terça-feira, 10 de junho de 2008

"Antropologices" ou "A maldição"


Cada vez que converso com um hatiano que encontro pelo caminho das minhas pesquisas sobre o vodu, tenho a impressão de que muitos haitianos crêem que seu país sofre de algum tipo de maldição proferida por Deus ou pelos deuses.




Tenho percebido que há por aqui entre os cristãos, católicos, voduissants e protestantes,uma idéia muito forte de um Deus todo poderoso, ciumento e vingador, imagem que entre nós brasileiros parece muito mais recorrente em certas versões do protestantismo, referidas ao Deus do antigo testamento. Fosse tal visão apenas partilhada pelos religiosos, não pareceria estranho, no entanto, ela parece também atravessar de alguma forma a visão de certos intelectuais daqui sobre o seu país.




Enquanto para os religiosos a visão de mundo é atravessada por crenças em divindades sobrenaturais, em poderes superiores e inexplicáveis, pela ação de entidades maléficas exteriores aos homens, ou ainda que são parte de uma natureza pervertida da espécie humana, uma natureza marcada pelo pecado original, entre os intelectuais este pecado original está na Cultura. Cultura autoritária, cultura da violência, cultura da barbárie, cultura "macoute", cultura da "marronage", estão entre muitas associações entre o termo cultura e os males da nação.



Num certo sentido a cultura aparece como um deus ex-machina capaz de resolver e explicar todos os problemas, conferir sentido racional a tudo aquilo que parece fora de ordem ou desarrumado. Em outras palavras, a cosmologia de certa parcela dos intelectuais daqui pode ser enquadrada nos mesmos marcos que as explicações nativas sobre um suposto mal de raiz, uma "natureza" dos haitianos voltada para o mal, apoiadas nas crenças religiosas de católicos, voduissants e protestantes.



Para estes, o mal de raiz viria exatamente do ato de nascença do Haiti: o Sacrifício de Bois Caiman.



Tido como o ato que deflagrou a luta de independência na região norte do país, que uniu os escravos e eclodiu a revolta nas fazendas da região, Bois Caiman é um mito de origem nacional que faz uma associação perfeita entre construção nacional e vodu. Para quem não conhece a história do Haiti, Bois Caiman foi o local onde se realizou uma grande cerimônia vodu, liderada pelo jamaicano Boukman, que organizou os escravos e deu início à luta de independência, onde teria sido sacrificado um porco ou cem porcos às divindades vodu.



Por si só tal ato criaria uma cisão irreconciliável entre o movimento de racionalização, essencial às construção de uma ordem moderna e republicana, e as crenças ancestrais africanas, símbolos por excelência do atraso e da irracionalidade. Como criar uma nação a partir disto? Seria como se algum pintor "espírito de porco" pintasse o Grito do Ipiranga com D. Pedro com as calças na mão, depois de obrar, montado em um burrico. Nada mais realista e menos heróico.



Aliás, é deste modo que se estabelece de maneira perfeita o pecado original dos intelectuais, a ligação perfeita entre cultura haitiana e atraso: não é a razão instrumental que cria uma nação, não é esta que cria o novo mundo pós-colonial no Haiti, não é desta que brota uma nação, mas de seu extremo oposto: é a magia, o encanto e o mito que estão por trás da criação da nova nação. Eis o lugar onde a cultura aparece...



E este ato, Bois Caiman, é quase uma condenação à danação eterna: jamais será possível fazer prevalecer a razão num mundo onde os agentes mágicos se fazem tão presentes e com tamanha força. Não será possível criar uma nação sob os olhos de Deus onde os djab / esprit sejam tão fortes.



Evans-Pritchard escreveu um clássico sobre os Azande, conseguindo demonstrar que através da bruxaria é possível perceber um esquema racional capaz de explicar o funcionamento do mundo e do infortúnio. Fez isso sem recorrer ao esquema evolucionista spenceriano baseado no tripé magia-religião-ciência. Lévi-Strauss foi ainda mais longe ao perceber que os esquemas do "pensamento selvagem" e o pensamento mítico não estão tão distantes assim da "racionalidade" dos sistemas ditos "científicos".



O fato de estarmos fazendo pesquisa no Haiti nos oferece uma visão privilegiada para investigar espaços de pensamento "não purificados", onde oposições binárias não são capazes de explicar com precisão a complexidade da vida social. Seqüências binárias do tipo atraso/modernidade, racional/irracional, rural/urbano não são suficientes para entender o que se passa por aqui. É um mundo de milhões de telefones celulares pelos quais loup garrou e djab diversos se comunicam o tempo todo. As oposições rígidas não servem senão como um exercício heurístico permanentemente descartável. Usamos uma oposição binária no primeiro parágrafo, para descartá-la no segundo, sobretudo quando somos colocados diante de situações sociais reais, empíricas.



Aliás, somente estas situações sociais, as "cenas sociais" que Florence Weber propõe, interações momentâneas de caráter durável ou não, é que nos permitem perceber o quanto e como as tensões se evidenciam entre os modelos analíticos e o mundo que observamos. São exatamente as relações sociais e os sentidos atribuídos às ações pelos agente que talvez nos permitem compreender o que se passa por aqui no Haiti e talvez no resto do mundo.

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