"Sobre o incidente em frente ao Palácio você tem interlocutor previlegiado.
Porquê nào o busca para saber a verdade e o que está sendo feito para comprová-la pra o grande público?
Você está cansado fisicamente. Isto é um fato. Até que ponto isto influencia a sua observação apaixonada deste país que amamos?"
Escreveu um anônimo no meu blog...
Ok. Em primeiro lugar, teríamos que qualificar aquilo que chamamos de verdade. Uma das verdades incontestáveis é que o sujeito que foi morto em frente à Catedral de Port au Prince tomou mesmo um tiro. Outra verdade é que parece que nossos "Soldados da Paz" atiraram mesmo em direção aos "manifestantes" que saíam de uma (perigosa?) missa na Catedral de Port au Prince, uma celebração aparentemente pacífica à morte de uma liderança popular, o Padre Jean Juste.
Ainda que eu duvidasse disto ou mesmo que estivesse enganado, creio que meu cansaço nada tem a ver com o meu juízo sobre os fatos.
Quanto à minha irritação, bem ela talvez seja um fato, mas não decorre do cansaço, decorre por exemplo, de ouvir de outro interlocutor privilegiado que, realmente, do ponto de vista militar esta missão é marcada pela coragem e pela decisão no agir do comando brasileiro, o que é visto em termos de missões da ONU como algo positivo, sendo que, no entanto, do ponto de vista dos direitos humanos (isto não se refere de modo absoluto à intervenção brasileira, mas à missão como um todo), esta missão apresentaria falhas graves. Portanto, não acho que esteja faltando com a verdade quando faço as minhas críticas a esta missão, mas apenas apresento o meu ponto de vista, sem patriotadas exageradas.
Militares tem grande dificuldade em aceitar os seus erros. Uma vez conversando com um oficial das forças armadas, este se recusava a aceitar que houve uma ditadura e que esta ditadura matou e torturou pessoas. E quanto a tortura este dizia apenas que ela existe em todo lugar. Ora, suponho que a partir disto esta pessoa não veja defeito em torturar alguém, se for por um bom motivo. A velha máxima de Maquiavel, "os fins justificam os meios" (fica aqui uma pergunta: como se define um "bom motivo" para justificar a tortura?). Quanto à ditadura, ele me dizia que foram realizadas eleições. O que ele esquecia de dizer é que, em 1978, quando o partido da ditadura perdeu as eleições, eles criaram senadores e governadores "biônicos", garantindo assim a eleição do candidato militar nas eleições indiretas para presidente, João Figueiredo. Eis o que os militares daquela época chamavam de democracia. Isso mudou? Espero... História. O que isso teria a ver com a presente discussão? Esclareço.
Errar é humano. Eu erro, ainda bem. Não sou perfeito. Mas não "falseio com a verdade," porque "verdade" pode ser um ponto de vista. O meu é esse, doa a quem doer. Não tenho compromisso algum com as Nações Unidas e nem com os militares brasileiros que estão aqui, senão alguns laços de camaradagem com algumas pessoas que penso serem boas pessoas. Seria mais honesto e sensato reconhecer erros e corrigi-los. No entanto, isto parece ser difícil, não parece ser a prática nas missões de paz da ONU. Eu não confundo, porém, as coisas. Sobretudo porque pessoas que vivem aqui como eu e um comentador deste blog, que me critica por apresentar o meu "ponto de vista antropológico", uma delegação de haitianos foi ao Congresso Nacional demandar de nossos senadores a retirada do Brasil da MINUSTAH. Acho que este é um argumento bem mais "verdadeiro" que o meu e de meu simpático comentador e crítico, posto que venha de haitianos insatisfeitos com a situação do país e a presença da ONU aqui.
Ou não, é apenas mais um ponto de vista que deve ser considerado. A única coisa que "meu ponto de vista antropológico" faz é considerar todos os demais pontos de vista, sem assumir o meu como "único e verdadeiro" sobre esta questão. Meu comentador também não considera o pressuposto deste blog: são relatos impressionistas. Eu não sou jornalista, nem porta-voz de ninguém. Meu amigo e grande intelectual Fred Coelho tem exaltado exatamente isto na net: sua capacidade de oferecer diversos pontos de vista. Aqueles que criticam o meu, terão todo espaço aqui mesmo para apresentar o seu.
Quando analiso uma situação, eu não olho para indivíduos. Para mim estes não existem, senão quando inscritos em configurações sociais. E o que vejo aqui é sempre uma maneira de reduzir os haitianos a uma condição de inferioridade. Daí o título da postagem: Alteridade Redutora. Sim, porque há um pressuposto que a diferença é sempre entendida em termos qualitativos.
Não ignoro as virtudes da "Ajuda Humanitária" e das "boas intenções" destas missões. Espanta-me, no entanto, ao conversar com pessoas que participaram de outras intervenções da ONU em outros lugares do mundo, perceber exatamente isto: estes povos são incapazes de se governar, governemos por eles. Uns exaltam o fato da ONU em algumas missões ter assumido o Estado, e por isso ter garantido a condução do processo de democratização e estabilização com mais eficácia. Outros destacam o fato de que alguns povos "vivem mergulhados na barbárie e na falta de democracia", como se o modelo democrático pudesse realmente garantir que as coisas "melhorem" no país. Melhorem para quem "cara pálida"?
Os processos de estabilização da ONU visam exclusivamente garantir que as elites locais retomem o poder e garantam o desenvolvimento de um modelo que nem sempre é aquele que estes povos desejam. E insisto, a única coisa que me faria defender a permanência da ONU aqui é para evitar que os EUA tomem isso aqui, como fizeram no início do século XX. O povo fica de fora destes processos, como ficou de fora das eleições "democráticas" realizadas aqui. Ouvi dizer: melhor haver eleições ruins do que não haver eleições. Pergunto de novo: "Melhor" para quem "cara pálida"?
Sim, levar alimentos para quem tem fome é importante, e destaco que se não fosse a presença da ONU, muitos aspectos da cooperação não poderiam existir simplesmente, porque não haveria condição disto chegar ao país, conforme disse em postagem anterior:
"De outro lado, como seria realmente possível a nossa presença aqui, digo, nós "os bem intencionados paladinos da verdade" críticos desta visão estereotipada, mas nem um pouco menos comprometidos com a necessidade de uma "estabilidade" que nos permita ao menos estar aqui? Eis a suprema contradição... Sem a missão da ONU não haveria a segurança mínima necessária para este esforço de internacionalização de nossa antropologia, e no mesmo pacote, outras coisas: o desenvolvimento de um novo perfil para a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) do Ministério das Relações Exteriores, a internacionalização de nossas organizações não governamentais, a expansão continental de nossas empresas... Ou seja, ambiguidades e contradições de processos desta ordem."(Ayitian Nuvels, segunda-feira, 22 de junho de 2009)
Não percebe meu interlocutor que estou incluído entre os “bem intencionados paladinos da verdade” críticos (ferozes, incluo) desta visão estereotipada. E que, apesar do meu cansaço, ao qual ele atribui as minhas críticas que falseiam a verdade, eu reconheço “as ambiguidades e contradições de processos desta ordem”. Pergunto eu, estaria meu interlocutor anônimo preparado para lidar com suas ambiguidades? Espero que sim.
Portanto, quando falo destas missões da ONU, não tenho a ousadia de achar que estou certo, mas me vejo no direito de criticar aquilo que chamo de "desvio original" das missões de paz: o seu caráter colonialista e redutor dos povos.
Ouço muito por aqui as pessoas de várias partes do mundo, sobretudo de países da Europa, apontarem o Brasil como uma potência mundial emergente. O "país do futuro" estaria se tornando uma realidade presente? Não sei... O meu pesadelo, no entanto, é ver que este país pode cometer o mesmo erro de potências anteriores, mas sobretudo, cometer o erro de ignorar seu próprio passado e suas contradições e agir como os velhos países colonialistas. Já ouvi de alguns estudantes haitianos a crítica ao Brasil, referindo-se a possível ranços imperialistas. Estarão eles errados? Não estaremos nós cegos e inebriados com o poder, querendo guiar aqueles que julgamos cegos?
Este é o meu pressuposto. Não é defender e nem apresentar a verdade. Quanto mais conheço esse país, quanto mais vivo nele e leio sobre ele, menos tenho a pretensão de dizer que conheço algo. Temo que alguns, enganados pelo brilho do ouro dos tolos, achem que realmente são especialistas na cultura e no conhecimento sobre este povo.
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