Catherine e Simone: as duas jovens e o futuro pela frente... Futuro?
Catherine e Simone são duas jovens de Jacmel, são primas. Perto da casa dos vinte anos, ambas já concluíram seus estudos secundários, no entanto, não têm muitas perspectivas sobre o que farão no futuro mais próximo... Tentar uma faculdade seria bom, no entanto, são poucas as vagas na Université d’Etat e uma universidade particular é cara. A escolha por uma faculdade em Port au Prince ainda implicaria em custos maiores, como habitação, alimentação, entre outras coisas. Isso demandaria, talvez, trabalhar enquanto cursam a faculdade. E os empregos simplesmente não existem em Jacmel e são escassos em Port au Prince. Perguntam-me se existem faculdades e empregos no Brasil, se é fácil fazer uma faculdade... Respondo-lhes que talvez... Isso depende... Mas no meu íntimo, depois de tantos anos, começo a crer que as perspectivas no Brasil para um jovem que termina o secundário, que são tão poucas, são assustadoramente maiores do que as daqui... Ambas falam de ir para “Saint Domingue” (como chamam por aqui a República Dominicana) seguindo a trilha de tios e do irmão mais velho, atrás de emprego... Para talvez não voltar...
Wilson é estudante de ciências sociais. Fala seis idiomas, entre eles o português, além do créole... Aliás, não são poucos os poliglotas por aqui. Não raro é possível encontrar gente que fala no mínimo duas línguas além do créole (normalmente o francês e mais uma, quase sempre espanhol ou inglês), é claro, entre os que possuem pelo menos o nível secundário. Wilson está no fim de seu curso. Morador de Martissant, uma das zonas mais pobres e violentas dos arredores de Port au Prince, ele gostaria de fazer um mestrado ou doutorado no exterior, mas antes precisa de dinheiro para terminar o seu curso, por isso se vira em diversos “bicos” como intérprete e tradutor para sobreviver. Sabe que só conseguirá alcançar seu objetivo se tiver uma bolsa de estudos e um bilhete para sair do país... Para sair e talvez não voltar... Seu irmão mais novo é um ativo militante de uma igreja protestante e Wilson torce para que ele siga o caminho missionário para sair do país... E, provavelmente, não voltar...
Pierre é professor de línguas... Formado em Letras e História, leciona em uma pequena escola na localidade de Carrefour Durandisse, na rota entre Leôgane e Jacmel. Pierre fala nada menos que quatro idiomas: créole, francês, inglês e espanhol. Para complementar o baixíssimo salário de professor numa escola comunitária, trabalha à tarde como moto-taxista em Jacmel. Sabe que com sua formação tem poucas perspectivas... Sonha sair do país, para, provavelmente, não voltar...
O “talvez não voltar” sempre aparece como uma possibilidade forte. Afinal, todos falam em voltar. Sobretudo, porque estas idas para o exterior têm íntima relação com o envio de dinheiro para ajudar a família que fica no país. Aliás, esta parece ser boa parte da renda da maior parte das famílias pobres do país. Desde a minha primeira chegada ao Haiti me chamaram atenção duas coisas: o imenso número de lojas de loteria popular, a “borlette”, e as casas de remessa de dinheiro Western Union, Unitransfer, CAM. Algumas destas como a Unitransfer têm tal grau de sofisticação, que oferecem além das remessas de dinheiro, remessas de alimentos, com entrega no local de moradia. A CAM oferece uma chamada internacional gratuita para EUA e Canadá para aqueles que optam por utilizar seus serviços, para confirmar o recebimento do dinheiro enviado.
Ferdinand é técnico de informática, especialista e redes e suporte. Mora já há seis anos no Canadá, em Ottawa. Vem ao país todo ano para três semanas de férias. É um apaixonado conhecedor de nosso futebol. Vem ao país especialmente para matar a saudade da comida, do calor, da amizade e de uma alegria que, segundo, ele parece cada vez mais distante do dia a dia dos haitianos.
Muitos falam de uma permanente degradação da vida e do espaço público. Alguns mais velhos, curiosamente, elogiam a ordem e a organização da vida pública sob o regime ditatorial de Duvalier. Falam até com certo saudosismo das qualidades das condições de vida e das vias públicas, do controle da ocupação das ruas, sobre o fato do país não ter problemas com o abastecimento de energia elétrica. É claro que poucos consideram os aspectos que ensejaram a explosão demográfica que concentrou um quarto da população do país na capital nos últimos vinte anos.
Já entre as classes populares de Port au Prince é muito comum encontrar gente que apóia claramente o presidente deposto Jean Bertrand Aristide. Em Jacmel, não se vê tanta gente que apóie Aristide, mas na capital é interessante notar a força que este ainda exerce tanto sobre seus partidários mais inflamados, quanto para a gente comum das ruas. Consideram que Aristide tinha uma preocupação particular com os problemas das classes populares, e que sua queda beneficiou apenas determinada parte da burguesia nacional. Entre estes, mas, sobretudo, entre uma grande parcela dos intelectuais, Aristide é quase como um conjuro, um espírito maligno, algo a ser extirpado e exorcizado do país. Não há espaço para ponderações, a conversa começa a partir do ponto de que Aristide é um inimigo do país, um ilusionista perverso, que criou, tanto perante a população local, quanto perante uma boa parcela da comunidade internacional, a imagem de um líder popular, de líder progressista.
Estas reações apaixonadas vão desde uma (pelo menos para mim, por enquanto) não comprovada ligação direta entre o ex-presidente e o tráfico internacional de drogas, que teria tido sua vida facilitada durante seu governo, até os reais escândalos que envolvem o enriquecimento pessoal de um ex-padre católico por conta dos processos de privatização das telecomunicações no país. Seu carisma, no entanto, impressiona. E estas reações apaixonadas, de parte a parte mais ainda. Há gente que acuse seus defensores de “mechants”, criminosos, que estariam defendendo o interesse das gangues violentas que explodiram nos bairros pobres em 2004 após a sua partida.
Este processo, aliás, é curioso... Dou-lhes a minha interpretação, que muito pouco tem a ver com uma “verdade dos fatos”, mas que se apóia numa percepção impressionista do processo que antecedeu a saída de Aristide e tudo que ocorreu na sua seqüência. Essa impressão se tornou forte especialmente ao assistir alguns documentários que foram no período dos últimos quatro anos. Essa percepção é corroborada através de conversas com pessoas de extração variada no país, intelectuais, militantes estudantis, “gente comum”, etc.
Os documentários que assisti se dividem exatamente por esta tensão, por este conflito em escolher um lado, e levam-nos a discutir o já tão debatido tema da neutralidade jornalística, da “verdade dos fatos”. O filme de Nicolas Rossier, um suíço radicado no Canadá, por exemplo, é questionador e polêmico para mim, porque foi um dos poucos filmes que se pergunta até onde a queda de Aristide não obedeceu senão a outros interesses que muito pouco tem a ver com a “vontade do povo”. O filme, intitulado “Haïti, un chaos interminable”, foi exibido inicialmente na TV canadense, mas depois reeditado, com cenas acrescentadas, tais como uma entrevista exclusiva com Aristide no exílio, e se encontra na internet com o nome de “Une revolution sans fin – Aristide et l’avenir incertain d’Haïti”.
Outro documentário interessantíssimo é “GNB kont Atilla”, de Arnold Antonin. Este filme mostra a interessante luta dos estudantes contra Aristide nos momentos que antecederam sua queda. Embora seja de tendência radicalmente oposta ao primeiro, é um relato bem interessante sobre toda a movimentação de setores politicamente organizados para resistir a uma suposta tentativa de golpe da parte de Aristide. A idéia de que Aristide pretendesse ficar no poder por mais do que os cinco anos constitucionalmente estipulados foi exatamente o leitmotiv da construção dos argumentos em sua oposição. O filme ilustra, a meu ver, que o medo difuso de uma suposta ditadura comandada por partidários de Aristide foi o motor da organização de uma forte resistência de diversos setores e organizou numa outra ponta resistência armada. De outro lado, o filme mostra também a organização dos estudantes e sua luta contra uma polícia violenta e despreparada e, sobretudo, contra os partidários de Aristide, os “chiméres”, chefes locais de bairros pobres e favelas, que se tornam chefes de gangues criminosas. Este é o tema de outro documentário, “The Ghosts of Cité Soleil”, exibido no Brasil como “As gangues de Cité Soleil”.
Dirigido por Asger Leth e produzido pelo rapper Wyclef Jean (ex-Fugees), o filme é um interessante relato do processo de ascensão das gangues e da queda de Aristide. Acusado por intelectuais daqui de “romantizar as gangues”, o filme mostra, no entanto, um retrato significativo do processo que tirou Aristide do poder. Do meu ponto de vista parece ser claro que Aristide não contando com uma força armada nacional, para garantir seus poderes constitucionais (as forças armadas do país foram dissolvidas por ele em seu primeiro mandato presidencial, logo após a sua volta em 1994, com o fim do golpe de Estado), não podendo confiar na Polícia Nacional Haitiana, ainda sob forte influência dos militares golpistas de 1991 e mesmo dos Tonton Macoutes, do regime de Duvalier, o presidente se vê obrigado a formar uma espécie de “guarda de segurança particular” com seus partidários mais inflamados dos bairros pobres, em especial, de Cité Soleil. Ao armar estas “gangues” dos bairros pobres, Aristide acende o estopim que vai detonar a sua queda, pois será justamente daí que virá a desconfiança sobre um projeto de se manter no poder indefinidamente.
Há ainda um estranho filme, sem créditos, sem diretor ou qualquer referência, intitulado “Aristide the Truth”, que é feito em seqüência. Pude ver apenas uma parte que diz respeito ao golpe de 1991 e à volta de Aristide em 1994, já sob o apoio de Bill Clinton e dos “marines” americanos. Sua seqüência contaria exatamente a história da volta ao poder e da queda em 2004, mas ainda não encontrei-a disponível para venda. O filme tenta ser “imparcial” ao mostrar as ambigüidades da figura de Aristide. Sua oscilação entre um discurso radicalmente contra os EUA, enquanto padre ligado à teologia da libertação, e sua volta ao poder sob os auspícios de Bill Clinton, presidente do país que combatia em seus antigos discursos. O filme também mostra as ligações entre os militares golpistas de 1991 e a famosa “Escola das Américas”, como Raoul Cedras, presidente golpista, e seus assessores foram formados nesta, assim como uma suposta influência de George Bush Pai no processo que ensejou o golpe militar. Aliás, curiosamente, o filme de Nicolas Rossier faz uma associação entre o fato do golpe de 1991 contra Aristide ter se dado no governo de Bush pai, e a queda de 2004, foi sob o governo de Bush filho. É curioso, no entanto, que uma força internacional organizada por EUA e França tenha se antecipado à formação e aprovação do mandato da Minustah pela ONU, visando “garantir o governo provisório e evitar eventuais violações dos direitos humanos no país”.
Como disse todos estes filmes levam a uma única conclusão: a ambigüidade da figura de Jean Bertrand Aristide. Sua força junto à maioria da população impressiona. Mas ao mesmo tempo, falar seu nome é como conjurar um espírito maligno. Seus partidários evitam falar, mas é evidente que eles são uma maioria significativa, ao mesmo tempo, que aqueles que são contra, fora dos círculos da elite local e dos intelectuais, raramente se manifestam, temendo reações inflamadas de seus partidários. E isto nos leva de volta a Cathy, Simone, Wilson, Pierre e Ferndinand...
O que poderia fazer estas pessoas desejarem ficar em seu país?
Não sei. Lembro que numa determinada época, era forte o fluxo migratório de brasileiros para os EUA, e ainda hoje não é nada desprezível. Mas ao mesmo tempo, vejo que ao longo dos últimos 20 anos foram inúmeros concursos públicos, a despeito dos ferozes ataques, as universidades públicas têm, não apenas aumentado o seu número de vagas, mas iniciado um controvertido processo de políticas de inclusão, o atual governo tem investido massivamente na criação de novas universidades públicas e fortalecido a pós-graduação através de bolsas e editais de pesquisa, a inclusão de setores através do consumo e do crédito às classes D e E tem propiciado uma rota de crescimento ao país, o emprego cresce, ainda que timidamente...
Penso nisso e olho para o fato de que, a despeito das várias críticas à classe política do Brasil, isto decorre de um PROJETO DE NAÇÃO. Em que pesem as críticas à má formação de nossos parlamentares, ao despreparo de nossa classe política e a uma suposta corrupção endêmica desta, todos estes problemas são contrapostos exatamente ao alto nível de uma parcela importante da elite parlamentar, à formação de quadros técnicos em alto nível nos últimos 40 anos, a uma burocracia estatal capaz de fazer a máquina pública funcionar (sim, o Estado no Brasil, funciona e muito bem em muitos aspectos) e o aproveitamento destes quadros em setores chave ao desenvolvimento do país, bem como as recentes transformações, tal como a recuperação do rumo do investimento público, sem o qual não é possível haver desenvolvimento algum.
Perguntam-me meus amigos haitianos se tem emprego no Brasil?
Não sei...
Sei que o país deles necessita urgentemente de um projeto capaz de oferecer perspectivas para eles que, mesmo que saiam, tenham como voltar e como trabalhar no país.
Este, aliás, é o problema de Ferdinand, de Pierre e de Wilson quando conseguir de formar... São técnicos formados com bom nível de preparação para serem incluídos no mercado de trabalho, no entanto, a pergunta que ocorre é qual mercado de trabalho? Ferdinand conseguiu sair para o Canadá, país que é constantemente acusado por aqui de “roubar cérebros”. Mas e os outros dois? Quais serão as perspectivas de trabalho para estes aqui no país? E as meninas, que ainda nem chegaram à universidade?
Recentemente, um rapaz me abordou numa festa junina realizada pela Embaixada Brasileira, que reuniu não apenas brasileiros que estão no país, trabalhando na cooperação internacional, na embaixada, soldados da Minustah, mas também os alunos haitianos de língua portuguesa do CEB – Centro de Estudos Brasileiros. Falando um correto português, disse: “Senhor, eu gostaria de saber como eu faço para trabalhar para Minustah. Além de falar português, eu falo espanhol e francês. O senhor pode me apresentar o chefe da Minustah?”. Sem graça, lhe sorri amarelo e disse-lhe que não podia fazer muita coisa por ele, que sou apenas um estudante brasileiro aqui no Haiti. Alguns minutos depois seria apresentado a um dos comandantes brasileiros aqui no país, que me deu um cartão e disse que o procurasse diante de qualquer problema ou necessidade.
Fiquei com o cartão na mão, pensando no rapaz... Claro que não podia mesmo ajudá-lo. Mas fiquei assustado com isso, com essa falta de perspectiva de trabalho e com essa abordagem tão direta e sincera pedindo um emprego no meio de uma festa. Em que pese o inconveniente de tal atitude, ela é no mínimo corajosa, e pensei no que leva alguém a agir de tal maneira. Não achei uma resposta.
Assim como não tenho uma resposta quando pergunto às minhas amigas Catherine e Simone o que elas pretendem fazer no futuro... Elas respondem que não sabem, e perguntam, brincando, se quero levá-las para o Brasil quando eu voltar... Respondo, também brincando, que sim... Elas talvez levem a sério sua pergunta e a minha resposta... Não sei... Tal como Aristide e todas as coisas aqui, mas talvez todas as coisas da vida, tudo é muito ambíguo...
Catherine e Simone são duas jovens de Jacmel, são primas. Perto da casa dos vinte anos, ambas já concluíram seus estudos secundários, no entanto, não têm muitas perspectivas sobre o que farão no futuro mais próximo... Tentar uma faculdade seria bom, no entanto, são poucas as vagas na Université d’Etat e uma universidade particular é cara. A escolha por uma faculdade em Port au Prince ainda implicaria em custos maiores, como habitação, alimentação, entre outras coisas. Isso demandaria, talvez, trabalhar enquanto cursam a faculdade. E os empregos simplesmente não existem em Jacmel e são escassos em Port au Prince. Perguntam-me se existem faculdades e empregos no Brasil, se é fácil fazer uma faculdade... Respondo-lhes que talvez... Isso depende... Mas no meu íntimo, depois de tantos anos, começo a crer que as perspectivas no Brasil para um jovem que termina o secundário, que são tão poucas, são assustadoramente maiores do que as daqui... Ambas falam de ir para “Saint Domingue” (como chamam por aqui a República Dominicana) seguindo a trilha de tios e do irmão mais velho, atrás de emprego... Para talvez não voltar...
Wilson é estudante de ciências sociais. Fala seis idiomas, entre eles o português, além do créole... Aliás, não são poucos os poliglotas por aqui. Não raro é possível encontrar gente que fala no mínimo duas línguas além do créole (normalmente o francês e mais uma, quase sempre espanhol ou inglês), é claro, entre os que possuem pelo menos o nível secundário. Wilson está no fim de seu curso. Morador de Martissant, uma das zonas mais pobres e violentas dos arredores de Port au Prince, ele gostaria de fazer um mestrado ou doutorado no exterior, mas antes precisa de dinheiro para terminar o seu curso, por isso se vira em diversos “bicos” como intérprete e tradutor para sobreviver. Sabe que só conseguirá alcançar seu objetivo se tiver uma bolsa de estudos e um bilhete para sair do país... Para sair e talvez não voltar... Seu irmão mais novo é um ativo militante de uma igreja protestante e Wilson torce para que ele siga o caminho missionário para sair do país... E, provavelmente, não voltar...
Pierre é professor de línguas... Formado em Letras e História, leciona em uma pequena escola na localidade de Carrefour Durandisse, na rota entre Leôgane e Jacmel. Pierre fala nada menos que quatro idiomas: créole, francês, inglês e espanhol. Para complementar o baixíssimo salário de professor numa escola comunitária, trabalha à tarde como moto-taxista em Jacmel. Sabe que com sua formação tem poucas perspectivas... Sonha sair do país, para, provavelmente, não voltar...
O “talvez não voltar” sempre aparece como uma possibilidade forte. Afinal, todos falam em voltar. Sobretudo, porque estas idas para o exterior têm íntima relação com o envio de dinheiro para ajudar a família que fica no país. Aliás, esta parece ser boa parte da renda da maior parte das famílias pobres do país. Desde a minha primeira chegada ao Haiti me chamaram atenção duas coisas: o imenso número de lojas de loteria popular, a “borlette”, e as casas de remessa de dinheiro Western Union, Unitransfer, CAM. Algumas destas como a Unitransfer têm tal grau de sofisticação, que oferecem além das remessas de dinheiro, remessas de alimentos, com entrega no local de moradia. A CAM oferece uma chamada internacional gratuita para EUA e Canadá para aqueles que optam por utilizar seus serviços, para confirmar o recebimento do dinheiro enviado.
Ferdinand é técnico de informática, especialista e redes e suporte. Mora já há seis anos no Canadá, em Ottawa. Vem ao país todo ano para três semanas de férias. É um apaixonado conhecedor de nosso futebol. Vem ao país especialmente para matar a saudade da comida, do calor, da amizade e de uma alegria que, segundo, ele parece cada vez mais distante do dia a dia dos haitianos.
Muitos falam de uma permanente degradação da vida e do espaço público. Alguns mais velhos, curiosamente, elogiam a ordem e a organização da vida pública sob o regime ditatorial de Duvalier. Falam até com certo saudosismo das qualidades das condições de vida e das vias públicas, do controle da ocupação das ruas, sobre o fato do país não ter problemas com o abastecimento de energia elétrica. É claro que poucos consideram os aspectos que ensejaram a explosão demográfica que concentrou um quarto da população do país na capital nos últimos vinte anos.
Já entre as classes populares de Port au Prince é muito comum encontrar gente que apóia claramente o presidente deposto Jean Bertrand Aristide. Em Jacmel, não se vê tanta gente que apóie Aristide, mas na capital é interessante notar a força que este ainda exerce tanto sobre seus partidários mais inflamados, quanto para a gente comum das ruas. Consideram que Aristide tinha uma preocupação particular com os problemas das classes populares, e que sua queda beneficiou apenas determinada parte da burguesia nacional. Entre estes, mas, sobretudo, entre uma grande parcela dos intelectuais, Aristide é quase como um conjuro, um espírito maligno, algo a ser extirpado e exorcizado do país. Não há espaço para ponderações, a conversa começa a partir do ponto de que Aristide é um inimigo do país, um ilusionista perverso, que criou, tanto perante a população local, quanto perante uma boa parcela da comunidade internacional, a imagem de um líder popular, de líder progressista.
Estas reações apaixonadas vão desde uma (pelo menos para mim, por enquanto) não comprovada ligação direta entre o ex-presidente e o tráfico internacional de drogas, que teria tido sua vida facilitada durante seu governo, até os reais escândalos que envolvem o enriquecimento pessoal de um ex-padre católico por conta dos processos de privatização das telecomunicações no país. Seu carisma, no entanto, impressiona. E estas reações apaixonadas, de parte a parte mais ainda. Há gente que acuse seus defensores de “mechants”, criminosos, que estariam defendendo o interesse das gangues violentas que explodiram nos bairros pobres em 2004 após a sua partida.
Este processo, aliás, é curioso... Dou-lhes a minha interpretação, que muito pouco tem a ver com uma “verdade dos fatos”, mas que se apóia numa percepção impressionista do processo que antecedeu a saída de Aristide e tudo que ocorreu na sua seqüência. Essa impressão se tornou forte especialmente ao assistir alguns documentários que foram no período dos últimos quatro anos. Essa percepção é corroborada através de conversas com pessoas de extração variada no país, intelectuais, militantes estudantis, “gente comum”, etc.
Os documentários que assisti se dividem exatamente por esta tensão, por este conflito em escolher um lado, e levam-nos a discutir o já tão debatido tema da neutralidade jornalística, da “verdade dos fatos”. O filme de Nicolas Rossier, um suíço radicado no Canadá, por exemplo, é questionador e polêmico para mim, porque foi um dos poucos filmes que se pergunta até onde a queda de Aristide não obedeceu senão a outros interesses que muito pouco tem a ver com a “vontade do povo”. O filme, intitulado “Haïti, un chaos interminable”, foi exibido inicialmente na TV canadense, mas depois reeditado, com cenas acrescentadas, tais como uma entrevista exclusiva com Aristide no exílio, e se encontra na internet com o nome de “Une revolution sans fin – Aristide et l’avenir incertain d’Haïti”.
Outro documentário interessantíssimo é “GNB kont Atilla”, de Arnold Antonin. Este filme mostra a interessante luta dos estudantes contra Aristide nos momentos que antecederam sua queda. Embora seja de tendência radicalmente oposta ao primeiro, é um relato bem interessante sobre toda a movimentação de setores politicamente organizados para resistir a uma suposta tentativa de golpe da parte de Aristide. A idéia de que Aristide pretendesse ficar no poder por mais do que os cinco anos constitucionalmente estipulados foi exatamente o leitmotiv da construção dos argumentos em sua oposição. O filme ilustra, a meu ver, que o medo difuso de uma suposta ditadura comandada por partidários de Aristide foi o motor da organização de uma forte resistência de diversos setores e organizou numa outra ponta resistência armada. De outro lado, o filme mostra também a organização dos estudantes e sua luta contra uma polícia violenta e despreparada e, sobretudo, contra os partidários de Aristide, os “chiméres”, chefes locais de bairros pobres e favelas, que se tornam chefes de gangues criminosas. Este é o tema de outro documentário, “The Ghosts of Cité Soleil”, exibido no Brasil como “As gangues de Cité Soleil”.
Dirigido por Asger Leth e produzido pelo rapper Wyclef Jean (ex-Fugees), o filme é um interessante relato do processo de ascensão das gangues e da queda de Aristide. Acusado por intelectuais daqui de “romantizar as gangues”, o filme mostra, no entanto, um retrato significativo do processo que tirou Aristide do poder. Do meu ponto de vista parece ser claro que Aristide não contando com uma força armada nacional, para garantir seus poderes constitucionais (as forças armadas do país foram dissolvidas por ele em seu primeiro mandato presidencial, logo após a sua volta em 1994, com o fim do golpe de Estado), não podendo confiar na Polícia Nacional Haitiana, ainda sob forte influência dos militares golpistas de 1991 e mesmo dos Tonton Macoutes, do regime de Duvalier, o presidente se vê obrigado a formar uma espécie de “guarda de segurança particular” com seus partidários mais inflamados dos bairros pobres, em especial, de Cité Soleil. Ao armar estas “gangues” dos bairros pobres, Aristide acende o estopim que vai detonar a sua queda, pois será justamente daí que virá a desconfiança sobre um projeto de se manter no poder indefinidamente.
Há ainda um estranho filme, sem créditos, sem diretor ou qualquer referência, intitulado “Aristide the Truth”, que é feito em seqüência. Pude ver apenas uma parte que diz respeito ao golpe de 1991 e à volta de Aristide em 1994, já sob o apoio de Bill Clinton e dos “marines” americanos. Sua seqüência contaria exatamente a história da volta ao poder e da queda em 2004, mas ainda não encontrei-a disponível para venda. O filme tenta ser “imparcial” ao mostrar as ambigüidades da figura de Aristide. Sua oscilação entre um discurso radicalmente contra os EUA, enquanto padre ligado à teologia da libertação, e sua volta ao poder sob os auspícios de Bill Clinton, presidente do país que combatia em seus antigos discursos. O filme também mostra as ligações entre os militares golpistas de 1991 e a famosa “Escola das Américas”, como Raoul Cedras, presidente golpista, e seus assessores foram formados nesta, assim como uma suposta influência de George Bush Pai no processo que ensejou o golpe militar. Aliás, curiosamente, o filme de Nicolas Rossier faz uma associação entre o fato do golpe de 1991 contra Aristide ter se dado no governo de Bush pai, e a queda de 2004, foi sob o governo de Bush filho. É curioso, no entanto, que uma força internacional organizada por EUA e França tenha se antecipado à formação e aprovação do mandato da Minustah pela ONU, visando “garantir o governo provisório e evitar eventuais violações dos direitos humanos no país”.
Como disse todos estes filmes levam a uma única conclusão: a ambigüidade da figura de Jean Bertrand Aristide. Sua força junto à maioria da população impressiona. Mas ao mesmo tempo, falar seu nome é como conjurar um espírito maligno. Seus partidários evitam falar, mas é evidente que eles são uma maioria significativa, ao mesmo tempo, que aqueles que são contra, fora dos círculos da elite local e dos intelectuais, raramente se manifestam, temendo reações inflamadas de seus partidários. E isto nos leva de volta a Cathy, Simone, Wilson, Pierre e Ferndinand...
O que poderia fazer estas pessoas desejarem ficar em seu país?
Não sei. Lembro que numa determinada época, era forte o fluxo migratório de brasileiros para os EUA, e ainda hoje não é nada desprezível. Mas ao mesmo tempo, vejo que ao longo dos últimos 20 anos foram inúmeros concursos públicos, a despeito dos ferozes ataques, as universidades públicas têm, não apenas aumentado o seu número de vagas, mas iniciado um controvertido processo de políticas de inclusão, o atual governo tem investido massivamente na criação de novas universidades públicas e fortalecido a pós-graduação através de bolsas e editais de pesquisa, a inclusão de setores através do consumo e do crédito às classes D e E tem propiciado uma rota de crescimento ao país, o emprego cresce, ainda que timidamente...
Penso nisso e olho para o fato de que, a despeito das várias críticas à classe política do Brasil, isto decorre de um PROJETO DE NAÇÃO. Em que pesem as críticas à má formação de nossos parlamentares, ao despreparo de nossa classe política e a uma suposta corrupção endêmica desta, todos estes problemas são contrapostos exatamente ao alto nível de uma parcela importante da elite parlamentar, à formação de quadros técnicos em alto nível nos últimos 40 anos, a uma burocracia estatal capaz de fazer a máquina pública funcionar (sim, o Estado no Brasil, funciona e muito bem em muitos aspectos) e o aproveitamento destes quadros em setores chave ao desenvolvimento do país, bem como as recentes transformações, tal como a recuperação do rumo do investimento público, sem o qual não é possível haver desenvolvimento algum.
Perguntam-me meus amigos haitianos se tem emprego no Brasil?
Não sei...
Sei que o país deles necessita urgentemente de um projeto capaz de oferecer perspectivas para eles que, mesmo que saiam, tenham como voltar e como trabalhar no país.
Este, aliás, é o problema de Ferdinand, de Pierre e de Wilson quando conseguir de formar... São técnicos formados com bom nível de preparação para serem incluídos no mercado de trabalho, no entanto, a pergunta que ocorre é qual mercado de trabalho? Ferdinand conseguiu sair para o Canadá, país que é constantemente acusado por aqui de “roubar cérebros”. Mas e os outros dois? Quais serão as perspectivas de trabalho para estes aqui no país? E as meninas, que ainda nem chegaram à universidade?
Recentemente, um rapaz me abordou numa festa junina realizada pela Embaixada Brasileira, que reuniu não apenas brasileiros que estão no país, trabalhando na cooperação internacional, na embaixada, soldados da Minustah, mas também os alunos haitianos de língua portuguesa do CEB – Centro de Estudos Brasileiros. Falando um correto português, disse: “Senhor, eu gostaria de saber como eu faço para trabalhar para Minustah. Além de falar português, eu falo espanhol e francês. O senhor pode me apresentar o chefe da Minustah?”. Sem graça, lhe sorri amarelo e disse-lhe que não podia fazer muita coisa por ele, que sou apenas um estudante brasileiro aqui no Haiti. Alguns minutos depois seria apresentado a um dos comandantes brasileiros aqui no país, que me deu um cartão e disse que o procurasse diante de qualquer problema ou necessidade.
Fiquei com o cartão na mão, pensando no rapaz... Claro que não podia mesmo ajudá-lo. Mas fiquei assustado com isso, com essa falta de perspectiva de trabalho e com essa abordagem tão direta e sincera pedindo um emprego no meio de uma festa. Em que pese o inconveniente de tal atitude, ela é no mínimo corajosa, e pensei no que leva alguém a agir de tal maneira. Não achei uma resposta.
Assim como não tenho uma resposta quando pergunto às minhas amigas Catherine e Simone o que elas pretendem fazer no futuro... Elas respondem que não sabem, e perguntam, brincando, se quero levá-las para o Brasil quando eu voltar... Respondo, também brincando, que sim... Elas talvez levem a sério sua pergunta e a minha resposta... Não sei... Tal como Aristide e todas as coisas aqui, mas talvez todas as coisas da vida, tudo é muito ambíguo...
2 comentários:
Oi, Zé Renato,
Muito legal o seu blog. Já o li quase inteiro. É para mim uma espécie de diário rechados de impressões muito pertinentes sobre o Haiti. Trocamos alguns e-mails há tempos, antes de você viajar ao Haiti, e coincidetemente cheguei ao seu blog na internet. Só que já grande e robusto. Parabéns aí. Fiz até um post sobre você no meu blog.
http://aloisiomilani.wordpress.com/
É isso, abraço, Aloisio.
Zé, só quando nos deparamos com países em que o Estado está despedaçado nos damos conta da sofisticação comparativa da máquina pública brasileira. Um amigo estava comentando comigo que o Brasil talvez fizesse mais pelo Paraguai ajudando o país a montar uma eficiente Receita Federal do que renegociando Itaipu.
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