"Anônimo disse...
Amigo meu:
Concordo com você: discordamos.
Concordo com você: nem tudo que reluz é ouro.
Concordo com você: existem muitas verdades sobre o Haiti e ninguém as conhece integralmente.
Concordo com você: existem realmente muitas perguntas no ar e o povo haitiano não se pronunciou de forma definitiva e/ou clara.
Concordo com você: defendo a MINUSTAH enquanto vertente militar e enquanto Brasil.
Concordo com você, discordando."
Uma amiga costuma dizer que eu faço sempre o papel do advogado do Diabo. Eu forneço todos os argumentos para convencer que a MINUSTAH deve sair do país. Dez minutos depois de convencer as pessoas, eu começo um discurso em direção contrária, problematizando esta saída e defendendo a permanência das tropas. Não é verdade. A única verdade é que evito chegar a conclusões definitivas, pensando que o quadro é muito mais complexo do que possam supor as nossas melhores palavras de ordem e discursos. Para um lado e para outro.
Procuro dividir-me então entre ingerir doses de pretensão sociológica e me purificar com água benta, fazendo um jogo dialético entre uma posição e outra, sem nunca ficar em cima do muro. Na verdade, tomando parte nos dois lados da questão, porque a vida real é mais matizada que o preto e o branco.
Volto-me então para a mensagem deixada pelo anônimo: "o povo haitiano não se pronunciou de forma definitiva e/ou clara". Será?
As manifestações recentes não são uma manifestação clara de insatisfação com a MINUSTAH? A viatura queimada, o incidente da Catedral, a ausência num processo eleitoral que excluiu a principal força política do país... Não seriam sinais de algo vai errado?
Ok, senhor(a) Anônimo, mas como vejo o senhor(a) não tem o hábito de enxergar as coisas processualmente, vê apenas o preto no branco: Sou (mais) MINUSTAH e Sou (mais) Brasil... É um ponto de vista dos mais respeitáveis, mas ao mesmo tempo há pessoas no Brasil que não enxergam essa missão com a sua complacência patriótica, mas com um olhar crítico e necessário. Um olhar que permite compreender que houve um erro grosseiro dos nossos "soldados da paz" ao atirar em direção aos manifestantes. E que militares, como seres humanos que são, erram, e por estarem imbuídos de um poder, as armas, que civis não dispõe, tem uma responsabilidade ainda maior quanto a estes erros.
Conversava com um colega e ríamos às gargalhadas de como policiais e militares tem ainda o que aprender com civis, especialmente no que tange às manisfestações e passeatas, atos de caráter político. Em primeiro lugar, falta-lhes entender que, em princípio, toda manifestação é pacífica. Ninguém vai para uma passeata armado. Isso é um fato dito por um militante com mais de 25 anos de experiência e com longa tradição familiar nisto. Nós sabemos quando vamos às ruas, especialmente porque há mulheres, jovens, às vezes idosos, que não temos nem armas para confrontar policiais ou exércitos. Dirão alguns que militantes do MST ou de outros movimentos camponeses faziam suas manifestações munidos de foices, enxadas e facões... É verdade, mas será que estes objetos não são instrumentos de trabalho destes manifestantes? Dirão então que eu sou ingênuo ou cínico pois ouso dizer que estes instrumentos são usados de forma pacífica. Não, eles também não são só instrumentos de trabalho. São instrumentos de defesa sim. Claro que sim. Policiais vem com gás lacrimogêneo, cassetetes, balas de borracha, mangueiras d'água, escudos e capacetes, às vezes (quase sempre) com armas de fogo. Nós temos as nossas convicções, as pedras do chão, paus e o que mais estiver ao alcance das mãos. Nós tentamos entrar nos lugares, ocupar (as ruas) e resistir. Eles tentam nos impedir e para isso usam todos os meios necessários. Eles obedecem ordens, nós agimos segundo as nossas convicções, as nossas pulsões e paixões.
Há momentos em que o confronto é inevitável...
Sim, já vi coisas impressionantes... Um dos caras mais pacíficos e tranquilos que conheço, na época da privatização da Vale do Rio Doce, revoltado com a violência da polícia, que nos expulsou dos arredores da Praça XV, no Rio, que nos caçou impiedosamente naqueles dias quentes no Centro do Rio de Janeiro: vários colegas de diversos movimentos e universidades foram varridos pelas ruas até o Largo de São Francisco, onde fica o IFCS, onde estudávamos. Naquele dia, na batalha campal travada nos arredores da Praça XV, um dos mais moderados e pacíficos militantes que já conheci (até hoje ele é assim) saiu catando pedras portuguesas e lançando-as contra os policiais. Exagero? Depende... De onde partiu o exagero? De nós é que não foi. Prepararam uma verdadeira barricada em torno da Bolsa de Valores do Rio. E, embora tenhamos ocupado de maneira pacífica, cantando e conversando o espaço, fomos expulsos na base da porrada e com bombas de gás lacrimogêneo. Diz o poeta: a praça é do povo, assim como o céu é do condor. Naquele dia fomos expulsos da praça, queríamos as ruas, fomos expulsos das ruas. Um momento, as forças públicas estatais não estão ali para me proteger e servir?
Mas como digo sempre, tudo é uma questão de ponto de vista...
O problema é que estas tropas estão sempre prontas para exagerar no uso da força. Afinal, como disse, o monopólio do uso da força pertence ao Estado. Mas o Estado deve representar os cidadãos e se estes vão às ruas se manifestar, cabe ao Estado garantir-lhes este direito, não? Não, as máquinas de repressão dos Estados estão montadas para garantir-lhes a sobrevivência a todo custo, à revelia da vontade dos cidadãos.
Processos eleitorais devem garantir uma representação legítima da sociedade no Estado...
A quem representam os atuais senadores do Haiti, o seu presidente, a classe política?
Quem então controla a força que o Estado usa sobre os indivíduos e coletividades?
Ouço relatos da ação firme da MINUSTAH nos bairros populares de Port au Prince. Várias apreensões de drogas em bairros populares: maconha, normalmente nas mãos de usuários... Os caras recebem um treinamento no Brasil para estourar bocas de fumo em favelas cariocas e chegam no Haiti brincando de "Capitão Nascimento"... Francamente, se essa é a vertente brasileira, ela caiu muito de qualidade em relação aos contingentes anteriores. Pelo menos essa é a percepção de alguns interlocutores que vem destes bairros populares.
Meu anônimo insiste em falar em "verdades"...
O que é a verdade, senão a versão consagrada ou oficial de um fato?
Por falar em militares, pergunto ao meu anônimo se ele assistiu o filme "Zuzu Angel". A versão oficial da ditadura militar é que Stuart Angel nunca esteve em nenhuma unidade militar, no entanto, um "traidor da pátria" resolve abrir o jogo, contar o que viu preso em um quartel . Stuart Angel chega a ser julgado e absolvido numa auditoria militar, sem nunca ter sido preso segundo constava nos arquivos de unidades militares. Uma comédia mal dirigida por coronéis da linha dura. Infelizmente, para estes, a coisa vaza através de um deles, que resolve, por razões pessoais e egoísticas, contar o que viu. Zuzu Angel denuncia, corre atrás, vai a todo canto buscar quem lhe ouça. Acaba morta em um "acidente". Qual a verdade que nos interessa contar? A da ditadura ou a da família destas duas vítimas da ditadura?
Qual a verdade que nos interessa contar no incidente da Catedral? A que suja as mãos dos nossos "soldados da paz" com o sangue de um manifestante ou a que diz que este morreu por causa de pedradas?
Não quero convencer meu caro anônimo de nada, quero apenas que ele reflita, como eu faço, pensando que não se trata de uma questão nacionalista, mas de uma questão mais profunda que diz respeito à humanidade. Que concerne ao respeito à condição humana e à autonomia e liberdade de um povo.
A Missão da ONU veio ao Haiti para evitar uma crise social violenta e um massacre indiscriminado de pessoas como houve em Ruanda, por exemplo. Ela não está aqui para matar haitianos. Quando ela começa a fazer isso, esta missão precisa ser repensada. É nisso que meu anônimo precisa pensar.