sobre o modo de funcionamento das relações sociais e as formas de regulação destas, é demasiado complicada e prejudica a observação da realidade daqui, sem que as coisas sejam encaradas sempre pelo que chamo de “lógica falta”: “falta Estado”, logo, “faltam educação, comida, segurança, hospitais, etc.”. Do mesmo modo que as intervenções no espaço haitiano são exatamente fundadas nesta lógica: “O Haiti não tem segurança: damos a ele a Minustah”, “O Haiti não tem médicos, damos cooperação na área de saúde”, tudo que é feito por aqui parece operar com esse paradigma: é preciso “cobrir” estas “faltas”.

Mas precisamos nos perguntar até onde tais “faltas” não refletem de modo exato essa visão normativa, que impõe um modelo de funcionamento das coisas que não se realiza no mundo real, mas que corresponde a um ideal inatingível para sociedades “falíveis” ou “failble states”. Trata-se de pensar que diversas formas de intervenção no Haiti foram historicamente construídas a partir destas considerações: “o Haiti e os haitianos não são capazes de se governar, governemos por eles”.

É preciso também ter na cabeça que os mundos sociais são organizados exatamente a partir de formas sociais que não correspondem aos nossos ideais, e que certos universalismos senão todos no limite acabam sendo perigosas maneiras de estabelecer controle sobre os sujeitos que organizam seus mundos em torno de regras particulares. Não defendo aqui que tenhamos que sair do Haiti, todos os estrangeiros e pessoas que atuam no país como cooperantes, diplomatas, militares, agentes de diversas extrações, e que deixemos que eles resolvam seus conflitos de maneira interna, apenas este tipo de consideração, de que estamos aqui para “ajuda-los a resolver seus problemas”, já me causa arrepios. Porém, as imagens que vimos pela tv ou documentários diversos sobre os conflitos anteriores à chegada da Minustah e toda sua entourage despertam pânico, da mesma forma que diversas experiências pelo mundo, tais como Darfur, Timor, Ruanda, Serra Leoa, Bósnia, etc. colocam em xeque quaisquer idéias simplista sobre “autonomia dos povos”.

Os conceitos de autonomia e soberania dos povos são mais complexos do que parecem, não são apenas uma forma normativa de ordenar relações entre países, mas uma forma de estabelecer limites nas formas de agir sobre estes países. Acho mesmo que tais noções são extensões da noção moderna de indivíduo sobre coletividades e “nações”.

Um fato que salta aos olhos na primeira impressão sobre o Haiti é o alto grau de mercantilização da sociedade local. Todo lugar é potencialmente um mercado, e todo sujeito é potencialmente um mercador/consumidor. Isto parece simples, mas se pensarmos no alto grau de desregulamentação do país, nas formas de fiscalização e ordenamento do espaço público que passam ao largo do Estado, que aliás, independem absolutamente deste, na idéia de que a chamada “economia formal” no Haiti é incapaz de responder pelos fluxos de pessoas e mercadorias, no alto grau internacionalização da economia e na desregulamentação das relações de trabalho, se juntarmos todos estes aspectos, o Haiti é o modelo perfeito de país neoliberal.

Se não julgamos o país pelas suas “faltas”, mas exatamente pela forma que as coisas assumiram aqui, um Estado que permite um alto grau de liberdade econômica para os diversos agentes é, de fato, um modelo perfeito de sociedade neoliberal. Talvez seria necessário refinar estas idéias, mas parece perfeitamente possível perceber que alguma coisa deu errado no modelo neoliberal. E se deu errado, deu por aqui, no Haiti.

Não é preciso que eu repita, por exemplo, que qualquer indivíduo com pouco mais de US$ 2 está plenamente habilitado a se estabelecer nas ruas como comerciante. Talvez o mais complexo disto fosse saber quem, se não é o Estado, responde pela ocupação do espaço. No entanto, é muito significativo o fato de que diversas casas de família vendem “fritaj” ou “boisson glacê” nas suas portas, por vezes ocupando as calçadas. “Fritaj” é nome dado aos alimentos fritos vendidos em barracas na rua. Alguém controla esta ocupação do espaço. E eu creio, pessoalmente, que cabe exatamente ao Estado estabelecer formas de diálogo com a população através destes interlocutores responsáveis pela gestão, tida por alguns como “caótica”, do espaço público.

Mesmo que se trate de, como disse em conversa informal meu amigo João, “construir o Estado a partir da domesticação dos interesses privados”, a luta para organizar o espaço público depende sempre de estabelecer uma interlocução precisa entre estes agentes públicos. Eis me aqui criticando o idealismo de certas concepções de espaço público e de política, oferecendo um outro idealismo...

O que entendo de fato é que faz se necessária uma perspectiva que seja mais habilitada a entender como se constrói o espaço público por aqui, como os atores sociais chegam à estabelecer uma “ordem pública”?

Outro dia, fui ao bairro pobre de Des Ermites, uma favela em Pétion Ville, onde há uma capela católica que foi transformada em santuário vodu, em honra à Ezili Dantor. Escolhi este lugar como um espaço privilegiado para a minha pesquisa e para talvez entender melhor como se estabelecem certos processos sociais no Haiti. A vizinhança pobre com vielas e rotas pedregosas que nos dias de chuva podem causar tombos e acidentes mais graves.

Pois bem, há duas semanas voltava da capela, pela rota, quando deparei com um grupo de pessoas trabalhando na rota, e com uma caixa de papelão pediam contribuições para fazer melhorias na rota. Não acho que isto seja um modelo a ser seguido, quando os cidadãos, na ausência da ação do Estado, tomam para si o dever de melhorar as condições das vias públicas. Porém, o que se vê é que, naquele lugar, as pessoas têm plena consciência de que as vias são um bem público e que eles devem zelar por elas e garantir seu bom estado, para sua própria segurança.

Ora, o que mais ouço por aqui é “os haitianos não têm noção de espaço público”. E esta pequena situação entre muitas outras demonstram que não é bem assim. O que parece faltar a todos é exatamente isto: meios para agir. De um lado, há uma esperança de que a cooperação internacional, a Minustah e todos que estão por aqui, “façam algo pelo Haiti”. Porém, a coisa não se processa desta forma. O país precisa de um projeto nacional, de meios para enfrentar a crise, meios que não provém destes organismos internacionais, mas de uma vontade política de organizar e criar onde as coisas são muito precárias. De outro lado, há uma voz permanente das elites locais, de diversas extrações, que parecem aceitar certa incapacidade de mudar as coisas, aquilo que Nelson Rodrigues chamava de “Complexo de Vira-Lata”, quando se referia à incapacidade de nosso futebol de vencer uma Copa do Mundo, mas que refletia de uma maneira geral o sentimento do brasileiro diante dos outros povos do mundo.

Pobre Haiti? O país com o menor IDH das Américas? Sim, de fato... Como mudar?

Este é o ponto. O Haiti é capaz de encontrar as suas saídas, não a partir de certas regras pré-determinadas em manuais sobre desenvolvimento, Estado e Sociedade, mas exatamente a partir das formas locais, particulares e exclusivas de um povo singular e ao mesmo tempo universal em sua experiência humana. O Haiti pode nos ensinar muito sobre o futuro do mundo. A pergunta a ser feita é se, de fato, estamos prontos para aprender com quem julgamos “inferiores”.

Um comentário:

João Marcelo Maia disse...

Zé, engraçado que nego não percebe que o próprio modelão moderno clássico faz água até nos países centrais. Por exemplo, como a clássica noção republicana francesa de "público" lida com as milhares de muçulmanas com véu?? E a revolta dos jovens de origem africana nos subúrbios, eles não expressam um mal-estar que não pode ser regulado pelos instrumentos clássicos. tipo "inclusão", "sociedade civil" etc??
Nesse sentido, concordo contigo que a periferia pode ser um local ideal para refletir sobre novos modos de organizar a vida em geral...