É possível que toda esta irritação seja mesmo decorrente de meu cansaço e de minha vontade de voltar para casa. Pode ser que não. Pode ser apenas a constatação de que as pessoas que vieram das mais diversas partes do mundo para "ajudar a estabilizar e desenvolver o Haiti" não entendem absolutamente nada sobre relações humanas. Ou melhor, estes entendem mas apenas de uma maneira de pensar que opera com uma redução do "outro" a um "inferior". Em minhas primeiras aulas de antropologia aprendi uma fórmula que até hoje repito como uma máxima que permita compreender as formas de tratamento das diferenças culturais: não confundir alteridade com inferioridadade.
Em primeiro lugar, a simples ideia de que alguém venha de algum lugar para outro "ajudar alguém" já supõe algo um tanto estranho. Sim, porque pressupõe alguém que tem "necessidades" e que alguém venha "atender" estas. Pressupõe uma "falta" de um lado, do lado de quem recebe, e a "abundância" do lado de quem doa. Pressupõe, enfim, "força" de um lado, e "fraqueza", do outro.
Este jogo de palavras não e apenas um jogo, mas exprime uma relação de poder. Há, enfim, um lado que tudo pode, dotado de toda potência de fazer, de realizar coisas, e um lado desprovido de qualquer poder, de qualquer autonomia. Há de um lado, tudo, de outro nada. Não há cultura, não há linguagem, não há nada. Há um vazio que será preenchido com "cultura", "educação", "desenvolvimento", "democracia". Estamos diante de relações que transformam qualquer diferença em uma relação de subalternidade.
Conversando com alguns membros da Missão da ONU é fácil perceber que esta relação não se refere especificamente ao Haiti, mas a todos os lugares onde se encontram as missões das Nações Unidas. Militares e civis chegam a estes países imbuídos de "nobres valores civilizatorios" e encontram "populações mergulhadas no obscurantismo e em tradições culturais inúteis que impedem a chegada do desenvolvimento". Nunca o ideal iluminista da civilização esteve tão presente, e creio que nem mesmo no século XIX, nos processos de colonização da África e Ásia deste período, pudéssemos encontrar uma visão tão redutora da diferença como esta que os modelos de intervenção humanitária colocam. Na verdade, revestido deste verniz "humanitário" encontramos a pior forma possível de colonialismo, escondido sobre camadas de boas intenções.
Comentam estes mesmos que estes povos "não querem ser ajudados", "não estão prontos para democracia", "não são racionais". Com estas afirmações, sustentadas pelas suas vastas experiências ao redor do mundo com os mais variados povos, estes "agentes da civilização" especializam-se em teorizar sobre "a influência do clima no desenvolvimento dos povos", constatando que as zonas quentes do mundo são menos desenvolvidas antes em função da abundância de meios, mas também por uma preguiça crônica destes povos. Percebem que as culturas tradicionais são um empecilho para o desenvolvimento de novas técnicas de produção "mais racionais". Que estes povos se recusam a aceitar uma educação para o desenvolvimento pois encontram-se apegados aos seus costumes tradicionais. Um caminhão de preconceitos e estereótipos que desembarca junto aos bem intencionados "soldados da paz". Não bastasse apenas tal caminhão desembarcar, é ele que orienta os laços entre estes agentes e a população local. Há pouco ou nenhum esforço em compreender que a diferença cultural não se processa em termos qualitativos.
Essa ideia de estar se relacionando com alguém que é (naturalmente?) inferior é ainda mais cruel que aquelas relações coloniais do século XIX, que se sustentavam em teorias racistas e num arraigado etnocentrismo. Não, agora, pelo contrário, eles são "humanos" como nós e, de fato, eles são "até" movidos pelos mesmos princípios. Mas seu estado de confusão mental e seu atraso crônico impedem eles de pensar de maneira racional e coerente. A perversão é mais perigosa ainda, pois eles são "iguais" porque partilham de uma mesma essência que nos faz humanos. O problema é que "eles ainda não nos alcançaram". Nós somos, de alguma forma, sempre melhores do aqueles a quem ajudamos...
Enquanto for este o pressuposto de qualquer ação humanitária coordenada pelas Nações Unidas, todas as missões da mesma natureza que esta missão de estabilização no Haiti estão condenadas a um fragoroso fracasso.
Estranho o fato de que as missões da ONU impedem qualquer vínculo entre seus integrantes e a população local, que não seja no âmbito de relações de trabalho. Logo, você tem que trabalhar com o povo, mas não pode se envolver com eles. Envolver-se significa conhecer sua cultura, seus hábitos, sua maneira de ser, imiscuir-se na vida cotidiana destas pessoas. Como ajudar alguém que não conheço?
O pressuposto da ajuda humanitária, porém, é a impessoalidade... Sim, não há relações entre pessoas, mas entre sujeitos (aquele que doa ou que ajuda) e objetos (aquele que recebe ou é ajudado). A impessoalidade é tal que não se deve conhecer o nome ou a vida das pessoas, senão quando necessário...
Eis então o ponto... Como um cego, alguém que não enxerga o outro como sujeito, mas como um objeto, aquele que não pode ver o outro, pode tentar guiar este outro por algum caminho?
Na verdade, os povos "ajudados" não estão, nem um pouco cegos, pelo contrário, enxergam perfeitamente e com o passar do tempo cada vez melhor. O problema é que aqueles que querem guiar estes povos, estes sim, são cronicamente cegos: sua cegueira não lhes permite ver sua própria estupidez e sua ignorância. Reputam a estes povos uma cegueira e ignorância que não existe senão neles mesmos. Porém, estes insistem em afirmar que sabem o caminho e em apontar as saídas.
Não sei como e nem quando, mas sei apenas que se não mudarem os pressupostos destas "Missões de Paz" ou "Ajuda Humanitária" o mundo caminha invariavelmente numa espiral de exclusão e de acirramento dos conflitos num prazo não muito longo...
Cuidado com o despertar dos povos colonizados. Uma vez houve um Haiti... Da segunda vez haverá centenas de milhares de Haitis espocando pelo "mundo civilizado" e desta vez não será possível conter o grito por dois séculos.
Em primeiro lugar, a simples ideia de que alguém venha de algum lugar para outro "ajudar alguém" já supõe algo um tanto estranho. Sim, porque pressupõe alguém que tem "necessidades" e que alguém venha "atender" estas. Pressupõe uma "falta" de um lado, do lado de quem recebe, e a "abundância" do lado de quem doa. Pressupõe, enfim, "força" de um lado, e "fraqueza", do outro.
Este jogo de palavras não e apenas um jogo, mas exprime uma relação de poder. Há, enfim, um lado que tudo pode, dotado de toda potência de fazer, de realizar coisas, e um lado desprovido de qualquer poder, de qualquer autonomia. Há de um lado, tudo, de outro nada. Não há cultura, não há linguagem, não há nada. Há um vazio que será preenchido com "cultura", "educação", "desenvolvimento", "democracia". Estamos diante de relações que transformam qualquer diferença em uma relação de subalternidade.
Conversando com alguns membros da Missão da ONU é fácil perceber que esta relação não se refere especificamente ao Haiti, mas a todos os lugares onde se encontram as missões das Nações Unidas. Militares e civis chegam a estes países imbuídos de "nobres valores civilizatorios" e encontram "populações mergulhadas no obscurantismo e em tradições culturais inúteis que impedem a chegada do desenvolvimento". Nunca o ideal iluminista da civilização esteve tão presente, e creio que nem mesmo no século XIX, nos processos de colonização da África e Ásia deste período, pudéssemos encontrar uma visão tão redutora da diferença como esta que os modelos de intervenção humanitária colocam. Na verdade, revestido deste verniz "humanitário" encontramos a pior forma possível de colonialismo, escondido sobre camadas de boas intenções.
Comentam estes mesmos que estes povos "não querem ser ajudados", "não estão prontos para democracia", "não são racionais". Com estas afirmações, sustentadas pelas suas vastas experiências ao redor do mundo com os mais variados povos, estes "agentes da civilização" especializam-se em teorizar sobre "a influência do clima no desenvolvimento dos povos", constatando que as zonas quentes do mundo são menos desenvolvidas antes em função da abundância de meios, mas também por uma preguiça crônica destes povos. Percebem que as culturas tradicionais são um empecilho para o desenvolvimento de novas técnicas de produção "mais racionais". Que estes povos se recusam a aceitar uma educação para o desenvolvimento pois encontram-se apegados aos seus costumes tradicionais. Um caminhão de preconceitos e estereótipos que desembarca junto aos bem intencionados "soldados da paz". Não bastasse apenas tal caminhão desembarcar, é ele que orienta os laços entre estes agentes e a população local. Há pouco ou nenhum esforço em compreender que a diferença cultural não se processa em termos qualitativos.
Essa ideia de estar se relacionando com alguém que é (naturalmente?) inferior é ainda mais cruel que aquelas relações coloniais do século XIX, que se sustentavam em teorias racistas e num arraigado etnocentrismo. Não, agora, pelo contrário, eles são "humanos" como nós e, de fato, eles são "até" movidos pelos mesmos princípios. Mas seu estado de confusão mental e seu atraso crônico impedem eles de pensar de maneira racional e coerente. A perversão é mais perigosa ainda, pois eles são "iguais" porque partilham de uma mesma essência que nos faz humanos. O problema é que "eles ainda não nos alcançaram". Nós somos, de alguma forma, sempre melhores do aqueles a quem ajudamos...
Enquanto for este o pressuposto de qualquer ação humanitária coordenada pelas Nações Unidas, todas as missões da mesma natureza que esta missão de estabilização no Haiti estão condenadas a um fragoroso fracasso.
Estranho o fato de que as missões da ONU impedem qualquer vínculo entre seus integrantes e a população local, que não seja no âmbito de relações de trabalho. Logo, você tem que trabalhar com o povo, mas não pode se envolver com eles. Envolver-se significa conhecer sua cultura, seus hábitos, sua maneira de ser, imiscuir-se na vida cotidiana destas pessoas. Como ajudar alguém que não conheço?
O pressuposto da ajuda humanitária, porém, é a impessoalidade... Sim, não há relações entre pessoas, mas entre sujeitos (aquele que doa ou que ajuda) e objetos (aquele que recebe ou é ajudado). A impessoalidade é tal que não se deve conhecer o nome ou a vida das pessoas, senão quando necessário...
Eis então o ponto... Como um cego, alguém que não enxerga o outro como sujeito, mas como um objeto, aquele que não pode ver o outro, pode tentar guiar este outro por algum caminho?
Na verdade, os povos "ajudados" não estão, nem um pouco cegos, pelo contrário, enxergam perfeitamente e com o passar do tempo cada vez melhor. O problema é que aqueles que querem guiar estes povos, estes sim, são cronicamente cegos: sua cegueira não lhes permite ver sua própria estupidez e sua ignorância. Reputam a estes povos uma cegueira e ignorância que não existe senão neles mesmos. Porém, estes insistem em afirmar que sabem o caminho e em apontar as saídas.
Não sei como e nem quando, mas sei apenas que se não mudarem os pressupostos destas "Missões de Paz" ou "Ajuda Humanitária" o mundo caminha invariavelmente numa espiral de exclusão e de acirramento dos conflitos num prazo não muito longo...
Cuidado com o despertar dos povos colonizados. Uma vez houve um Haiti... Da segunda vez haverá centenas de milhares de Haitis espocando pelo "mundo civilizado" e desta vez não será possível conter o grito por dois séculos.