sábado, 25 de abril de 2009

O Pinhão Manso e o Biodiesel - A cura dos males do Haiti?

Estive esta semana na Biblioteca Nacional e na Biblioteca da Instituição Religiosa Saint Louis Gonzague. Ambas são sempre citadas em bibliografias de obras sobre o vodu como grandes repositórios da literatura etnológica do país. Ja estivera antes na biblioteca do Bureau de Ethnologie, fundado pelo escritor e etnólogo Jacques Roumain no início dos anos 40, que infelizmente se encontra em estado um tanto precário, apesar do bom conjunto de obras disponíveis.

Entre os livros encontrados, achei "Mythologie Vodou (Rite Arada)" de Milo Marcelin (1949), onde há um excelente coleta de dados sobre os lôas do Rito Rada. Segundo a literatura, o vodu se divide em duas linhas pricipais, o rito Rada (ou Arada), dos
lwa ginnen (lôas guiné), os ancestrais africanos e o rito Petro, que são os lwas créole (lôas créole), os lôas nativos do Haiti, as divindades originárias daqui. Num dos capítulos, Marcelin fala de Ayizan Véléquete, esposa de Atibon Legba, protetora e deusa das águas doces, também dos mercados, dos lugares públicos, portas e entradas diversas. Ayizan Velequeté é uma das divindades mais velhas, e já fora objeto de um culto particular, distinto dos demais lôas. Segundo Marcelin, antes de bay manje lwa yo ("dar comida aos loas"), a comida deveria ser separada em duas metades iguais, uma das metades era destinada a Ayizan, a outra metade dividida entre os demais lôas. Afirma ainda que cada lôa tem um "reposoir", uma árvore que serve de residência para o lôa ou divindade. A árvore destinada a Ayizan é o médicinier béni ou gwo metsyien (Jatropha curcas L.). Traduzindo, a árvore destinada a Ayizan é o bem conhecido dos defensores dos biocombustíveis "Pinhão Manso".

Esta semana num dos dois maiores jornais do país
Le Nouvelliste lançou uma matéria sobre a Jatropha, que como todas as questões relacionadas aos biocombustíveis se encontra cercada de polêmicas, sobretudo por que os defensores do biodiesel não cansam de apontar as vantagens do desenvolvimento destas tecnologias . Polêmicas a parte, isto me levou a uma conversa que tive ontem com um velho amigo sobre as saídas da crise haitiana. Falávamos das eleições e do beco sem saída em que o país parece estar metido. Este amigo acredita que é melhor mesmo que haja eleições, mesmo que ruins. Retorqui dizendo que eleições desta ordem servem apenas para deslegitimar o sistema representativo e denunciam a sua farsa, pois cada vez menos gente confia nos políticos e nas eleições.

Este não é um fenômeno particular do Haiti, mas parece demonstrar a gravidade do problemas dos rumos da democracia representativa. Aliás, a democracia virou, pelo menos em casos como o haitiano, mera representação, no sentido de
encenação ou de figurar como símbolo de algo. Neste sentido, a democracia ocidental cada vez mais, ao invés de se fortalecer em processos como o iraquiano, afegão ou haitiano, vai perdendo legimitidade junto às populações locais e cedendo espaço para "outra coisa". Qual seria essa "outra coisa"? Meu amigo perguntou-me a resposta deste dilema, e qual seria a outra saída. Ou apenas lhe respondi que se soubesse, teria achado a chave da história da humanidade. O certo é que o "fim da história" sonhado pelos liberais dos anos 90 ou pelos comunistas de todas as eras ainda está bem longe, mas é certo também que em tempos recentes a democracia liberal pode estar começando a sofrer os seus mais fortes golpes: a primeira eleição de Bush nos EUA já afetara gravemente a credibilidade do sistema, e estas eleições no Haiti são outra prova. Como disse também ao meu amigo, se dissesse algo tão bombástico assim, ou eu seria um profeta iluminado, ou seria um grande mentiroso.

Entramos então numa discussão sobre o papel da comunidade internacional no Haiti e os projetos para o desenvolvimento do país. Parece claro que a saída consiste em garantir às comunas do interior do país a possibilidade de desenvolvimento, possibilitar o renascimento da vida camponesa no país. Somente, através da recuperação agrícola, da criação de oportunidades no campo para as pessoas é que será possível iniciar uma recuperação econômica do Haiti. O país é uma das maiores vítimas da crise alimentar. O declínio da produção rural decorre, sobretudo, da falta de uma política agrícola e da falta de competitividade da produção nacional contra os produtos alimentares importados. A crise ambiental agrava os efeitos do esvaziamento do campo e do inchaço das cidades: as pessoas saem das pequenas comunas do interior para as capitais departamentais e destas para Port au Prince. Depois de Port au Prince, como debatia com o amigo, a próxima saída era o aeroporto. O amigo então insistiu no fato de que, uma das formas de tirar dinheiro dos EUA seria exatamente o controle da imigração, através deste desenvolvimento local. Eu poderia até concordar, porém, não há tantos boat people assim... E embora altos, os investimentos estrangeiros no país, sobretudo aqueles vindos EUA, estes parecem não chegar ao interior do país.

A constituição do país prevê uma descentralização econômica e administrativa. Esta, no entanto, está amarrada em interesses não muito claros dos sucessivos governos haitianos, que não possuem políticas para o desenvolvimento das outras regiões do país e concentram a aplicação de recursos na capital nacional. Nem mesmo as capitais departamentais recebem grandes investimentos.

Entre as supostas virtudes da Jatropha, o nosso "pinhão manso", estaria o fato dele ser uma planta nativa, bem adaptada às condições ambientais desfavoráveis. Outras vantagens seriam as inúmeras possibilidades de seu cultivo em consórcio com outras culturas, algumas delas de produtos alimentares de alto valor agregado (açaí, palmitos diversos, gado, etc.). Seu sugestivo nome médecinier e suas características de erva medicinal, utilizada em diversos fins, no tratamento de feridas e inflamações, como repelente natural de insetos, antiséptico, nos fazem perguntar se, de fato, ela não seria uma cura para os males do país...

A preocupação dos críticos dos biocombustíveis é a criação dos grandes "desertos verdes", quando a monocultura pode não apenas expulsar as outras culturas, como reduzir a produção de alimentos e facilitar a concentração de terras, o que sem dúvida agravaria ainda mais os muitos problemas do campo no Haiti. De outro lado, há além da produção do biocombustível, os resíduos quando aplicados sobre biodigestores produzem gás, que pode ser utilizado para a geração de energia elétrica, um dos grande problemas do país. Panacéia?

A sabedoria dos médsin fèyi (médicos das folhas) e dos herdeiros dos conhecimentos tradicionais do vodu que cultuam este arbusto como um repositório de Ayizan, além dos grandes Mapous, quase extintos, que são a morada de Loco Atissou, provocam uma reflexão sobre o lugar das plantas e vegetais nas religiões tradicionais. O vodu é uma religião que cultua a natureza, e cada vegetal, cada mata é uma habitasyon de uma divindade, de um lôa, que deve ser preservado. Tal e qual o Brasil, onde as religiões tradicionais, afro-brasileiras e indígenas estão na vanguarda da luta pela preservação, aqui no Haiti o vodu pode ser o lugar deste despertar para a preservação dos mapous, da busca de alternativas para um desenvolvimento sustentável do Haiti.

Abraços a todos,

Ansioso pela grande final, a terceira...


quarta-feira, 22 de abril de 2009

Casa abandonada...

Quero me desculpar com todas as pessoas que vinham postando comentários no meu blog... A verdade é que a casa andou meio abandonada...

É sempre meio difícil admitir certos momentos de esterilidade ou o simples fato de estar cansado de chover no molhado, de repetir as fórmulas. Quando retornei ao país no início do mês de fevereiro, estava realmente vivendo um momento novo, uma espécie de "reentrada" na atmosfera, o que equivale a dizer que me sentia como um astronauta que voltava ao mundo. Estranha relação que desenvolvi com o Haiti. Minha casa, meu país, minha vida e minhas coisas estão no Brasil. No entanto, parece que o ar leve, a atmosfera rarefeita das férias no Brasil, parece que minha ida ao Brasil foi como uma viagem ao espaço. Voltar então ao Haiti foi voltar ao mundo real, ao planeta terra.

E foi exatamente esse o sentido da minha primeira postagem quando voltei: o choque de realidade que o Haiti provoca.

Agora, pouco mais de dois dias após a postagem sobre as eleições, me dou conta disto: como o Haiti tem sido revelador na medida em que expõe coisas que não nos parecem óbvias à primeira vista.

Incomodou-me fortemente uma conversa com um outro observador que chegou a afirmar que "é melhor haver eleições ruins que não haver eleição alguma". Fiquei pensando se de fato a tal "comunidade internacional", tão ciosa dos rumos democráticos do "mundo livre", pensa desta maneira. Sim, porque volta e meia ouço aqueles que dizem que em Cuba "não há liberdade, não há eleições livres", pergunto: "houve, de fato, eleições livres no Haiti?". Ou ainda, como será que têm sido feitas as eleições no Iraque ou no Afeganistão? Será que elas são "livres"? É claro que os mais apressados dizem que Chávez é um ditador... Sim, talvez, mas será que as eleições do Haiti foram "mais democráticas" que qualquer pleito realizado na Venezuela nos últimos 10 (dez) anos? Não creio... No mínimo, estas eleições que fazem de Chávez um "ditador populista" foram mais concorridas que a esvaziada eleição para o senado do último domingo...

Será que a democracia, tão cara ao nosso mundo ocidental, se resume a isso? Fazer eleições ainda que pouco representativas e absolutamente distantes dos anseios populares.

Minha experiência neste país têm me mostrado um dado interessante: são inúmeras as organizações populares, os grupos chamados de "kombit" ou "têt ansanm", que visam organizar as pessoas em torno de idéias difusas sobre desenvolvimento. O fato é que em Jacmel, em Cité Soleil e Port au Prince, conhecemos (eu e outros colegas antropólogos que aqui estiveram) diversas organizações populares de caráter mais variado possível: trabalhadores rurais, religiosos, organizações de mulheres, organizações voltadas à educação. No entanto, ao se realizar uma eleição nenhuma destas organizações pareceu estar ligada a algumas candidatura, nenhuma delas se concretizou em grupos de interesse, nenhuma delas esteve ligada a partido ou organização política formal, que estivesse envolvida no processo eleitoral.

Como disse na postagem anterior, uma das reclamações foi exatamente que os candidatos a senador não possuíam nenhuma base política junto às populações.

Em contrapartida, os partidos políticos não parecem ter muita representatividade, isso parece ainda mais estranho, se nos dermos conta do número de intelectuais nacionais, como a própria primeira ministra Michelle Pierre Louis, que nunca fez parte de nenhum grupo político ou partido. Conversando com alguns intelectuais importantes do país, percebo que nenhum deles faz parte ou tem interesse de organizar-se em partidos políticos, embora estejam constantemente ocupando espaço na imprensa e na vida pública.

Qual seria então o vazio, o hiato que existe entre sociedade civil, estado, intelectuais, partidos, etc. e especialmente, o "povo" em geral?

Não posso dizer, mas percebo, de maneira ainda muito "naïf", que não parece haver interesse em resolver esse hiato, em preencher tal vazio. A presença da Minustah aqui dá uma sensação de estabilidade, que pode durar infinitamente, enquanto essa missão aqui permanecer. A ação da "comunidade internacional" e das ONGS mantém um funcionamento mínimo das coisas, que pode prescindir do Estado e a cooperação internacional completa o quadro, fazendo funcionar esse planetário, permitindo um falso equilíbrio entre forças díspares e desencontradas.

Aliás, uso provocativamente aspas para falar do povo, esta entidade abstrata e disforme da qual muitas pessoas daqui pensam não fazer parte, e por quem nós "blancs" fazemos todos os nossos esforços.

É no meio deste "povo" que ouço algumas vozes dissonantes pedir a volta de "Titid". Ouço-os dizer que este era "o único a se preocupar conosco".

E assim voltamos ao início ou à postagem anterior: se Aristide desenvolveu uma relação perniciosa com a massa e com isso tornou impossível reorganizar o espaço político em outros termos, qual seria a possibilidade de estabelecer, de fato, uma prática política democrática e popular no país? Há saída com a realização de eleições deste tipo?

Prepara-se a realização de um segundo turno das eleições no mês de junho... Será possível isso ou veremos novamente os mesmo erros serem cometidos?

Com a palavra a "comunidade internacional"?

Alguns me perguntarão, "por que não com a palavra o povo haitiano"?

Respondo: Me parece que o povo haitiano já deu a sua resposta sobre estas eleições...


Abraços

domingo, 19 de abril de 2009

Eleições no Haiti - Abril de 2009






“Fraude Eleitoral”, ou a minha experiência como Observador Internacional

Em primeiro lugar, nem sei se estou autorizado a expor as idéias que coloco aqui, mas ainda assim correrei o risco de expor a minha opinião sincera, para além de posições oficiais que tenha a defender, como sempre fiz aqui neste blog. Sempre pautei o lugar deste blog em minha temporada aqui no Haiti como um espaço livre das constrições do papel de intelectual acadêmico, bem como de qualquer relação com a presença brasileira no Haiti nos mais diversos níveis. Não quero também dramatizar o quadro, dizendo que estou fazendo algo contra a lei ou passível de censura. Pelo contrário, quero apenas deixar claro que não estou falando oficialmente, mas não posso me furtar do compromisso de falar daquilo que presenciei, passemos portanto ao que interessa aqui, sem mais delongas.


O título desta postagem é de fato uma provocação. A palavra “fraude” aparece entre aspas, porque há sempre um entendimento de que “fraude eleitoral” seja um desvio nas regras de um procedimento legal aprovado, em outras palavras adotei o significado estrito de fraude que ora exponho, segundo o Dicionário Houaiss fraude é qualquer ato ardiloso, enganoso, de má fé com o intuito de ludibriar outrem ou de não cumpri determinado dever(...) ver tb. sinonímia de ardil e mentira (...) ver (...) antonímia de verdade. A fraude eleitoral aqui neste caso não se trata de um desvio procedimental, mas de fato de que as eleições senatoriais que se realizaram no Haiti neste domingo, dia 19 de abril de 2009, são uma mentira, um ardil, um ato enganoso que visa ludibriar outrem.


Exponho a minha visão dos fatos que pode contrariar o que alguns jornais virão dizer, que “a despeito de alguns incidentes isolados, o pleito tenha ocorrido dentro da normalidade democrática e num clima de respeito às leis”. É possível que se diga isso e, de fato, isso não contraria demais a verdade, não fosse uma série de movimentos que antecederam o presente processo eleitoral, que maculam qualquer idéia de democracia e de justiça, que ferem os princípios liberais-democráticos tão caros à cosmologia ocidental, que parecem que aqui no Haiti chegaram ao paroxismo de sua mentira.


Retorno um pouco no tempo para que possamos discutir de fato como manobras “democráticas” e de caráter “legalista” roubaram deste pleito o mínimo de legitimidade que ele pudesse ter. Em primeiro lugar, as divisões e problemas internos da maior força política do país, o Fanmi Lavalas, partido que dá sustentação ao deposto presidente Jean Bertrand Aristide, seu principal líder, provocaram a apresentação por parte deste grupo político de três listas de candidatos diferentes, o que impediu o registro de suas candidaturas para uma participação nestas eleições senatoriais. Explicando melhor, seria como se o PMDB apresentasse três listas de candidatos diferentes, uma da facção governista, outra da facção de oposição e outra de uma terceira, que se classificaria como independente. Como a lei eleitoral brasileira não permita isso, uma das três listas seria aprovada ou a participação do partido seria negada, e o partido não poderia apresentar candidatos. É claro que tal impasse produziria uma crise política sem precedentes no país, e uma eleição que deixasse de fora aquele que se supõe o maior partido político do país geraria infinitas distorções no quadro eleitoral.


Do ponto de vista legal, no entanto, não haveria nada demais em negar tal participação, posto que fosse uma flagrante violação da lei eleitoral. No entanto, a política é uma arte, não no sentido da tradição platônica de um conjunto racional de técnicas visando um fim prático, mas no sentido aristotélico, que se opõe à ciência, uma habilidade particular de produzir um conhecimento não necessariamente aplicado. Em outras palavras, as artes da política nem sempre podem e devem se submeter ao legalismo exagerado, mas considerar os diversos aspectos envolvidos em uma questão: a “fragilidade” da democracia no Haiti não deveria permitir que a força política de maior apelo e expressão popular ficasse de fora de nenhum processo político, sobretudo de um processo eleitoral, sob pena de deslegitimar quaisquer atos que se realizem.


Retirar o Lavalas de Aristide da eleição é negar a possibilidade de um processo político verdadeiramente democrático no Haiti. Qualquer explicação de caráter legal para isto reforça a mentira e a fraude da democracia no Haiti. Sem Lavalas e Aristide não há possibilidade de produzir qualquer transformação política séria no país. Não sou defensor do ex-presidente Aristide, pelo contrário, aqui neste mesmo blog sempre expus a minha percepção sobre as suas ambiguidades e seu caráter (com a licença do termo) “populista”. Porém, também nunca ousei aqui negar o valor e a importância de sua popularidade junto às massas dos bairros populares e favelas do Haiti. E reconhecendo isso, penso que a comunidade internacional ao aceitar a ausência do Lavalas na eleição cometeu um erro fatal: deslegitimou o processo eleitoral que era deflagrado com o registro das candidaturas.


Durante esta semana circularam em diversos lugares do país, sobretudo nas regiões onde o Lavalas seria a maior força política, uma série de panfletos (foto) com ameaças de violência contra quem participasse do processo eleitoral. O Lavalas realmente estava organizando suas bases políticas para enfraquecer o processo eleitoral, inclusive através de declarações atribuídas a Aristide de que estas eleições não eram legítimas e que se fizesse neste dia uma jornada de reflexão junto às famílias, que não saíssem às ruas para votar, que permanecessem em suas casas refletindo sobre os rumos da democracia e da política no Haiti. De fato, a operação que seria deflagrada pelo Lavalas chamava-se Bay lari la blanch (traduzido “Deixar as ruas vazias”), e tal nome foi apropriado pelos responsáveis por supostos panfletos que ameaçavam de morte qualquer um que saísse às ruas para participar da eleição. A principal recomendação era que as pessoas colocassem seus nomes nas solas dos sapatos, para que em caso de morte fossem reconhecidas.


Conversando com algumas pessoas durante a semana, perguntei por que muitos não iriam votar. A maioria afirmava que não acreditava nos políticos, e sendo o voto facultativo, estes preferiam ficar em casa no domingo, sem sair às ruas. Alguns falaram das ameaças em seus bairros, locais onde o Lavalas seria a força majoritária e que, portanto, não era conveniente participar da eleição. Esperava, no entanto, que no domingo o quadro fosse diferente, pelo menos entre aqueles que se alistaram para votar. Ao ouvir o rádio pela manhã, percebi que muitas pessoas não sabiam onde seriam seus locais de votação e, para piorar, houve a informação de que os tap taps e caminhonetes não poderiam circular no domingo da eleição, e as motocicletas foram interditadas de circular na noite de sábado. Logo, as pessoas além de não saber onde votar, não havia meios de transportes disponíveis para se deslocar rumo às suas seções eleitorais.


Não bastasse isso tudo, o presidente do país, René Garcia Preval, às vésperas da eleição, deu uma declaração de que os cidadãos que não quisessem ir votar tinham este direito e que participaria de eleição quem quisesse. Tal declaração não seria problema, se não fosse Preval o Supremo Mandatário da Nação, e não desse uma declaração que deslegitimava o processo eleitoral que se realizaria no domingo. Embora a Primeira Ministra Michelle Pierre-Louis tenha reforçado a importância da participação nas eleições, o estrago já estava feito: nem mesmo os políticos do país acreditam no papel do processo eleitoral.


Tudo isso poderiam ser ilações de um observador distante dos fatos, que estaria tirando conclusões a partir de suposições e idéias distantes da realidade. Porém, ao sair à rua numa viatura da Embaixada do Brasil no Haiti, na condição de observador internacional, tive a oportunidade de falar diretamente com a população envolvida na eleição, falei com pessoas que atuavam como mesários, chefes de seção e, especialmente, com eleitores (ou “não eleitores”) presentes nestas seções eleitorais.


Na primeira ida a uma seção eleitoral em um prédio onde funciona oanexo da previdência social e uma unidade da Universidade do Estado, no Champ Mars, fiz algumas perguntas, e descobri que uma seção eleitoral tinha apenas 07 (sete) eleitores inscritos. Neste local pude ainda ver (e fotografar) uma cédula eleitoral. As urnas são transparentes e pode ser visto quantos votos há no seu interior. Algumas pessoas me pediram dinheiro e fizeram piadas e gozações com o grupo de blancs ali presente.


Fomos então à Faculdade de Medicina, onde estavam concentradas outras zonas eleitorais, lá conversei com mesários também, e foi lá que descobri que os mesários não estão inscritos para votar e, a maioria deles está trabalhando na eleição por conta do pagamento que foi oferecido aqueles que trabalhassem na eleição. Só então entendi porque algumas pessoas me interrogaram “porque eu não ofereci este trabalho para eles”, ainda que lhes explicasse que estava como voluntário, que aceitara um convite do Embaixador. Nesta seção, no entanto, havia mais de 400 (quatrocentos) inscritos para votar, porém, por volta das 11:00 h da manhã houvesse apenas duas pessoas comparecido para votar.


De lá saímos para a região de Delmas 19, onde encontramos com uma guarnição militar dos Fuzileiros Navais brasileiros. Dali, nos encaminhamos para a região próxima ao Carrefour Trois Mains, num grande prédio anteriormente abandonado, ocupado, onde nos pilotis há uma grande zona eleitoral. Neste lugar fomos abordados por um sujeito baixinho, irritado, que começou a falar conosco: “Sem Aristide, não há eleição. Sem Lavalas, a eleição é uma mentira. Queremos que Aristide volte. Se ele voltar, o país vai se libertar, o país vai melhorar. Aristide é a vida!”. Fiquei um pouco impressionado, e mais ainda assustado, quando fui percebendo que se formava uma roda à nossa volta. E as pessoas reforçavam o que ele dizia. Um pessoa que estava conosco perguntou, já que ele não acreditava no processo eleitoral, o que estava fazendo ali? Eu não respondi e nem fiz tal pergunta. Achei que ela insultava o homem.


Fomos ainda a duas escolas na região. Os mesmos discursos. Numa delas, porém, fomos abordados, eu e uma colega, por uma repórter da Associated Press. Compreendendo o protocolo, sabendo que o Embaixador era o chefe da equipe, perguntei a um dos seguranças se nós poderíamos falar. Minha colega se recusava a falar, porém, o segurança se antecipou dizendo que não poderíamos falar com a imprensa, que deixássemos o Embaixador falar. Sinceramente, fiquei um pouco aborrecido com aquilo que interpretei como algum tipo de censura, pois realmente o que vira até ali, deslegitimava totalmente o processo eleitoral. Sabia que não devia falar isso, porém, as perguntas da repórter tornavam mais claro aquilo que vinha percebendo: ela perguntou se estávamos cientes de que no Departamento Central as eleições haviam sido canceladas por conta de alguns incidentes e pela total falta de quórum. Saí dali realmente irritado com tudo. Na escola seguinte, permaneci sentado num banco, sem ir às seções eleitorais. Refletindo. Dali iríamos para a cidade de Cabaret, na rota para Gonaives.


Em Cabaret, por fim, mais um encontro interessante com a população. De novo, não entrei nas seções eleitorais, que em todos os lugares pareciam esvaziadas e sem qualquer interesse. Veio em minha direção um homem falando em créole. Boa parte das pessoas não sabe que falo (com relativa fluência) esta língua. Então, começam a falar a esmo, como se eu não lhes compreendesse. No entanto, ao lhes perguntar, sempre em créole, o que estão dizendo, começam a falar, primeiro em francês, que é quando lhes digo que podem falar em sua língua, que sou capaz de compreender. Então as coisas se revelam...


Primeiro, o sujeito começou atacando o processo que excluiu o Lavalas, dizendo que ele era vazio e sem propósito, que não pode haver eleição sem o Lavalas. Mas isto não seria o mais importante, começou a falar dos candidatos a senador, que não eram conhecidos, que vieram à cidade uns poucos dias antes e que não eram conhecidos, por isso, como votar? Logo após, juntou-se um outro homem, mais tranquilo e falando de forma bastante esclarecedora sua posição quanto ao processo eleitoral. Disse que apesar de não ser Lavalas, achava que não podia haver eleição sem este partido, e mais ainda, que a forma que as eleição foi feita, de maneira isolada para senador, não havia qualquer chance de que as pessoas conhecessem os candidatos. Falou que quando as eleições são casadas (majistrat – prefeito, deputados e senadores) há possibilidade das lideranças locais apoiarem candidaturas e, com efeito, este apoio se traduz numa relação de confiança e credibilidade dos candidatos a senador. Ele afirmou que esta eleição “isolada” não podia ter alguma relação entre a população e os candidatos. Depois o primeiro retornou falando de Dessalines, que “somos um povo livre, que o sangue de Dessalines corre em nossas veias”. Isto, no entanto, soou como uma ironia grosseira conosco, os estrangeiros, pois ele se retirava rindo, enquanto falava estas coisas. Um outro sujeito ainda insistia sobre o Lavalas, dizendo que “Aristide deve voltar”.


A conclusão de toda esta primeira experiência como “Observador Internacional” foi impressionante. Em primeiro lugar, estas eleições são realmente uma armadilha cruel, cujo resultado, seja ele qual for, sempre reforçará estigmas e visões distorcidas sobre o Haiti: “os haitianos não participam da política, abandonam o país a própria sorte, e não tomam para si o dever de transformar a sua vida”. Esta é uma mentira, que este processo eleitoral não sustenta. Pelo contrário, estas eleições foram feitas desde o seu início para fracassar, interesses diversos tanto das forças políticas locais – entre elas, curiosamente do próprio Lavalas, por razões distintas, da comunidade internacional que se esmera em reforçar a farsa democrática ao redor do mundo, da ONU e OEA, que mantém o “Circo Haiti” de pé, fazendo o seu espetáculo de “manutenção da paz mundial”, enfim, das aspirações do chamado “Mundo Livre” que precisa da “democracia” para manter a ordem no mundo.


Em segundo lugar, as causas endógenas: o povo haitiano não participa do processo. Os partidos pouco representam no panorama político, não há representatividade, a despeito de haver dezenas de organizações políticas espalhadas por diversos lugares do país. E mesmo os indivíduos, atores políticos isolados como o Presidente Preval, o ex-primeiro ministro Alexis, figuras como o Senador Boulos, a ex-candidata à Presidência Mirlande Manigat também tem pouca representatividade, senão em setores ou grupos isolados. A única força política que tem representatividade do ponto de vista coletivo é o Lavalas e o único ator individual representativo é o próprio Aristide. Fora disso é necessária uma longa construção e um amplo debate. E por isso, mais uma vez, será penalizado o povo haitiano, “que não está habituado às instituições democráticas, que não tem os saudáveis hábitos do voto, da organização política, dos partidos organizados, etc., e que por isso não está pronto para se dirigir a si mesmo e aos seus destinos”. Caímos novamente no silogismo cruel e estigmatizante que sempre coloca o Haiti no lugar da barbárie, da recusa do mundo ocidental livre.

Por fim, reitero aqui a minha percepção de que o Haiti nem de longe é este inferno. Os erros são do governo local e talvez do próprio povo. Estes erros, porém, são também da chamada comunidade internacional que precisa legitimar o Haiti da forma que mais lhes interessa: um lugar onde ela precisa atuar e reforçar a sua importância e seu papel na defesa do chamado mundo livre. Essa é a grande fraude eleitoral que está em jogo.

Abraços a todos, feliz da vida com o Mengão na final do Carioca, quem sabe, rumo ao Penta-Tri.



P.S.: Observadores Internacionais, tal como os duendes, existem... O importante é você acreditar neles...