quinta-feira, 2 de julho de 2009

Pretensão e água benta, um pouco de cada

Eis que me visita novamente o anônimo, que descubro, faz uma defesa apaixonada dos militares...

"Anônimo disse...

Amigo meu:

Concordo com você: discordamos.

Concordo com você: nem tudo que reluz é ouro.

Concordo com você: existem muitas verdades sobre o Haiti e ninguém as conhece integralmente.

Concordo com você: existem realmente muitas perguntas no ar e o povo haitiano não se pronunciou de forma definitiva e/ou clara.

Concordo com você: defendo a MINUSTAH enquanto vertente militar e enquanto Brasil.

Concordo com você, discordando
."

Deixa beijos...


Devo admitir que é arrogante demais afirmar, como fiz nas última postagens, que as pessoas não entendem nada disso aqui. De outro lado, porém, nunca disse que eu sei a verdade e por isso posso acusar a sua ignorância a partir de uma autoridade discursiva construída por estar aqui "vendo as coisas de perto", como o meu caro(a) anônimo. Isso também vale para as críticas que faço aos debates promovidos pelos movimentos de esquerda e pelas centrais de movimentos sociais, onde, curiosamente, assumo a defesa da MINUSTAH, não pelas suas virtudes intrínsecas, mas por reconhecer que há também avanços e passos importantes que foram dados a partir desta missão.

Uma amiga costuma dizer que eu faço sempre o papel do advogado do Diabo. Eu forneço todos os argumentos para convencer que a MINUSTAH deve sair do país. Dez minutos depois de convencer as pessoas, eu começo um discurso em direção contrária, problematizando esta saída e defendendo a permanência das tropas. Não é verdade. A única verdade é que evito chegar a conclusões definitivas, pensando que o quadro é muito mais complexo do que possam supor as nossas melhores palavras de ordem e discursos. Para um lado e para outro.

Procuro dividir-me então entre ingerir doses de pretensão sociológica e me purificar com água benta, fazendo um jogo dialético entre uma posição e outra, sem nunca ficar em cima do muro. Na verdade, tomando parte nos dois lados da questão, porque a vida real é mais matizada que o preto e o branco.

Volto-me então para a mensagem deixada pelo anônimo: "o povo haitiano não se pronunciou de forma definitiva e/ou clara". Será?

As manifestações recentes não são uma manifestação clara de insatisfação com a MINUSTAH? A viatura queimada, o incidente da Catedral, a ausência num processo eleitoral que excluiu a principal força política do país... Não seriam sinais de algo vai errado?

Ok, senhor(a) Anônimo, mas como vejo o senhor(a) não tem o hábito de enxergar as coisas processualmente, vê apenas o preto no branco: Sou (mais) MINUSTAH e Sou (mais) Brasil... É um ponto de vista dos mais respeitáveis, mas ao mesmo tempo há pessoas no Brasil que não enxergam essa missão com a sua complacência patriótica, mas com um olhar crítico e necessário. Um olhar que permite compreender que houve um erro grosseiro dos nossos "soldados da paz" ao atirar em direção aos manifestantes. E que militares, como seres humanos que são, erram, e por estarem imbuídos de um poder, as armas, que civis não dispõe, tem uma responsabilidade ainda maior quanto a estes erros.

Conversava com um colega e ríamos às gargalhadas de como policiais e militares tem ainda o que aprender com civis, especialmente no que tange às manisfestações e passeatas, atos de caráter político. Em primeiro lugar, falta-lhes entender que, em princípio, toda manifestação é pacífica. Ninguém vai para uma passeata armado. Isso é um fato dito por um militante com mais de 25 anos de experiência e com longa tradição familiar nisto. Nós sabemos quando vamos às ruas, especialmente porque há mulheres, jovens, às vezes idosos, que não temos nem armas para confrontar policiais ou exércitos. Dirão alguns que militantes do MST ou de outros movimentos camponeses faziam suas manifestações munidos de foices, enxadas e facões... É verdade, mas será que estes objetos não são instrumentos de trabalho destes manifestantes? Dirão então que eu sou ingênuo ou cínico pois ouso dizer que estes instrumentos são usados de forma pacífica. Não, eles também não são só instrumentos de trabalho. São instrumentos de defesa sim. Claro que sim. Policiais vem com gás lacrimogêneo, cassetetes, balas de borracha, mangueiras d'água, escudos e capacetes, às vezes (quase sempre) com armas de fogo. Nós temos as nossas convicções, as pedras do chão, paus e o que mais estiver ao alcance das mãos. Nós tentamos entrar nos lugares, ocupar (as ruas) e resistir. Eles tentam nos impedir e para isso usam todos os meios necessários. Eles obedecem ordens, nós agimos segundo as nossas convicções, as nossas pulsões e paixões.

Há momentos em que o confronto é inevitável...

Sim, já vi coisas impressionantes... Um dos caras mais pacíficos e tranquilos que conheço, na época da privatização da Vale do Rio Doce, revoltado com a violência da polícia, que nos expulsou dos arredores da Praça XV, no Rio, que nos caçou impiedosamente naqueles dias quentes no Centro do Rio de Janeiro: vários colegas de diversos movimentos e universidades foram varridos pelas ruas até o Largo de São Francisco, onde fica o IFCS, onde estudávamos. Naquele dia, na batalha campal travada nos arredores da Praça XV, um dos mais moderados e pacíficos militantes que já conheci (até hoje ele é assim) saiu catando pedras portuguesas e lançando-as contra os policiais. Exagero? Depende... De onde partiu o exagero? De nós é que não foi. Prepararam uma verdadeira barricada em torno da Bolsa de Valores do Rio. E, embora tenhamos ocupado de maneira pacífica, cantando e conversando o espaço, fomos expulsos na base da porrada e com bombas de gás lacrimogêneo. Diz o poeta: a praça é do povo, assim como o céu é do condor. Naquele dia fomos expulsos da praça, queríamos as ruas, fomos expulsos das ruas. Um momento, as forças públicas estatais não estão ali para me proteger e servir?

Mas como digo sempre, tudo é uma questão de ponto de vista...

O problema é que estas tropas estão sempre prontas para exagerar no uso da força. Afinal, como disse, o monopólio do uso da força pertence ao Estado. Mas o Estado deve representar os cidadãos e se estes vão às ruas se manifestar, cabe ao Estado garantir-lhes este direito, não? Não, as máquinas de repressão dos Estados estão montadas para garantir-lhes a sobrevivência a todo custo, à revelia da vontade dos cidadãos.

Processos eleitorais devem garantir uma representação legítima da sociedade no Estado...

A quem representam os atuais senadores do Haiti, o seu presidente, a classe política?

Quem então controla a força que o Estado usa sobre os indivíduos e coletividades?

Ouço relatos da ação firme da MINUSTAH nos bairros populares de Port au Prince. Várias apreensões de drogas em bairros populares: maconha, normalmente nas mãos de usuários... Os caras recebem um treinamento no Brasil para estourar bocas de fumo em favelas cariocas e chegam no Haiti brincando de "Capitão Nascimento"... Francamente, se essa é a vertente brasileira, ela caiu muito de qualidade em relação aos contingentes anteriores. Pelo menos essa é a percepção de alguns interlocutores que vem destes bairros populares.

Meu anônimo insiste em falar em "verdades"...

O que é a verdade, senão a versão consagrada ou oficial de um fato?

Por falar em militares, pergunto ao meu anônimo se ele assistiu o filme "Zuzu Angel". A versão oficial da ditadura militar é que Stuart Angel nunca esteve em nenhuma unidade militar, no entanto, um "traidor da pátria" resolve abrir o jogo, contar o que viu preso em um quartel . Stuart Angel chega a ser julgado e absolvido numa auditoria militar, sem nunca ter sido preso segundo constava nos arquivos de unidades militares. Uma comédia mal dirigida por coronéis da linha dura. Infelizmente, para estes, a coisa vaza através de um deles, que resolve, por razões pessoais e egoísticas, contar o que viu. Zuzu Angel denuncia, corre atrás, vai a todo canto buscar quem lhe ouça. Acaba morta em um "acidente". Qual a verdade que nos interessa contar? A da ditadura ou a da família destas duas vítimas da ditadura?

Qual a verdade que nos interessa contar no incidente da Catedral? A que suja as mãos dos nossos "soldados da paz" com o sangue de um manifestante ou a que diz que este morreu por causa de pedradas?

Não quero convencer meu caro anônimo de nada, quero apenas que ele reflita, como eu faço, pensando que não se trata de uma questão nacionalista, mas de uma questão mais profunda que diz respeito à humanidade. Que concerne ao respeito à condição humana e à autonomia e liberdade de um povo.

A Missão da ONU veio ao Haiti para evitar uma crise social violenta e um massacre indiscriminado de pessoas como houve em Ruanda, por exemplo. Ela não está aqui para matar haitianos. Quando ela começa a fazer isso, esta missão precisa ser repensada. É nisso que meu anônimo precisa pensar.

O verdadeiro brilho falso do ouro dos tolos

Desde pequeno ouço a frase "Nem tudo que reluz é ouro"...

Quando era criança, fui algumas vezes à Rio Bonito, na casa de uma grande amiga de minha mãe a quem chamávamos de tia. Ela era irmã do marido da irmã de meu pai - isso me remete às classificações e diagramas de parentesco - e, com efeito, chamávamos seus filhos de primos. A casa era um pequeno sítio, com uma pequena horta e uma oficina - o marido dela, que não chamávamos de "tio", mas de "seu" Nelson, era mecânico. Havia ainda algumas cabras e muitas galinhas daquelas que damos nome e, crianças, choramos quando vamos comer.

Ao lado do pequeno sítio havia um barranco com grandes valas formadas pela erosão da chuva. O barranco, com sua terra avermelhada e com grande quantidade de pedras e cascalho, era um local perfeito para explorações e brincadeiras de criança. Encontrávamos pequenos cristais de quartzo e grandes pedaços de malacacheta, que faziam a nossa alegria infantil se tornar sonhos de riqueza: estávamos encontrando diamantes e pedras preciosas. O verdadeiro brilho daquelas pedras embalava nossas brincadeiras com falsas esperanças de encontrar riquezas. Porém, nem tudo que reluz é ouro.

As recentes postagens deste blog apresentam uma crítica um tanto feroz à MINUSTAH. E entendo que os defensores de "outras facetas" desta missão se sintam ofendidos. Para eles é como se eu não reconhecesse essa importância. Pode ser...

Por outro lado, aprendi que o monopólio legítimo da força deve pertencer ao Estado, e que este é um dos sinais de soberania deste Estado. Aprendi também que o Estado é a representação da sociedade, e para alguns contratualistas, inclusive, é através do Estado que indivíduos abrem mão de seus interesses pessoais em favor da coletividade, e que este contrato social estabelece uma igualdade entre os seus signatários. Logo, é no interior deste Estado, representante dos interesses coletivos, que grupos de indivíduos disputam entre si o controle da sociedade. Toda essa discussão teórico-política tem um objetivo claro, explicar àqueles que se dizem "do lado da verdade" (e como efeito, do lado da MINUSTAH), que esta missão não chega aqui por acaso e que ela tem objetivos e interesses definidos, interesses estes que não chegam nem um pouco perto dos interesses de maioria da população haitiana.

Subestimam a inteligência deste povo, aqueles que pensam que basta dar-lhes comida e pronto! Está resolvido o problema. Pensar que este povo é composto de "gente que vive num estado de animalidade", que "não atingiram ainda o estágio de desenvolvimento da civilização", "que são como bichos" e, por isso, "precisam ser alimentados, adestrados e preparados para a civilização", que "eles estão ainda em um estágio onde ainda são puro instinto e por isso se matam como animais", entre outras observações que traduzem uma visão preconceituosa, redutora e racista do povo haitiano.

Concordo, porém, que soa pretensioso demais alguém julgar que enxerga mais do que os outros. E esse é o brilho do ouro dos tolos. Portanto, se devo dizer algo diferente é que todos se iludem com o brilho verdadeiro do ouro falso, e creem estar enxergando muito mais do que os outros do lugar de onde olham. Porém, alerto quaisquer de meus interlocutores para este momento de auto-crítica, citando Marcelo D2, "eu não estou 100% certo, mas você está totalmente errado" se não se esforçar em fazer também uma auto-crítica.

Vamos então discutir aquilo que meus interlocutores chamam de "fatos"...

Fiz um esforço para retroceder ao ponto de chegada da missão da ONU ao país: um golpe de Estado orquestrado pelas Embaixadas locais de EUA, França e Canadá e uma força de segurança provisória formada por estes três países. O sequestro do presidente do país, democraticamente eleito e com o apoio da maioria da população pobre do país, e sua suposta "renúncia" assinada numa situação de sequestro - onde parece ser óbvio estão reduzidas as suas opções de escolha: "ou assina, ou (a gente te) ass(ass)ina". Antes disso, é importante ressaltar, um quadro de crise social, com conflitos armados, o que supunha a necessidade de uma intervenção que evitasse uma crise mais aguda com violações dos direitos humanos e um quadro de profunda instabilidade. Vejam bem que tal quadro ainda não havia se definido, embora se desenhasse, a necessidade de uma intervenção se fez como medida preventiva.

Os "poderes instituídos", no caso o governo provisório pós-golpe, solicita a intervenção das Nações Unidas. Desembarcam aqui, "a pedido do governo local", os "casque bleu" da ONU para estabilizar o país. Realizam-se eleições, e René Preval não chega a atingir o total acima de 50% que garantiria sua vitória no primeiro turno, o que obrigaria a realização de um segundo turno, o que é exigido pela constituição do país. Uma bem orquestrada ação de diplomatas e de governos do continente americano, muito bem conduzida pelo nosso Brasil, garante a posse de Preval, atropelando a norma constitucional. Preval, que reconhece que sua chegada ao poder pela segunda vez (na primeira, esta se deu sob os auspícios do hoje "leproso" Aristide) se deve a este esforço da "comunidade internacional", renova o mandato da Missão da ONU.

Custa tão caro, portanto, aceitar que diversos aspectos desta Missão da ONU se dão à revelia da população? Que não são os interesses do "povo" que estão em jogo, mas que diversas articulações entre elites de extração variada e interesses diversos estão em jogo nesta missão?

O que tenho apontado é isso. Não é cansaço, como disse, é a constatação clara de que, não se pode defender infinitamente esta missão, porque os seus pressupostos fundadores subestimam a capacidade deste povo de gerir suas crises, na verdade, como tenho insistido, colocam os haitianos numa condição subalterna, onde estes precisam ser tutelados. Poder-se-ia insistir que não há tutela posto que a missão obedece uma demanda de governos locais.

A atual Primeira Ministra, Michelle Pierre-Louis, publicou em 2008 um interessante artigo na revista do Institut Français d'Haïti, "Conjonction", falando que nos últimos 16 anos o país teria sido palco de pelo menos 15 missões das Nações Unidas, com diferentes mandatos, entre elas a atual missão, a MINUSTAH, que já está no país desde 2004. Creio que ao chegar ao posto de Primeira Ministra, tal como fizera um famoso intelectual brasileiro que chegou à presidência da república, Mme. Pierre Louis deva ter dito para que esquecêssemos tudo o que ela escrevera. A questão que ela propunha com o texto era discutir até onde o país realmente poderia ser autônomo e desenvolver processos gestionários a partir de si mesmo, um vez que fosse constantemente palco de diversas missões que subtraem o poder do Estado em favor de outrem. Em outras palavras, se as missões da ONU "estabilizam", porque estes processos não se traduzem numa longa duração? Talvez, a resposta é exatamente aquela que venho sugerindo aqui: as missões da ONU, a despeito de todo o seu caráter humanitário, elas pecam por um grave reducionismo: não estão preocupadas com a realidade local, mas com os modelos prontos que eles tem que trazer e implantar nos locais onde atuam.

Pensar que a ação de indivíduos isolados pode trazer efeitos positivos para esse tipo de missão me parece uma espécie de "jogo do contente" de Poliana. Concordo, porém, que não se deva jogar o bebê fora junto com a água do banho. O que penso, porém, vai mais longe e diz respeito ao caráter deste tipo de missão. E, isto, insisto, passa por considerar "certa incapacidade dos povos atendidos por estas missões". Apenas para ilustrar, uma vez conversando com um funcionário do UNFPA (Fundo de Populações das Nações Unidas), que vinha pela primeira vez ao Haiti, falávamos sobre o país e ele me disse que já conhecia muito sobre o Haiti, pois estudara em seu doutorado os "état faible". Fiz uma rápida analogia, contando a história de um país que elegera seu presidente em eleições fraudadas, o Estado não garantia saúde e nem educação a todos os seus cidadãos, que se tratava de um país marcado por clivagens de diversas ordens, e que este país era considerado uma das mais fortes e importantes democracias do planeta. Ele perguntou de que país falava, disse-lhe que me referia à primeira eleição de George Bush Jr. à presidência dos EUA e ninguém nunca discutira se este país é um "état faible". Disse, enfim, que este tipo de conceito, de caráter normativo não era útil para pensar o Haiti. Esta conversa, no entanto, dá a dimensão de como a vertente civil das Missões da ONU pensa suas intervenções no mundo.

Nem tudo que reluz é ouro...

Quando estamos diante de um Estado que não detém o monopólio legítimo da violência, transferindo este para forças estrangeiras, responsáveis por garantir a segurança pública, creio se tratar de um caso interessante onde a soberania deste Estado se encontra nas mãos de outrem, e podemos dizer duas coisas: ou este Estado não representa a sua sociedade ou esta força é um "corpo estranho" colocado entre esta sociedade e este Estado, criando tensões irreconciliáveis. Explico.

Esse "corpo estranho" não está ligado aos interesses colocados por este Estado, mas a interesses acima deste, referidos à "segurança hemisférica". Ora, isso que dizer que este poder militar não está submetido ao poder deste Estado e muito menos aos interesses desta sociedade, mas a uma espécie de "deus ex-machina" que se coloca acima dos problemas e questões localizadas para decidir, de maneira olímpica, o rumo desta sociedade e sua relação com o Estado.

Quando o soldado imprudente atira em direção a uma massa que se manifesta, supostamente, de maneira pacífica à saída de uma missa (algo em comum com o assassinato do estudante Édson Luís no Calabouço e a reação da tropa ao povo que saía da missa em sua homenagem na Candelária?), não se trata de um erro individual isolado. Este ato reflete duas coisas, dois pressupostos: o primeiro, a total ignorância e desconhecimento sobre a população, baseada em informações estereotipadas e, por vezes, terrivelmente equivocadas, vindas de "especialistas" em cultura e povo haitiano. A falta de informação qualificada e correta induz a percepções equivocadas sobre o povo local, percepções baseadas em preconceitos das mais variadas ordens e que se traduzem em certas ações e julgamentos. O segundo, é que tal ignorância e desconhecimento tem raízes históricas e estão, no caso do Haiti em especial, ligadas a um conjunto de preconceitos e idéias constituídas ao longo de dois séculos de história do país, que colocam estes países que são alvo de missões da ONU numa espécie de "não lugar", particularmente dado, que lhes transforma em excrescências do mundo moderno: eles não deveriam existir. Porém, uma vez que estes "não lugares" existem, como lidar com eles? Eis a questão.

O problema é que mesmo os especialistas em relações internacionais acabam operando com teorias normativas e, com efeito, não se ocupam de pensar estes "não lugares", mas de enquadrá-los dentro de suas teorias, sem perceber que sua própria condição de "não lugar" é fruto de uma relação com algum "lugar" dado. E que, é possível, pensar que "não lugares" não são uma condição, mas de fato uma relação entre coisas, pessoas, Estados, sociedades, etc. que está em relação com "lugares" que também são relações entre coisas, pessoas, Estados, sociedades, etc., um jogo permanente que opõe as coisas umas às outras e que forma redes e configurações. Logo, se o Haiti é o que é, não é somente por suas "características intrínsecas" ou pela sua "natureza", ou ainda, o "espírito de seu povo", mas decorre de relações e de um sistema de relações internacionais que engendra "Haitis", "Rwandas", "Congos", etc., como partes de um sistema colonial que ainda persiste. Como disse sabiamente Omar Thomaz, professor da Unicamp, em conversas particulares, há no Haiti uma espécie de "persistência da história". O mundo pós-colonial existe, então, como uma relação dada no plano histórico-temporal, mas também no plano concreto da existência cotidiana, em relação a um mundo colonialista.

Porém, como "nem tudo que reluz é ouro", penso também que posso estar me iludindo com o brilho tão verdadeiro de elaboradas discussões intelectuais, forjadas sobre falsos dilemas, transformando, como uma criança, pequenos cristais de quartzo e grandes blocos de malacacheta em tesouros incríveis sem valor algum.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Não, eu não estou irritado e nem cansado... Apenas estou enxergando melhor

"Sobre o incidente em frente ao Palácio você tem interlocutor previlegiado.

Porquê nào o busca para saber a verdade e o que está sendo feito para comprová-la pra o grande público?

Você está cansado fisicamente. Isto é um fato. Até que ponto isto influencia a sua observação apaixonada deste país que amamos?"


Escreveu um anônimo no meu blog...

Ok. Em primeiro lugar, teríamos que qualificar aquilo que chamamos de verdade. Uma das verdades incontestáveis é que o sujeito que foi morto em frente à Catedral de Port au Prince tomou mesmo um tiro. Outra verdade é que parece que nossos "Soldados da Paz" atiraram mesmo em direção aos "manifestantes" que saíam de uma (perigosa?) missa na Catedral de Port au Prince, uma celebração aparentemente pacífica à morte de uma liderança popular, o Padre Jean Juste.


Ainda que eu duvidasse disto ou mesmo que estivesse enganado, creio que meu cansaço nada tem a ver com o meu juízo sobre os fatos.


Quanto à minha irritação, bem ela talvez seja um fato, mas não decorre do cansaço, decorre por exemplo, de ouvir de outro interlocutor privilegiado que, realmente, do ponto de vista militar esta missão é marcada pela coragem e pela decisão no agir do comando brasileiro, o que é visto em termos de missões da ONU como algo positivo, sendo que, no entanto, do ponto de vista dos direitos humanos (isto não se refere de modo absoluto à intervenção brasileira, mas à missão como um todo), esta missão apresentaria falhas graves. Portanto, não acho que esteja faltando com a verdade quando faço as minhas críticas a esta missão, mas apenas apresento o meu ponto de vista, sem patriotadas exageradas.

Militares tem grande dificuldade em aceitar os seus erros. Uma vez conversando com um oficial das forças armadas, este se recusava a aceitar que houve uma ditadura e que esta ditadura matou e torturou pessoas. E quanto a tortura este dizia apenas que ela existe em todo lugar. Ora, suponho que a partir disto esta pessoa não veja defeito em torturar alguém, se for por um bom motivo. A velha máxima de Maquiavel, "os fins justificam os meios" (fica aqui uma pergunta: como se define um "bom motivo" para justificar a tortura?). Quanto à ditadura, ele me dizia que foram realizadas eleições. O que ele esquecia de dizer é que, em 1978, quando o partido da ditadura perdeu as eleições, eles criaram senadores e governadores "biônicos", garantindo assim a eleição do candidato militar nas eleições indiretas para presidente, João Figueiredo. Eis o que os militares daquela época chamavam de democracia. Isso mudou? Espero... História. O que isso teria a ver com a presente discussão? Esclareço.


Errar é humano. Eu erro, ainda bem. Não sou perfeito. Mas não "falseio com a verdade," porque "verdade" pode ser um ponto de vista. O meu é esse, doa a quem doer. Não tenho compromisso algum com as Nações Unidas e nem com os militares brasileiros que estão aqui, senão alguns laços de camaradagem com algumas pessoas que penso serem boas pessoas. Seria mais honesto e sensato reconhecer erros e corrigi-los. No entanto, isto parece ser difícil, não parece ser a prática nas missões de paz da ONU. Eu não confundo, porém, as coisas. Sobretudo porque pessoas que vivem aqui como eu e um comentador deste blog, que me critica por apresentar o meu "ponto de vista antropológico", uma delegação de haitianos foi ao Congresso Nacional demandar de nossos senadores a retirada do Brasil da MINUSTAH. Acho que este é um argumento bem mais "verdadeiro" que o meu e de meu simpático comentador e crítico, posto que venha de haitianos insatisfeitos com a situação do país e a presença da ONU aqui.


Ou não, é apenas mais um ponto de vista que deve ser considerado. A única coisa que "meu ponto de vista antropológico" faz é considerar todos os demais pontos de vista, sem assumir o meu como "único e verdadeiro" sobre esta questão. Meu comentador também não considera o pressuposto deste blog: são relatos impressionistas. Eu não sou jornalista, nem porta-voz de ninguém. Meu amigo e grande intelectual Fred Coelho tem exaltado exatamente isto na net: sua capacidade de oferecer diversos pontos de vista. Aqueles que criticam o meu, terão todo espaço aqui mesmo para apresentar o seu.



Quando analiso uma situação, eu não olho para indivíduos. Para mim estes não existem, senão quando inscritos em configurações sociais. E o que vejo aqui é sempre uma maneira de reduzir os haitianos a uma condição de inferioridade. Daí o título da postagem: Alteridade Redutora. Sim, porque há um pressuposto que a diferença é sempre entendida em termos qualitativos.


Não ignoro as virtudes da "Ajuda Humanitária" e das "boas intenções" destas missões. Espanta-me, no entanto, ao conversar com pessoas que participaram de outras intervenções da ONU em outros lugares do mundo, perceber exatamente isto: estes povos são incapazes de se governar, governemos por eles. Uns exaltam o fato da ONU em algumas missões ter assumido o Estado, e por isso ter garantido a condução do processo de democratização e estabilização com mais eficácia. Outros destacam o fato de que alguns povos "vivem mergulhados na barbárie e na falta de democracia", como se o modelo democrático pudesse realmente garantir que as coisas "melhorem" no país. Melhorem para quem "cara pálida"?


Os processos de estabilização da ONU visam exclusivamente garantir que as elites locais retomem o poder e garantam o desenvolvimento de um modelo que nem sempre é aquele que estes povos desejam. E insisto, a única coisa que me faria defender a permanência da ONU aqui é para evitar que os EUA tomem isso aqui, como fizeram no início do século XX. O povo fica de fora destes processos, como ficou de fora das eleições "democráticas" realizadas aqui. Ouvi dizer: melhor haver eleições ruins do que não haver eleições. Pergunto de novo: "Melhor" para quem "cara pálida"?


Sim, levar alimentos para quem tem fome é importante, e destaco que se não fosse a presença da ONU, muitos aspectos da cooperação não poderiam existir simplesmente, porque não haveria condição disto chegar ao país, conforme disse em postagem anterior:


"De outro lado, como seria realmente possível a nossa presença aqui, digo, nós "os bem intencionados paladinos da verdade" críticos desta visão estereotipada, mas nem um pouco menos comprometidos com a necessidade de uma "estabilidade" que nos permita ao menos estar aqui? Eis a suprema contradição... Sem a missão da ONU não haveria a segurança mínima necessária para este esforço de internacionalização de nossa antropologia, e no mesmo pacote, outras coisas: o desenvolvimento de um novo perfil para a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) do Ministério das Relações Exteriores, a internacionalização de nossas organizações não governamentais, a expansão continental de nossas empresas... Ou seja, ambiguidades e contradições de processos desta ordem."(Ayitian Nuvels, segunda-feira, 22 de junho de 2009)


Não percebe meu interlocutor que estou incluído entre os “bem intencionados paladinos da verdade” críticos (ferozes, incluo) desta visão estereotipada. E que, apesar do meu cansaço, ao qual ele atribui as minhas críticas que falseiam a verdade, eu reconheço “as ambiguidades e contradições de processos desta ordem”. Pergunto eu, estaria meu interlocutor anônimo preparado para lidar com suas ambiguidades? Espero que sim.


Portanto, quando falo destas missões da ONU, não tenho a ousadia de achar que estou certo, mas me vejo no direito de criticar aquilo que chamo de "desvio original" das missões de paz: o seu caráter colonialista e redutor dos povos.


Ouço muito por aqui as pessoas de várias partes do mundo, sobretudo de países da Europa, apontarem o Brasil como uma potência mundial emergente. O "país do futuro" estaria se tornando uma realidade presente? Não sei... O meu pesadelo, no entanto, é ver que este país pode cometer o mesmo erro de potências anteriores, mas sobretudo, cometer o erro de ignorar seu próprio passado e suas contradições e agir como os velhos países colonialistas. Já ouvi de alguns estudantes haitianos a crítica ao Brasil, referindo-se a possível ranços imperialistas. Estarão eles errados? Não estaremos nós cegos e inebriados com o poder, querendo guiar aqueles que julgamos cegos?


Este é o meu pressuposto. Não é defender e nem apresentar a verdade. Quanto mais conheço esse país, quanto mais vivo nele e leio sobre ele, menos tenho a pretensão de dizer que conheço algo. Temo que alguns, enganados pelo brilho do ouro dos tolos, achem que realmente são especialistas na cultura e no conhecimento sobre este povo.