sábado, 25 de abril de 2009

O Pinhão Manso e o Biodiesel - A cura dos males do Haiti?

Estive esta semana na Biblioteca Nacional e na Biblioteca da Instituição Religiosa Saint Louis Gonzague. Ambas são sempre citadas em bibliografias de obras sobre o vodu como grandes repositórios da literatura etnológica do país. Ja estivera antes na biblioteca do Bureau de Ethnologie, fundado pelo escritor e etnólogo Jacques Roumain no início dos anos 40, que infelizmente se encontra em estado um tanto precário, apesar do bom conjunto de obras disponíveis.

Entre os livros encontrados, achei "Mythologie Vodou (Rite Arada)" de Milo Marcelin (1949), onde há um excelente coleta de dados sobre os lôas do Rito Rada. Segundo a literatura, o vodu se divide em duas linhas pricipais, o rito Rada (ou Arada), dos
lwa ginnen (lôas guiné), os ancestrais africanos e o rito Petro, que são os lwas créole (lôas créole), os lôas nativos do Haiti, as divindades originárias daqui. Num dos capítulos, Marcelin fala de Ayizan Véléquete, esposa de Atibon Legba, protetora e deusa das águas doces, também dos mercados, dos lugares públicos, portas e entradas diversas. Ayizan Velequeté é uma das divindades mais velhas, e já fora objeto de um culto particular, distinto dos demais lôas. Segundo Marcelin, antes de bay manje lwa yo ("dar comida aos loas"), a comida deveria ser separada em duas metades iguais, uma das metades era destinada a Ayizan, a outra metade dividida entre os demais lôas. Afirma ainda que cada lôa tem um "reposoir", uma árvore que serve de residência para o lôa ou divindade. A árvore destinada a Ayizan é o médicinier béni ou gwo metsyien (Jatropha curcas L.). Traduzindo, a árvore destinada a Ayizan é o bem conhecido dos defensores dos biocombustíveis "Pinhão Manso".

Esta semana num dos dois maiores jornais do país
Le Nouvelliste lançou uma matéria sobre a Jatropha, que como todas as questões relacionadas aos biocombustíveis se encontra cercada de polêmicas, sobretudo por que os defensores do biodiesel não cansam de apontar as vantagens do desenvolvimento destas tecnologias . Polêmicas a parte, isto me levou a uma conversa que tive ontem com um velho amigo sobre as saídas da crise haitiana. Falávamos das eleições e do beco sem saída em que o país parece estar metido. Este amigo acredita que é melhor mesmo que haja eleições, mesmo que ruins. Retorqui dizendo que eleições desta ordem servem apenas para deslegitimar o sistema representativo e denunciam a sua farsa, pois cada vez menos gente confia nos políticos e nas eleições.

Este não é um fenômeno particular do Haiti, mas parece demonstrar a gravidade do problemas dos rumos da democracia representativa. Aliás, a democracia virou, pelo menos em casos como o haitiano, mera representação, no sentido de
encenação ou de figurar como símbolo de algo. Neste sentido, a democracia ocidental cada vez mais, ao invés de se fortalecer em processos como o iraquiano, afegão ou haitiano, vai perdendo legimitidade junto às populações locais e cedendo espaço para "outra coisa". Qual seria essa "outra coisa"? Meu amigo perguntou-me a resposta deste dilema, e qual seria a outra saída. Ou apenas lhe respondi que se soubesse, teria achado a chave da história da humanidade. O certo é que o "fim da história" sonhado pelos liberais dos anos 90 ou pelos comunistas de todas as eras ainda está bem longe, mas é certo também que em tempos recentes a democracia liberal pode estar começando a sofrer os seus mais fortes golpes: a primeira eleição de Bush nos EUA já afetara gravemente a credibilidade do sistema, e estas eleições no Haiti são outra prova. Como disse também ao meu amigo, se dissesse algo tão bombástico assim, ou eu seria um profeta iluminado, ou seria um grande mentiroso.

Entramos então numa discussão sobre o papel da comunidade internacional no Haiti e os projetos para o desenvolvimento do país. Parece claro que a saída consiste em garantir às comunas do interior do país a possibilidade de desenvolvimento, possibilitar o renascimento da vida camponesa no país. Somente, através da recuperação agrícola, da criação de oportunidades no campo para as pessoas é que será possível iniciar uma recuperação econômica do Haiti. O país é uma das maiores vítimas da crise alimentar. O declínio da produção rural decorre, sobretudo, da falta de uma política agrícola e da falta de competitividade da produção nacional contra os produtos alimentares importados. A crise ambiental agrava os efeitos do esvaziamento do campo e do inchaço das cidades: as pessoas saem das pequenas comunas do interior para as capitais departamentais e destas para Port au Prince. Depois de Port au Prince, como debatia com o amigo, a próxima saída era o aeroporto. O amigo então insistiu no fato de que, uma das formas de tirar dinheiro dos EUA seria exatamente o controle da imigração, através deste desenvolvimento local. Eu poderia até concordar, porém, não há tantos boat people assim... E embora altos, os investimentos estrangeiros no país, sobretudo aqueles vindos EUA, estes parecem não chegar ao interior do país.

A constituição do país prevê uma descentralização econômica e administrativa. Esta, no entanto, está amarrada em interesses não muito claros dos sucessivos governos haitianos, que não possuem políticas para o desenvolvimento das outras regiões do país e concentram a aplicação de recursos na capital nacional. Nem mesmo as capitais departamentais recebem grandes investimentos.

Entre as supostas virtudes da Jatropha, o nosso "pinhão manso", estaria o fato dele ser uma planta nativa, bem adaptada às condições ambientais desfavoráveis. Outras vantagens seriam as inúmeras possibilidades de seu cultivo em consórcio com outras culturas, algumas delas de produtos alimentares de alto valor agregado (açaí, palmitos diversos, gado, etc.). Seu sugestivo nome médecinier e suas características de erva medicinal, utilizada em diversos fins, no tratamento de feridas e inflamações, como repelente natural de insetos, antiséptico, nos fazem perguntar se, de fato, ela não seria uma cura para os males do país...

A preocupação dos críticos dos biocombustíveis é a criação dos grandes "desertos verdes", quando a monocultura pode não apenas expulsar as outras culturas, como reduzir a produção de alimentos e facilitar a concentração de terras, o que sem dúvida agravaria ainda mais os muitos problemas do campo no Haiti. De outro lado, há além da produção do biocombustível, os resíduos quando aplicados sobre biodigestores produzem gás, que pode ser utilizado para a geração de energia elétrica, um dos grande problemas do país. Panacéia?

A sabedoria dos médsin fèyi (médicos das folhas) e dos herdeiros dos conhecimentos tradicionais do vodu que cultuam este arbusto como um repositório de Ayizan, além dos grandes Mapous, quase extintos, que são a morada de Loco Atissou, provocam uma reflexão sobre o lugar das plantas e vegetais nas religiões tradicionais. O vodu é uma religião que cultua a natureza, e cada vegetal, cada mata é uma habitasyon de uma divindade, de um lôa, que deve ser preservado. Tal e qual o Brasil, onde as religiões tradicionais, afro-brasileiras e indígenas estão na vanguarda da luta pela preservação, aqui no Haiti o vodu pode ser o lugar deste despertar para a preservação dos mapous, da busca de alternativas para um desenvolvimento sustentável do Haiti.

Abraços a todos,

Ansioso pela grande final, a terceira...


2 comentários:

ederaldo luiz disse...

Prezado Zé Renato, que bom que você voltou. Acompanho o seu blog desde o ano passado. Sou Major do Exército e estive no Haiti com o oitavo contingete brasileiro (cheguei em novembro/2007 ). Sou formado em Letras, além desta formação em Humanas, tenho uma natureza bastante sensível aos sofrimentos humanos. Aprecio muito os seus comentários, são bastante inteligentes e profundos. Continuo, aqui, do Brasil torcend muito por você. Sucesso

Zé Renato disse...

Major Ederaldo,

Obrigado por acompanhar este blog.

Abraço,