quarta-feira, 16 de abril de 2008

O DIABO E O VODU




- Le diable est especiallement fort nan peyi d'Ayiti, nan Afrique - diz Mme. Evance

- Poukisa? -pergunto

- Paske nan peyi d'Ayiti genyen anpil hougán, anpil mambo. Li sont tout serviteur des esprit. Et les esprit son le Diable! responde Mme. Evance

- Men lè le esprit Bondieu manifeste nan église protestant? Kijan ou fét pou reconnais si est yon esprit de Dieu ou le diable?

- Nan église la seul le esprit Bondieu manifeste!


Este diálogo que mescla palavras em creóle e francês foi travado por mim e a cozinheira de Laennec, Mme. Evance. Conversávamos sobre Deus e o Diabo, quando Mme. Evance disse que "O diabo é especialmente forte no Haiti e na África". Perguntei-lhe o por quê disse, ela respondeu que nestes lugares há vários "servidores dos espíritos, mas que no fundo servem ao Diabo". Provocativamente, disse a ela que os espíritos se manifestam também nas igrejas pentecostais, e como era possível reconhecer a diferença entre a manifestação de um espírito numa igreja e os espíritos que possuem as mambos e ougáns (sacerdotes vodu). Sua resposta foi seca e direta: Na igreja só se manifesta o espírito de Deus!


Mme. Evance ainda me diria que o Haiti tem muito Maçon Loge, que os maçons daqui são todos ligados ao vodu.


Levei um tempo para refletir sobre isso e lembrei do meu primeiro encontro com Valsaint. Aliás, com exceção dos ougáns de La Saline, que fizeram sempre questão de falar de seu poder mágico, mas sem tentar com isso despertar medo ou terror, às vezes até omitindo algumas informações, sempre que tenho um primeiro contato com um ougán, ele sempre insiste em tentar provocar algum medo ou terror, falando de coisas místicas ou de poderes incontroláveis. Não sei se o que ocorreu em La Saline foi diferente em função da mediação de Herold, que me apresentava como "um estudante, pesquisador de antropologia, iniciado no culto vodu brasileiro", e isto transformava a relação entre eu e ougáns como uma relação entre iguais, numa troca de conhecimentos, mas realmente nesta situação ninguém falou do diabo.


O próprio Herold já me falara de uma distinção entre os ougáns, entre "aqueles que só trabalham para o mal", para fazer "magi nwa" ou "feitiçaria", que ele chama de "macoutes", e os outros ougáns, que tem poder para fazer o mal, mas preferem trabalhar com curas espirituais (guérison), para ajudar numa "expedition" (trabalhos de contra magia) ou para obter "une chance" (sorte no jogo). O fato é que sempre se fala em "trabalhos para a mão direita e para a mão esquerda".


No meu primeiro encontro com Valsaint sempre senti que ele, de alguma forma, queria me impressionar, mostrar algo assustador ou bizarro. As fotos que coloquei na postagem anterior lembram uma história que virou piada entre alguns amigos mais próximos, quando contei que ele me mostrara um caixãozinho e perguntou se eu queria ver o que havia dentro. Como respondi que não, na época ele riu e meus amigos também se riram da história. Desta vez, quando ele falou novamente do caixão, pedi para abrir, pois queria fazer uma foto. Ele disse que o espírito estava ali, mas era invisível, que eu veria um caixão vazio, mas que o espírito estava ali.


Num outro momento, Valsaint insistia em dizer que é mesmo um servidor do diabo. Aí lhe perguntei, mas Ogou não é Saint Jacques Majeur? Ele respondeu que sim... E perguntei-lhei mas então, como é que um santo católico pode ser um servidor do diabo? Se ele serve à Ogou e ao Baron Criminel, como é que ele serve ao diabo? Ele disse que servia com as duas mãos... A esquerda e a direita. Se eu quisesse, se eu lhe pedisse, ele disse que pode matar alguém. Fazer uma expedição para fazer o mal. A escolha é minha...


Fiquei intrigado... Ele disse, o Baron é o próprio diabo! Ele é o diabo... E ria...


Naturalmente, essa idéia de relação com o diabo, tão forte aqui no Haiti, nasce exatamente de uma influência significativa do catolicismo no mundo social do vodu. Não se pode falar em vodu no Haiti sem estar olhando para o catolicismo.


Um amigo que está aqui no Haiti recebeu uma incumbência de conseguir uma imagem do loa (lwa) correspondente ao orixá de um outro amigo. Quando ele me perguntou como faria para comprar uma imagem, tal como aquelas que hoje são comuns dos orixás africanos no Brasil, respondi-lhe que ele conseguiria no máximo uma imagem de um santo católico ou teria que conseguir uma estampa ou camisa com véve correspondente ao loa. As imagens dos loas aqui no Haiti são imagens católicas. São Tiago (Saint Jacques) é Ogou, mas diferente da relação que os cariocas fazem com o Santo Guerreiro, São Jorge, e o Ogum dos terreiros, onde as coisas aparecem separadas pelos praticantes da religião (lembro a famosa frase de Mãe Menininha "Santa Bárbara não é Iansã" e o Manifesto contra o Sincretismo, assinado por diversos pais e mais de santo baianos, entre eles a própria Menininha e Mãe Stella de Oxóssi), para os voduissants não parecer haver distinção alguma.


O que espanta mais é que supostamente dentro das concepções espiritualistas africanas, o diabo não existiria. Essa acaba sendo uma questão fundamental sobre a forma que os cultos às divindades africanas assumem no contexto das Américas e do Caribe. A continuidade entre a África e as práticas religiosas daqui fica em xeque, ou a suposta defesa da pureza africana é falaciosa. Mas de outro lado, como tratar dessa memória mítica da África? Esse é exatamente o ponto. Pouco importa se na África havia ou não o diabo, importa como os contatos entre africanos e europeus e afro-americanos e europeus produziram e reelaboraram seus sistemas de crença em relação uns com os outros. Se para o candomblé no Brasil, Exu não é o diabo, o Baron Cémetiére ou o Baron Samedi estão para o diabo, como Seu Sete Encruzilhadas e Exu Caveira estão.


Mesmo com as tentativas de domesticação destes princípios operadas pela chamada "Umbanda Branca" ou "Umbanda Esotérica" (pegando um pouco de empréstimo, muito superficialmente, as considerações de Renato Ortiz em "A morte branca do feiticeiro negro"), ou as operações de perseguição que marcaram historicamente a relação das elites haitianas com o vodu, tudo nos leva a crer que se não se trata do diabo, se trata realmente de potências incontroláveis, bárbaras, que precisam sempre ser contidas.


Se no Haiti foram sempre as elites mulatas que "diabolizaram" a religião vodu, foi o racismo da classe média branca no Brasil que agiu como esse operador que constrói o discurso do diabo nas religiões africanas.


O que ninguém contava é que os agentes sociais aceitassem essa "diabolização" e reformulassem ela em termos de outras formas de exercício de poder. Poder receber e controlar o poder do Diabo é uma forma de controlar o mundo, de fazer o possível num mundo onde tudo conspira contra você. É criar uma alternativa capaz de enfrentar a miséria diária e o sofrimento que afeta diariamente o haitiano.


Mme. Evance talvez tenha razão. O diabo é forte no Haiti. Deveria sê-lo mais, porque seria capaz de enfrentar as forças de um falso deus que sempre tentou domesticar e controlar esse povo, de tirar a sua força e sua capacidade de mover a roda da história a seu favor. Foi ao lado do "diabo" que os revolucionários haitianos derrotaram a França, a Espanha e a Inglaterra cristãs, que defendiam a escravidão, a exploração do homem pelo homem e todos os males que vinham junto com a fé cristã e o capitalismo.


Abraços a todos

Nenhum comentário: