segunda-feira, 14 de abril de 2008

O PRESIDENTE E O PAÍS




Contei numa postagem anterior que tive um encontro mais do que casual com o Presidente do Haiti. Hoje, passando pelas ruas de Jacmel, fui abordado por estudantes e depois, encontrei M. Serge, dono de um cyber café, que falaram de Preval. Todos são unânimes em apontar que as raízes dos problemas que o país atravessa estão fundadas exatamente numa certa atitude de Préval, que se demonstra incapaz de agir e quando age não dá nenhuma impressão de que suas ações possam realmente surtir efeito.



Quanto a mim, nenhum encontro superficial pode causar alguma impressão que não seja absolutamente falsa sobre as coisas, e por mais que acreditemos que "a primeira impressão é a que fica", não poderia dizer nada de muito profundo sobre o presidente do Haiti. Mas de outro lado, os fatos que se seguiram a este encontro, toda a situação que forjou ele, o evidente confronto entre Marcelin e Préval naquele dia, velhos militantes políticos do país, o jogo de provocações mútuas que pouco podíamos entender que se desenrolava e a crise que explodiu uma semana depois permitem, como sempre digo, fazer um relato impressionista sobre o presidente. E é disso que vou falar. Vou, sem nenhum compromisso intelectual mais profundo, fazer relações entre aquele encontro e o desenrolar da crise da última semana.



Como contei, havíamos chegado de Cité Soleil, onde fomos com Marcelin, que faz lá um projeto de pesquisa/intervenção baseado nas demandas locais sobre os problemas. O projeto de Marcelin parte de uma percepção local de que, a despeito de todos os projetos de intervenção de ONGs em Cité Soleil, muito pouco aconteceu que mudasse efetivamente a vida das pessoas. As ONGs estão lá, o dinheiro chega, os projetos existem, mas Cité Soleil não avança sobre os reais problemas e, principalmente, não supera os estigmas ligados ao lugar. Isto posto, Marcelin propôs uma discussão com os agentes políticos locais, líderes, chefes de organizações populares, atores sociais envolvidos no cotidiano local, a prefeitura de Cité Soleil (sim, a maior favela do Haiti é uma cidade, com administração autônoma - seria como dizer que a Rocinha se tornasse um município). O objetivo desta discussão é organizar estes agentes e que eles proponham uma pauta de pesquisa que parta de seus próprios interesses e não dos acadêmicos ou agências de cooperação que olham e se debruçam sobre Cité Soleil.



Não sei até onde este tipo de idéia pode funcionar, mas o simples fato de ter uma idéia como essa já é bastante significativo e os resultados disto podem ser, no mínimo, muito interessantes. Poucas vezes vemos os atores sociais os quais estudamos pautarem nossas pesquisas. Voltamos ao Olofsson muito satisfeitos e animados com o que poderia acontecer no sábado, onde haveria um grande fórum. Marcelin estava elétrico quando chegamos ao Olofssoon, para que ele conversasse com Christophe Wargny, do Le Monde Diplomatique. Marcelin havia convidado-o para ir à Cité Soleil naquela sexta, porém, em virtude de sua agenda, Wargny disse que não poderia ir. Disse, no entanto, que queria conversar com ele sobre Cité Soleil.


Quando Marcelin chegou para falar com Wargny, este estava tomando um rum na varanda do Olofsson com Préval, e convidou-o a se juntar aos dois para conversar. Os outros havíamos seguido imediatamente para o quarto, onde conversávamos numa ante-sala, quando fomos chamados para descer e falar com o Presidente do Haiti. Como já contei, quase que não levo a sério o convite, afinal, o que é que o presidente do país ia querer comigo?


A conversa com o presidente foi esquisita. Esquisita pelo local, pela ausência total de protocolo, pelo inusitado de um estudante de doutorado em antropologia ser instado a falar com o presidente de um país. Há que se estranhar também o fato de estarmos sentados em uma varanda de um hotel, em Carrefour des Feuilles, uma das áreas onde nas semanas seguintes haveriam os mais pesados e violentos protestos contra o seu governo. Era inusitado que, num país onde os protestos assumiram a face que todos viram pela TV nos últimos dias, o presidente pudesse sentar na varanda de um bar ou hotel de Copacabana para conversar com amigos.


O que me incomodou especialmente foi a sua atitude quando era feita qualquer pergunta sobre os problemas dos país, sobre Cité Soleil e a pobreza violenta que ataca a maior parte dos habitantes do país. Quando perguntado sobre as organizações populares, ele apenas dizia que o "o povo prescinde do Estado para se organizar. O país tem que encontrar o seu caminho e é o próprio povo quem tem que fazer este caminho". A pergunta óbvia que nos incomodava era exatamente: Sim, presidente, e que caminho o senhor acha que o país tem que seguir? Escorregadio como uma cobra ensaboada, Preval se esquivava de qualquer resposta ou posição.


Causava até uma certa irritação suas declarações sobre o povo. Não era um desprezo ou um elitismo, mas uma espécie de indiferença, que parecia dizer algo sobre uma impotência do poder do presidente em mudar efetivamente as coisas. Não era uma indiferença prepotente, mas uma indiferença estranha, de quem conhece o drama, mas parece não mais acreditar nos instrumentos que dispõe para operar uma transformação efetiva. Não havia mau-caratismo nisso, apenas uma impotência que produz uma indiferença e uma indiferença que leva à inação.


Isso leva a pensar sobre o exercício do poder em países como o Haiti. Boa parte dos investimentos no país dependem essencialmente da cooperação internacional. A parte mais fundamental e essencial da segurança pública no país é feita pela Minustah, que ajuda a reorganizar e a dirigir a polícia nacional. É praticamente nula a capacidade de arrecadação do Estado e, com efeito, a possibilidade de investimento público é mínima. O país não tem reservas próprias de gás e combustíveis, essenciais para o funcionamento do país. O que pode um presidente fazer num quadro como este?


Nada?


Talvez, mas no mínimo, seria importante ele demonstrar vontade de fazer. Um desejo de potência que seria justamente a força capaz de fazer destas impossibilidades as armas para a criação de alternativas. Infelizmente, este não é Préval. Aliás, falta ao Haiti exatamente este tipo de líder, gente com vocação par criar um jardim de pedras em pleno deserto. Essa gente existe aqui, dispersa em meio as massas que protestam, que se matam e são mortas nestes conflitos. Pode ser que neste exato momento esteja sendo gestado no meio da massa um líder, um novo Louverture, um novo Dessalines, que possa conduzir este país à sua nova revolução.


Abraços




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