Desde pequeno ouço a frase "Nem tudo que reluz é ouro"...
Quando era criança, fui algumas vezes à Rio Bonito, na casa de uma grande amiga de minha mãe a quem chamávamos de tia. Ela era irmã do marido da irmã de meu pai - isso me remete às classificações e diagramas de parentesco - e, com efeito, chamávamos seus filhos de primos. A casa era um pequeno sítio, com uma pequena horta e uma oficina - o marido dela, que não chamávamos de "tio", mas de "seu" Nelson, era mecânico. Havia ainda algumas cabras e muitas galinhas daquelas que damos nome e, crianças, choramos quando vamos comer.
Ao lado do pequeno sítio havia um barranco com grandes valas formadas pela erosão da chuva. O barranco, com sua terra avermelhada e com grande quantidade de pedras e cascalho, era um local perfeito para explorações e brincadeiras de criança. Encontrávamos pequenos cristais de quartzo e grandes pedaços de malacacheta, que faziam a nossa alegria infantil se tornar sonhos de riqueza: estávamos encontrando diamantes e pedras preciosas. O verdadeiro brilho daquelas pedras embalava nossas brincadeiras com falsas esperanças de encontrar riquezas. Porém, nem tudo que reluz é ouro.
As recentes postagens deste blog apresentam uma crítica um tanto feroz à MINUSTAH. E entendo que os defensores de "outras facetas" desta missão se sintam ofendidos. Para eles é como se eu não reconhecesse essa importância. Pode ser...
Por outro lado, aprendi que o monopólio legítimo da força deve pertencer ao Estado, e que este é um dos sinais de soberania deste Estado. Aprendi também que o Estado é a representação da sociedade, e para alguns contratualistas, inclusive, é através do Estado que indivíduos abrem mão de seus interesses pessoais em favor da coletividade, e que este contrato social estabelece uma igualdade entre os seus signatários. Logo, é no interior deste Estado, representante dos interesses coletivos, que grupos de indivíduos disputam entre si o controle da sociedade. Toda essa discussão teórico-política tem um objetivo claro, explicar àqueles que se dizem "do lado da verdade" (e como efeito, do lado da MINUSTAH), que esta missão não chega aqui por acaso e que ela tem objetivos e interesses definidos, interesses estes que não chegam nem um pouco perto dos interesses de maioria da população haitiana.
Subestimam a inteligência deste povo, aqueles que pensam que basta dar-lhes comida e pronto! Está resolvido o problema. Pensar que este povo é composto de "gente que vive num estado de animalidade", que "não atingiram ainda o estágio de desenvolvimento da civilização", "que são como bichos" e, por isso, "precisam ser alimentados, adestrados e preparados para a civilização", que "eles estão ainda em um estágio onde ainda são puro instinto e por isso se matam como animais", entre outras observações que traduzem uma visão preconceituosa, redutora e racista do povo haitiano.
Concordo, porém, que soa pretensioso demais alguém julgar que enxerga mais do que os outros. E esse é o brilho do ouro dos tolos. Portanto, se devo dizer algo diferente é que todos se iludem com o brilho verdadeiro do ouro falso, e creem estar enxergando muito mais do que os outros do lugar de onde olham. Porém, alerto quaisquer de meus interlocutores para este momento de auto-crítica, citando Marcelo D2, "eu não estou 100% certo, mas você está totalmente errado" se não se esforçar em fazer também uma auto-crítica.
Vamos então discutir aquilo que meus interlocutores chamam de "fatos"...
Fiz um esforço para retroceder ao ponto de chegada da missão da ONU ao país: um golpe de Estado orquestrado pelas Embaixadas locais de EUA, França e Canadá e uma força de segurança provisória formada por estes três países. O sequestro do presidente do país, democraticamente eleito e com o apoio da maioria da população pobre do país, e sua suposta "renúncia" assinada numa situação de sequestro - onde parece ser óbvio estão reduzidas as suas opções de escolha: "ou assina, ou (a gente te) ass(ass)ina". Antes disso, é importante ressaltar, um quadro de crise social, com conflitos armados, o que supunha a necessidade de uma intervenção que evitasse uma crise mais aguda com violações dos direitos humanos e um quadro de profunda instabilidade. Vejam bem que tal quadro ainda não havia se definido, embora se desenhasse, a necessidade de uma intervenção se fez como medida preventiva.
Os "poderes instituídos", no caso o governo provisório pós-golpe, solicita a intervenção das Nações Unidas. Desembarcam aqui, "a pedido do governo local", os "casque bleu" da ONU para estabilizar o país. Realizam-se eleições, e René Preval não chega a atingir o total acima de 50% que garantiria sua vitória no primeiro turno, o que obrigaria a realização de um segundo turno, o que é exigido pela constituição do país. Uma bem orquestrada ação de diplomatas e de governos do continente americano, muito bem conduzida pelo nosso Brasil, garante a posse de Preval, atropelando a norma constitucional. Preval, que reconhece que sua chegada ao poder pela segunda vez (na primeira, esta se deu sob os auspícios do hoje "leproso" Aristide) se deve a este esforço da "comunidade internacional", renova o mandato da Missão da ONU.
Custa tão caro, portanto, aceitar que diversos aspectos desta Missão da ONU se dão à revelia da população? Que não são os interesses do "povo" que estão em jogo, mas que diversas articulações entre elites de extração variada e interesses diversos estão em jogo nesta missão?
O que tenho apontado é isso. Não é cansaço, como disse, é a constatação clara de que, não se pode defender infinitamente esta missão, porque os seus pressupostos fundadores subestimam a capacidade deste povo de gerir suas crises, na verdade, como tenho insistido, colocam os haitianos numa condição subalterna, onde estes precisam ser tutelados. Poder-se-ia insistir que não há tutela posto que a missão obedece uma demanda de governos locais.
A atual Primeira Ministra, Michelle Pierre-Louis, publicou em 2008 um interessante artigo na revista do Institut Français d'Haïti, "Conjonction", falando que nos últimos 16 anos o país teria sido palco de pelo menos 15 missões das Nações Unidas, com diferentes mandatos, entre elas a atual missão, a MINUSTAH, que já está no país desde 2004. Creio que ao chegar ao posto de Primeira Ministra, tal como fizera um famoso intelectual brasileiro que chegou à presidência da república, Mme. Pierre Louis deva ter dito para que esquecêssemos tudo o que ela escrevera. A questão que ela propunha com o texto era discutir até onde o país realmente poderia ser autônomo e desenvolver processos gestionários a partir de si mesmo, um vez que fosse constantemente palco de diversas missões que subtraem o poder do Estado em favor de outrem. Em outras palavras, se as missões da ONU "estabilizam", porque estes processos não se traduzem numa longa duração? Talvez, a resposta é exatamente aquela que venho sugerindo aqui: as missões da ONU, a despeito de todo o seu caráter humanitário, elas pecam por um grave reducionismo: não estão preocupadas com a realidade local, mas com os modelos prontos que eles tem que trazer e implantar nos locais onde atuam.
Pensar que a ação de indivíduos isolados pode trazer efeitos positivos para esse tipo de missão me parece uma espécie de "jogo do contente" de Poliana. Concordo, porém, que não se deva jogar o bebê fora junto com a água do banho. O que penso, porém, vai mais longe e diz respeito ao caráter deste tipo de missão. E, isto, insisto, passa por considerar "certa incapacidade dos povos atendidos por estas missões". Apenas para ilustrar, uma vez conversando com um funcionário do UNFPA (Fundo de Populações das Nações Unidas), que vinha pela primeira vez ao Haiti, falávamos sobre o país e ele me disse que já conhecia muito sobre o Haiti, pois estudara em seu doutorado os "état faible". Fiz uma rápida analogia, contando a história de um país que elegera seu presidente em eleições fraudadas, o Estado não garantia saúde e nem educação a todos os seus cidadãos, que se tratava de um país marcado por clivagens de diversas ordens, e que este país era considerado uma das mais fortes e importantes democracias do planeta. Ele perguntou de que país falava, disse-lhe que me referia à primeira eleição de George Bush Jr. à presidência dos EUA e ninguém nunca discutira se este país é um "état faible". Disse, enfim, que este tipo de conceito, de caráter normativo não era útil para pensar o Haiti. Esta conversa, no entanto, dá a dimensão de como a vertente civil das Missões da ONU pensa suas intervenções no mundo.
Nem tudo que reluz é ouro...
Quando estamos diante de um Estado que não detém o monopólio legítimo da violência, transferindo este para forças estrangeiras, responsáveis por garantir a segurança pública, creio se tratar de um caso interessante onde a soberania deste Estado se encontra nas mãos de outrem, e podemos dizer duas coisas: ou este Estado não representa a sua sociedade ou esta força é um "corpo estranho" colocado entre esta sociedade e este Estado, criando tensões irreconciliáveis. Explico.
Esse "corpo estranho" não está ligado aos interesses colocados por este Estado, mas a interesses acima deste, referidos à "segurança hemisférica". Ora, isso que dizer que este poder militar não está submetido ao poder deste Estado e muito menos aos interesses desta sociedade, mas a uma espécie de "deus ex-machina" que se coloca acima dos problemas e questões localizadas para decidir, de maneira olímpica, o rumo desta sociedade e sua relação com o Estado.
Quando o soldado imprudente atira em direção a uma massa que se manifesta, supostamente, de maneira pacífica à saída de uma missa (algo em comum com o assassinato do estudante Édson Luís no Calabouço e a reação da tropa ao povo que saía da missa em sua homenagem na Candelária?), não se trata de um erro individual isolado. Este ato reflete duas coisas, dois pressupostos: o primeiro, a total ignorância e desconhecimento sobre a população, baseada em informações estereotipadas e, por vezes, terrivelmente equivocadas, vindas de "especialistas" em cultura e povo haitiano. A falta de informação qualificada e correta induz a percepções equivocadas sobre o povo local, percepções baseadas em preconceitos das mais variadas ordens e que se traduzem em certas ações e julgamentos. O segundo, é que tal ignorância e desconhecimento tem raízes históricas e estão, no caso do Haiti em especial, ligadas a um conjunto de preconceitos e idéias constituídas ao longo de dois séculos de história do país, que colocam estes países que são alvo de missões da ONU numa espécie de "não lugar", particularmente dado, que lhes transforma em excrescências do mundo moderno: eles não deveriam existir. Porém, uma vez que estes "não lugares" existem, como lidar com eles? Eis a questão.
O problema é que mesmo os especialistas em relações internacionais acabam operando com teorias normativas e, com efeito, não se ocupam de pensar estes "não lugares", mas de enquadrá-los dentro de suas teorias, sem perceber que sua própria condição de "não lugar" é fruto de uma relação com algum "lugar" dado. E que, é possível, pensar que "não lugares" não são uma condição, mas de fato uma relação entre coisas, pessoas, Estados, sociedades, etc. que está em relação com "lugares" que também são relações entre coisas, pessoas, Estados, sociedades, etc., um jogo permanente que opõe as coisas umas às outras e que forma redes e configurações. Logo, se o Haiti é o que é, não é somente por suas "características intrínsecas" ou pela sua "natureza", ou ainda, o "espírito de seu povo", mas decorre de relações e de um sistema de relações internacionais que engendra "Haitis", "Rwandas", "Congos", etc., como partes de um sistema colonial que ainda persiste. Como disse sabiamente Omar Thomaz, professor da Unicamp, em conversas particulares, há no Haiti uma espécie de "persistência da história". O mundo pós-colonial existe, então, como uma relação dada no plano histórico-temporal, mas também no plano concreto da existência cotidiana, em relação a um mundo colonialista.
Porém, como "nem tudo que reluz é ouro", penso também que posso estar me iludindo com o brilho tão verdadeiro de elaboradas discussões intelectuais, forjadas sobre falsos dilemas, transformando, como uma criança, pequenos cristais de quartzo e grandes blocos de malacacheta em tesouros incríveis sem valor algum.
Quando era criança, fui algumas vezes à Rio Bonito, na casa de uma grande amiga de minha mãe a quem chamávamos de tia. Ela era irmã do marido da irmã de meu pai - isso me remete às classificações e diagramas de parentesco - e, com efeito, chamávamos seus filhos de primos. A casa era um pequeno sítio, com uma pequena horta e uma oficina - o marido dela, que não chamávamos de "tio", mas de "seu" Nelson, era mecânico. Havia ainda algumas cabras e muitas galinhas daquelas que damos nome e, crianças, choramos quando vamos comer.
Ao lado do pequeno sítio havia um barranco com grandes valas formadas pela erosão da chuva. O barranco, com sua terra avermelhada e com grande quantidade de pedras e cascalho, era um local perfeito para explorações e brincadeiras de criança. Encontrávamos pequenos cristais de quartzo e grandes pedaços de malacacheta, que faziam a nossa alegria infantil se tornar sonhos de riqueza: estávamos encontrando diamantes e pedras preciosas. O verdadeiro brilho daquelas pedras embalava nossas brincadeiras com falsas esperanças de encontrar riquezas. Porém, nem tudo que reluz é ouro.
As recentes postagens deste blog apresentam uma crítica um tanto feroz à MINUSTAH. E entendo que os defensores de "outras facetas" desta missão se sintam ofendidos. Para eles é como se eu não reconhecesse essa importância. Pode ser...
Por outro lado, aprendi que o monopólio legítimo da força deve pertencer ao Estado, e que este é um dos sinais de soberania deste Estado. Aprendi também que o Estado é a representação da sociedade, e para alguns contratualistas, inclusive, é através do Estado que indivíduos abrem mão de seus interesses pessoais em favor da coletividade, e que este contrato social estabelece uma igualdade entre os seus signatários. Logo, é no interior deste Estado, representante dos interesses coletivos, que grupos de indivíduos disputam entre si o controle da sociedade. Toda essa discussão teórico-política tem um objetivo claro, explicar àqueles que se dizem "do lado da verdade" (e como efeito, do lado da MINUSTAH), que esta missão não chega aqui por acaso e que ela tem objetivos e interesses definidos, interesses estes que não chegam nem um pouco perto dos interesses de maioria da população haitiana.
Subestimam a inteligência deste povo, aqueles que pensam que basta dar-lhes comida e pronto! Está resolvido o problema. Pensar que este povo é composto de "gente que vive num estado de animalidade", que "não atingiram ainda o estágio de desenvolvimento da civilização", "que são como bichos" e, por isso, "precisam ser alimentados, adestrados e preparados para a civilização", que "eles estão ainda em um estágio onde ainda são puro instinto e por isso se matam como animais", entre outras observações que traduzem uma visão preconceituosa, redutora e racista do povo haitiano.
Concordo, porém, que soa pretensioso demais alguém julgar que enxerga mais do que os outros. E esse é o brilho do ouro dos tolos. Portanto, se devo dizer algo diferente é que todos se iludem com o brilho verdadeiro do ouro falso, e creem estar enxergando muito mais do que os outros do lugar de onde olham. Porém, alerto quaisquer de meus interlocutores para este momento de auto-crítica, citando Marcelo D2, "eu não estou 100% certo, mas você está totalmente errado" se não se esforçar em fazer também uma auto-crítica.
Vamos então discutir aquilo que meus interlocutores chamam de "fatos"...
Fiz um esforço para retroceder ao ponto de chegada da missão da ONU ao país: um golpe de Estado orquestrado pelas Embaixadas locais de EUA, França e Canadá e uma força de segurança provisória formada por estes três países. O sequestro do presidente do país, democraticamente eleito e com o apoio da maioria da população pobre do país, e sua suposta "renúncia" assinada numa situação de sequestro - onde parece ser óbvio estão reduzidas as suas opções de escolha: "ou assina, ou (a gente te) ass(ass)ina". Antes disso, é importante ressaltar, um quadro de crise social, com conflitos armados, o que supunha a necessidade de uma intervenção que evitasse uma crise mais aguda com violações dos direitos humanos e um quadro de profunda instabilidade. Vejam bem que tal quadro ainda não havia se definido, embora se desenhasse, a necessidade de uma intervenção se fez como medida preventiva.
Os "poderes instituídos", no caso o governo provisório pós-golpe, solicita a intervenção das Nações Unidas. Desembarcam aqui, "a pedido do governo local", os "casque bleu" da ONU para estabilizar o país. Realizam-se eleições, e René Preval não chega a atingir o total acima de 50% que garantiria sua vitória no primeiro turno, o que obrigaria a realização de um segundo turno, o que é exigido pela constituição do país. Uma bem orquestrada ação de diplomatas e de governos do continente americano, muito bem conduzida pelo nosso Brasil, garante a posse de Preval, atropelando a norma constitucional. Preval, que reconhece que sua chegada ao poder pela segunda vez (na primeira, esta se deu sob os auspícios do hoje "leproso" Aristide) se deve a este esforço da "comunidade internacional", renova o mandato da Missão da ONU.
Custa tão caro, portanto, aceitar que diversos aspectos desta Missão da ONU se dão à revelia da população? Que não são os interesses do "povo" que estão em jogo, mas que diversas articulações entre elites de extração variada e interesses diversos estão em jogo nesta missão?
O que tenho apontado é isso. Não é cansaço, como disse, é a constatação clara de que, não se pode defender infinitamente esta missão, porque os seus pressupostos fundadores subestimam a capacidade deste povo de gerir suas crises, na verdade, como tenho insistido, colocam os haitianos numa condição subalterna, onde estes precisam ser tutelados. Poder-se-ia insistir que não há tutela posto que a missão obedece uma demanda de governos locais.
A atual Primeira Ministra, Michelle Pierre-Louis, publicou em 2008 um interessante artigo na revista do Institut Français d'Haïti, "Conjonction", falando que nos últimos 16 anos o país teria sido palco de pelo menos 15 missões das Nações Unidas, com diferentes mandatos, entre elas a atual missão, a MINUSTAH, que já está no país desde 2004. Creio que ao chegar ao posto de Primeira Ministra, tal como fizera um famoso intelectual brasileiro que chegou à presidência da república, Mme. Pierre Louis deva ter dito para que esquecêssemos tudo o que ela escrevera. A questão que ela propunha com o texto era discutir até onde o país realmente poderia ser autônomo e desenvolver processos gestionários a partir de si mesmo, um vez que fosse constantemente palco de diversas missões que subtraem o poder do Estado em favor de outrem. Em outras palavras, se as missões da ONU "estabilizam", porque estes processos não se traduzem numa longa duração? Talvez, a resposta é exatamente aquela que venho sugerindo aqui: as missões da ONU, a despeito de todo o seu caráter humanitário, elas pecam por um grave reducionismo: não estão preocupadas com a realidade local, mas com os modelos prontos que eles tem que trazer e implantar nos locais onde atuam.
Pensar que a ação de indivíduos isolados pode trazer efeitos positivos para esse tipo de missão me parece uma espécie de "jogo do contente" de Poliana. Concordo, porém, que não se deva jogar o bebê fora junto com a água do banho. O que penso, porém, vai mais longe e diz respeito ao caráter deste tipo de missão. E, isto, insisto, passa por considerar "certa incapacidade dos povos atendidos por estas missões". Apenas para ilustrar, uma vez conversando com um funcionário do UNFPA (Fundo de Populações das Nações Unidas), que vinha pela primeira vez ao Haiti, falávamos sobre o país e ele me disse que já conhecia muito sobre o Haiti, pois estudara em seu doutorado os "état faible". Fiz uma rápida analogia, contando a história de um país que elegera seu presidente em eleições fraudadas, o Estado não garantia saúde e nem educação a todos os seus cidadãos, que se tratava de um país marcado por clivagens de diversas ordens, e que este país era considerado uma das mais fortes e importantes democracias do planeta. Ele perguntou de que país falava, disse-lhe que me referia à primeira eleição de George Bush Jr. à presidência dos EUA e ninguém nunca discutira se este país é um "état faible". Disse, enfim, que este tipo de conceito, de caráter normativo não era útil para pensar o Haiti. Esta conversa, no entanto, dá a dimensão de como a vertente civil das Missões da ONU pensa suas intervenções no mundo.
Nem tudo que reluz é ouro...
Quando estamos diante de um Estado que não detém o monopólio legítimo da violência, transferindo este para forças estrangeiras, responsáveis por garantir a segurança pública, creio se tratar de um caso interessante onde a soberania deste Estado se encontra nas mãos de outrem, e podemos dizer duas coisas: ou este Estado não representa a sua sociedade ou esta força é um "corpo estranho" colocado entre esta sociedade e este Estado, criando tensões irreconciliáveis. Explico.
Esse "corpo estranho" não está ligado aos interesses colocados por este Estado, mas a interesses acima deste, referidos à "segurança hemisférica". Ora, isso que dizer que este poder militar não está submetido ao poder deste Estado e muito menos aos interesses desta sociedade, mas a uma espécie de "deus ex-machina" que se coloca acima dos problemas e questões localizadas para decidir, de maneira olímpica, o rumo desta sociedade e sua relação com o Estado.
Quando o soldado imprudente atira em direção a uma massa que se manifesta, supostamente, de maneira pacífica à saída de uma missa (algo em comum com o assassinato do estudante Édson Luís no Calabouço e a reação da tropa ao povo que saía da missa em sua homenagem na Candelária?), não se trata de um erro individual isolado. Este ato reflete duas coisas, dois pressupostos: o primeiro, a total ignorância e desconhecimento sobre a população, baseada em informações estereotipadas e, por vezes, terrivelmente equivocadas, vindas de "especialistas" em cultura e povo haitiano. A falta de informação qualificada e correta induz a percepções equivocadas sobre o povo local, percepções baseadas em preconceitos das mais variadas ordens e que se traduzem em certas ações e julgamentos. O segundo, é que tal ignorância e desconhecimento tem raízes históricas e estão, no caso do Haiti em especial, ligadas a um conjunto de preconceitos e idéias constituídas ao longo de dois séculos de história do país, que colocam estes países que são alvo de missões da ONU numa espécie de "não lugar", particularmente dado, que lhes transforma em excrescências do mundo moderno: eles não deveriam existir. Porém, uma vez que estes "não lugares" existem, como lidar com eles? Eis a questão.
O problema é que mesmo os especialistas em relações internacionais acabam operando com teorias normativas e, com efeito, não se ocupam de pensar estes "não lugares", mas de enquadrá-los dentro de suas teorias, sem perceber que sua própria condição de "não lugar" é fruto de uma relação com algum "lugar" dado. E que, é possível, pensar que "não lugares" não são uma condição, mas de fato uma relação entre coisas, pessoas, Estados, sociedades, etc. que está em relação com "lugares" que também são relações entre coisas, pessoas, Estados, sociedades, etc., um jogo permanente que opõe as coisas umas às outras e que forma redes e configurações. Logo, se o Haiti é o que é, não é somente por suas "características intrínsecas" ou pela sua "natureza", ou ainda, o "espírito de seu povo", mas decorre de relações e de um sistema de relações internacionais que engendra "Haitis", "Rwandas", "Congos", etc., como partes de um sistema colonial que ainda persiste. Como disse sabiamente Omar Thomaz, professor da Unicamp, em conversas particulares, há no Haiti uma espécie de "persistência da história". O mundo pós-colonial existe, então, como uma relação dada no plano histórico-temporal, mas também no plano concreto da existência cotidiana, em relação a um mundo colonialista.
Porém, como "nem tudo que reluz é ouro", penso também que posso estar me iludindo com o brilho tão verdadeiro de elaboradas discussões intelectuais, forjadas sobre falsos dilemas, transformando, como uma criança, pequenos cristais de quartzo e grandes blocos de malacacheta em tesouros incríveis sem valor algum.
2 comentários:
Gostei da homenagem ao meu blog no título... risos
Bela análise, gostei. abraços.
Amigo meu:
Concordo com você: discordamos.
Concordo com você: nem tudo que reluz é ouro.
Concordo com você: existem muitas verdades sobre o Haiti e ninguém as conhece integralmente.
Concordo com você: existem realmente muitas perguntas no ar e o povo haitiano não se pronunciou de forma definitiva e/ou clara.
Concordo com você: defendo a MINUSTAH enquanto vertente militar e enquanto Brasil.
Concordo com você, discordando.
Beijos
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