quinta-feira, 19 de junho de 2008

Em busca da pureza perdida?

Des Ermites: Vodu ou Católico? Ou um pouco dos dois?

Ontem, conversava por telefone com um brasileiro que está aqui no Haiti. Fotógrafo, nós havíamos tentado conversar para que eu o levasse à Des Ermites. Infelizmente, uma série de desencontros impediu que nos encontrássemos. Porém, muito gentil, ele perguntou se eu queria conhecer St. Michel du Sud, que segundo ele é um lugar de peregrinação e poderia ser muito interessante para mim. Disse a ele que infelizmente não poderia ir, pois quero estar ao máximo possível em Des Ermites, acompanhando a preparação da festa do santuário, no dia 2 de julho. Comentei que queria ir à Saut d’Eau na festa da Vierge des Miracles em 16 de julho.

Meu interlocutor disse que eu não devia ir neste dia, pois “se quisesse ver as coisas mais ‘puras’ da ‘religião mesmo’, que chegasse antes, por volta do dia 13 de julho”. Disse ainda que “a festa do dia 16 é mais ‘profana’, com gente bebendo cerveja e dançando”. Respondi-lhe que era engraçado o que ele dizia, pois como antropólogo não tinha o hábito de julgar assim as coisas que as pessoas faziam, pois não sou eu quem coloca o selo de “autenticidade” numa manifestação cultural.

Uma vez soube que um jovem antropólogo, numa espécie de auto-elogio ao seu trabalho de pesquisa, criticou o trabalho de outro antropólogo, pesquisador do candomblé, porque em seus livros sobre a música dos terreiros ele fazia as gravações em estúdio, e que do coro destas gravações participaram alguns músicos profissionais, entre eles, um cantor de samba, conhecido na noite do Rio de Janeiro. Disse ainda que suas gravações eram “autênticas” porque haviam sido feitas num terreiro, com os membros deste terreiro. O que não sabia o jovem antropólogo é que o coro que ele criticara era formado por membros de um terreiro ao qual o outro antropólogo é filiado e o cantor conhecido freqüentava a mesma casa de santo, ora como cliente, ora como visitante nas festas públicas.

Isto, de fato, não tem muita importância. O que importa é que certa visão da antropologia se preocupa em buscar uma essência, uma pureza que só existe como idéia nativa, e por isso se apresenta como um problema sociológico, e sendo uma idéia nativa, esta pureza é um “programa de verdade”, por isso se torna um interessante problema a ser pensado. Quando esta “verdade”, esta “pureza” se torna objeto de disputas intelectuais ela é também um problema sociológico, mas não sobre o ponto de vista nativo, na verdade, torna-se um problema de sociologia dos intelectuais, suas disputas, a formação do campo, etc., neste caso, intelectuais tornam-se “nativos”. Não confundir também isto com a questão dos “intelectuais nativos” ou “nativos intelectuais”. Enfim, este jogo de palavras está referido a uma questão: a questão da busca da “pureza” e da “verdade” das coisas.

Meu interlocutor talvez tenha razão. A festa do dia 16 de julho se tornou uma festa “profana”... Isso tira a sua “verdade” como celebração religiosa? Do meu ponto de vista, não. Por quê? Porque na vida real as coisas não se separam de modo distintivo. Separações desta natureza são exercícios de purificação operados a partir de determinados pontos de vista normativos sobre a ordem “verdadeira”, “boa” e “legítima” das coisas.

Olho então para a minha querida Salvador...

A festa do dia 02 de fevereiro, dedicada ao orixá Iemanjá, no bairro do Rio Vermelho é uma festa “de largo”, como dizem os baianos, ou uma festa que ainda guarda um conteúdo religioso? Não sei dizer... Mas vejo as pessoas depositarem suas oferendas no mar, os pequenos barcos saindo com flores e presentes para Iemanjá. Ao mesmo tempo, vejo nas ruas do Rio Vermelho um verdadeiro carnaval, hotéis oferecendo pacotes e camarotes para o dia da festa. Todo mundo enchendo a cara de cerveja e se divertindo. Todo mundo fazendo oferendas, pedidos e pagando promessas feitas à Iemanjá. Sagrado ou profano?

No Rio de Janeiro, no dia 23 de abril, o dia de São Jorge, é feriado. Milhares de pessoas se amontoam em torno do Campo de Santana, ali no final do SAARA, quase na esquina da Avenida Presidente Vargas. São devotos do Santo Guerreiro que vão à sua igreja louvá-lo. Muitos vestidos com roupas vermelhas ou vestidos de branco, chegam ainda na madrugada para aguardar o toque dos clarins dos policiais militares e bombeiros, a queima de fogos e a benção do padre da igreja, as muitas missas, a procissão e o cortejo do santo. Em Madureira, a cavalhada de São Jorge sai da quadra da Escola de Samba Império Serrano e vai até a igreja do santo em Quintino. Em torno de ambas as igrejas, muita festa, pagode, batucada e cerveja. Sagrado ou profano?

Volto para o Haiti. Em Des Ermites olho o modo como as pessoas dançam louvando a santa. Acho curioso, dançam sensualmente, quase de modo “profano”, bebem rum e cerveja, contam piadas e fazem brincadeiras, enquanto transcorre o serviço religioso e diante dos loas manifestados. Sagrado ou profano?

Há alguns anos escrevi um trabalho que intitulei “Profanando o Sagrado?”, que investigava uma pequena loja de artigos religiosos no bairro do Cachambi, Rio de Janeiro, onde sua dona, uma mãe de santo prestava todo tipo de atendimento espiritual na parte do fundo da loja. De um lado, um estabelecimento comercial, voltado à venda de produtos para religião. De outro lado, um verdadeiro templo religioso instalado no interior deste estabelecimento comercial. A minha conclusão era que não havia “profanação” alguma. Havia sim uma naturalização das relações entre uma coisa e outra, que atribuí então à visão de mundo do candomblé e das religiões afro-brasileiras em geral. Mais tarde, já quando defendi a minha dissertação de mestrado, aprofundava a questão afirmando que estas separações são operações de purificação utilizadas muitas vezes pelos agentes em situações de acusação. A vida real torna as coisas extremamente mescladas, complexas e precisamos separá-las para fazê-las inteligíveis.

Talvez Saut d’Eau não seja mais uma “festa religiosa” stricto senso. Mas de outro lado, aprendi que as festas religiosas sempre têm uma faceta profana, que é inseparável de seu lado mais sacralizado. Não desprezaria as observações de meu interlocutor, mas diria que para mim interessa muito mais essa festa mais “misutrada”, onde o “sagrado” parece sufocado pelo “profano”, talvez exatamente porque essa mistura não apresente as coisas “puras” ou “purificadas”, mas porque para mim, suponho, elas parecem mais próximas de como o mundo real se apresenta, sem máscaras ou fantasias.

Não quero dizer que há uma verdade nos fatos a ser descoberta, porque estaria incorrendo no mesmo erro daqueles que falam em “pureza”, “verdade” e outras coisas que no final acabam sendo formas de estabelecer uma visão normativa sobre o mundo. Só não quero também dirigir meu olhar sobre as coisas para fazê-las parecer aquilo que quero enxergar. Quero que as coisas, as sensações, os fatos, entrem pelos meus olhos, ouvidos, pelos meus poros, para que de alguma forma esse exercício quase poético me permita compreender os sentidos que as pessoas atribuem às suas ações.

E com isso, vamos à Saut d’Eau em julho, sem expectativas especiais, apenas para olhar o grande santuário católico/vodu, ver a fé das pessoas misturada com sua alegria, bebedeira e danças. Não quero ver apenas o Apolo do rito bem organizado e preparado, mas ver exatamente o Dionísio presente nestas festas. Porque estes vivem juntos e inseparáveis.

Quero juntar Rimbaud com Max Weber e ver no que dá...

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Um festival de incompetência


Se o Lúcio que tá lá, não agüenta ver, imagina nós???
Falando sério? Foi um festival de incompetência dos dois times...


O Brasil de Dunga é um time tão criativo quanto foi o bravo capitão do tetra. E eu nunca tinha visto um time argentino com tanto medo de ganhar do Brasil. Este é o retrato do jogo: um festival de incompetência dos dois lados. Covardia da Argentina versus a falta de brilho do time brasileiro...
O Vanderlei Luxemburgo costuma dizer que o medo de perder tira a coragem de ganhar. Eis o que aconteceu com os dois times, um jogo que empatou porque nenhum dos dois times teve realmente vontade de ganhar.

O técnico da seleção responde: “É preciso ver que do outro lado estava a Argentina”. Que Argentina?

Houve um tempo que a gente morria de medo de jogar com a Argentina. Bastava piscar o olho e... Pimba! Eles metiam um gol... E a gente não conseguia fazer nada... Era ridículo... Lembro daquela bisonha tentativa de voleio do Müller na Copa de 90... A Argentina não jogava nada, mas em um minuto, num vacilo, numa piscadela... Perdíamos...

Os tempos mudaram para os dois times...

Especialmente para a Argentina, que parece não ter forças para nos ganhar. Parece conformada com uma espécie de “escrita”. “Não, não vamos ganhar do Brasil, porque infelizmente não conseguimos...”. Não acreditam? Perdoem-me meus amigos argentinos, mas falaria de três lances neste jogo que a Argentina poderia ter provocado a (tão esperada) demissão do Dunga.

Querem ver?

Messi entra pela esquerda, nas costas de Lúcio, ganha na velocidade e está sozinho diante de Júlio César... Chuta... A bola sai pela lateral!!!

Julio Cruz recebe, aparentemente em impedimento... Sozinho, na cara do Júlio César. Hum! (Fecho olho) Agora f...! O bandeira vai dar (tem que dar!!!)... Não? Ai! Chuta por cima!!! Caraca!!! E não estava impedido? Não! Maicon dava condição lá pela direita.

Finalzinho do jogo, acho que lá pelos 43 minutos... Messi vem com bola pela esquerda, de novo... Hum, isso vai dar merda... Ele bate... Júlio César faz grande defesa, mas dá rebote... Cadê a zaga que não chega? Messi pega de novo e chuta por cima... Fim do jogo.

Começo a acreditar que os argentinos fizeram de sacanagem... Não quiseram ganhar o jogo para não provocar a saída do Dunga que é melhor para eles...

Os otimistas dirão ainda: “a Argentina não nos vence há três anos”. “Nos últimos sete confrontos ganhamos quatro e empatamos dois”. “A Argentina é uma seleção fortíssima”... Sim, não nego que respeito muito a seleção argentina. Sou da geração que ficou 24 anos sem ganhar uma Copa do Mundo, enquanto a Argentina ganhou as suas duas nas quatro que assisti pela TV (1978, 1982, a mais sofrida, 1986 e 1990) até 1994, e a de 1974 não lembro com tanta precisão de detalhes.

Mas na boa?

Esse time não deu nem para assustar... Cadê o Riquelme??? Acho que ele não se recuperou do sacode que tomou no Maracanã... O Messi??? O craque deles, a esperança, o “novo Maradona”, perdeu um gol bisonhamente... Onde está a Argentina do abusado Caniggia, do gigante Batistuta, do raçudo Kempes, do catimbeiro Simeone, do elegante Redondo, do imbatível Fillol, do genial Maradona???

Até o “bonde” do Jorge Valdano era melhor do que o Julio Cruz...

Meus amigos argentinos devem estar revoltados, pois eu falo de um festival de incompetência mútua, e até agora só descasquei o time argentino... Claro! Sou brasileiro!

Sim, sou brasileiro mas não sou cego... Vi o jogo, e vou falar da minha tristeza com a seleção...

Primeiro, porque aqui no Haiti todo mundo me diz assim: “Mwen fanatik Brésil”. Mas também desde aquele jogo contra a Venezuela, me perguntam: “Sa k pase avek Brésil?”. Para esta pergunta (“O que está acontecendo com o Brasil?”), eu tenho a resposta pronta: “Mesye Dunga pa klèr, li pa serie!” (“O Sr. Dunga não é muito ‘claro’, ele não é sério”). Alguns riem e dizem que ele ganhou a Copa América... E em cima da Argentina! Eu digo que é verdade... Mas... Maicon? Daniel Alves? Sei não...

Acho até bom que ele não desfalque o Flamengo e nem quero “puxar a brasa para a sardinha do meu time”, mas francamente, esses dois não jogam juntos a metade do que joga o Léo Moura. Caramba! Basta jogar na Europa para ser craque de seleção?

Ah, tá bom...

Tem mais? Tem de sobra...

Tudo bem que a gente tem que respeitar a Argentina, sim é verdade... Mas escalar QUATRO CABEÇAS DE ÁREA??? Isso parece coisa do Papai Joel...

Alguns ainda dirão, “ah, mas dá um desconto, o Júlio Baptista não é volante e o Anderson muito menos, pode até estar jogando como tal, mas sua posição de origem é de meia armador”. É... Pode ser... Mas respondendo a estes, direi: Sim, de fato, o Anderson não é um volante de origem, mas a origem do Júlio Baptista é jogar como volante, no final, dá tudo no mesmo: um não era volante e virou, o outro era volante e virou meia... No final, o que importa é que os dois jogaram como volantes... Não?

Querem ver?

Por volta dos 20 minutos do primeiro tempo, o Brasil ainda não havia dado sequer um chute em gol e a Argentina já tinha criado uma boa oportunidade numa cabeçada de Julio Cruz facilmente defendida por Júlio César. Olhando para o posicionamento do meio campo do Brasil, este formava uma linha de quatro jogadores atrás do grande círculo, com o Adriano isolado na frente, e o Robinho desaparecido por alguma lateral do campo, voltando para ajudar a defesa...
O meio campo do Brasil só acertava passes laterais, e os zagueiros faziam aqueles “lançamentos” (a famosa “ligação direta”) que caíam nos pés dos zagueiros argentinos. Para piorar, de onde se esperava algum lampejo de talento e algo mais que passes laterais, vinham passes afoitos, errados, muitas faltas e um cartão. Anderson, que supostamente entrou para “dar qualidade ao passe do meio campo”, não acertava lhufas... Júlio Baptista, o outro armador, fazia “o de sempre”, muito vigor, muita vontade, saúde, mas sem brilho...

Mas aos 22 minutos, um alento: Robinho... Ah, Robinho... Sumido, ele resolveu aparecer, dar o ar de sua graça. Numa bela entrada pela direita, dá uma meia lua no zagueiro, e bate em cima de Abondanzieri, a bola espirra e sobra para Júlio Baptista, agora vai! Ele bate em cima de Abondanzieri, de novo!!!

Agora vai... Vai para p...!!!

Numa dessas “ligações diretas” (daí o fato de muita gente achar que isso é uma “jogada ensaiada”, esse chutão dos zagueiros para o atacante brigar com a zaga) alguém “lançou” (desculpe, Gérson Canhotinha!) para o Adriano, impedido, mas este inteligentemente parou, pois o Robinho, vindo de trás, entrava em condições de jogo... O “Rei das Pedaladas” entra livre pela esquerda, dribla o goleiro, caminha para linha de fundo, Abondanzieri tenta detê-lo, não consegue, e quando consegue, agarra sua camisa (pelo que lembro, pênalti não tem “lei da vantagem”), mas Robinho não consegue chutar e nem cruzar... Ai, ai, ai!!! O locutor da TV haitiana diz: “Eternel!!!”.

E só... Isso foi a seleção no primeiro tempo...

Ah, ia esquecendo... Aos 33 minutos, o Anderson se machucou... Ai, cacete!!! Já vi tudo... O Dunga vai ter que tirar um volante e, tão óbvio quanto o futebol que ele jogava, vai colocar outro... Ai... Mas ele me surpreende... Coloca o Diego... Agora tem um lampejo de talento nesse meio de campo... Porém, Diego está numa noite infeliz... Como Anderson, apesar do talento, não consegue acertar nada...

Mas o Dunga como sempre, capaz de surpreender positivamente, como fez com aquele famoso “lançamento” para o Romário no jogo contra Camarões em 1994 (ninguém me tira da cabeça que aquilo foi uma tremenda cagada!), também nos surpreende negativamente...

Ok, o Diego não está bem... Não se achou em campo... Se você fosse o técnico, Zé Renato, o que faria... Eu???

Ah, tá bom... Vamos fazer o seguinte, dá para ganhar esse jogo, né? Dá!

Vamos fazer o seguinte, eu vou dizer para o Júlio recuar, e só “sair na boa”, vou botar o Robinho de quarto homem do meio de campo, e meter o Pato na frente... É bola ou búlica!!! Tudo bem, no Brasil todos somos técnicos e todos temos uma solução mágica para ganhar o jogo...

Mas essa solução não é nada mágica. Ele mesmo tentou e fracassou contra a Venezuela. Perdia o jogo e arriscou tudo... E o Júlio é volante de origem, o Robinho joga às vezes nessa função no Real... Pô, dá para ser...

Tá bom... Mas tirar o Diego e colocar o Daniel Alves???? O que ele quis fazer com isso???

Não! Assim é demais... Os haitianos que viam o jogo comigo, riam do meu desespero...

Mas não dá...

Enfim, não quero ser óbvio e nem reforçar o coro daquilo que todo mundo deve estar repetindo aí no Brasil: porém, FORA DUNGA!!!

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Respondendo aos comentários...

Resolvi postar em resposta à gentil atitude de dois meus 12 fiéis leitores em comentar as coisas que escrevo aqui...
Então aí vai...
Primeiro, ao João Marcelo...
Sim, meu caro, é exatamente este o problema que vimos colocando como questão central para a nossa pesquisa aqui no Haiti (a minha, de Federico e demais colegas) como perceber as coisas daqui sem recorrer aos modelos prontos, modelos estes que não são senão "modelos" que não se realizam nem mesmo nos países onde ele foram concebidos. Ora, a "república" francesa, berço da moderna noção de cidadania, nunca viveu tamanha crise de identidade ao se deparar com conflitos como aquele que você expõe. Os instrumentos "clássicos", como você chama, não estão conseguindo dar conta das tensões reais que as relações entre os mundos pós-coloniais e as ex-metrópoles estão impondo. Há uma conta a ser paga, e agora estão aí na porta batendo, cobrando o preço.
Porém, nosotros, daqui da periferia sempre nos acostumamos a lidar com um mundo mais desordenado e caótico do ponto de vista deles. E fazer a ordem desse caos...
O nosso modelo de ação afirmativa, por exemplo, confunde a cabeça de uma parcela significativa dos nossos intelectuais que estão sempre referidos, de forma crítica, ao modelo norte americano. Apontam que houve uma importação direta de um modelo que "cria um conflito onde ele não existe". Não incorporam, por exemplo, uma percepção que uma suposta tendência às "saídas negociadas", à "convergência para o centro", não são nada mais que expressões deste conflito. Só é possível haver negociação quando há interesses em choque. Ninguém negocia sem interesses.
E o mais interessante é perceber que em sociedade como o Haiti, onde supostamente todos são descendentes de ex-escravos, todos são, no limite, negros, há tensões raciais. Pode ser que estejamos falando da "linha de cor" de Dubois, ou ainda, de uma histórica tensão econômica entre negros boçais e mulatos ricos. De qualquer forma, há no seio uma sociedade que é, por assim dizer, negra, tensões raciais. Invocar a mestiçagem não soluciona o problema. E quando passamos para o outro lado da ilha, a República Dominicana, as tensões aumentam ainda mais. Nação e raça se confundem... Infelizmente, queiram ou não certos intelectuais invocar a biologia para dizer: "Ei, vocês estão enganados, raça não existe". Eles talvez precisem dar um passeio pelo mundo para entender melhor a sua própria casa e perceber que muitas vezes são eles mesmos que estão importando modelos políticos/analíticos que não dão conta da realidade. Não sou um empirista radical, mas acho que tem faltado a essa gente andar pelas ruas e se misturar com o seu material de pesquisa. Não adianta dizer que faz pesquisa há 30 anos com relações raciais... Precisam olhar o momento. Pesquisa é isso... É um frame...
Modelos são úteis para pensar, mas não podem dirigir de modo normativo o nosso olhar. Diferente de um microscópio ou um moderno telescópio, a pesquisa social requer que os instrumentos sejam permanentemente ajustados àquilo que estamos vendo... Enfim...
Agora o Leonardo, sobre o Obama.
Em primeiro lugar, foi exatamente isto que possibilitou a comparação entre ele e o Lula de 1989 (diria mesmo que o Lula de 2002 também) a idéia de que sua candidatura quebra um paradigma. Esta é a sua força (como sempre foi a força do PT e de Lula) trazer uma mensagem diferente, de esperança e de mudança. Mas sociedades reais resistem às mudanças, e quebras de paradigma às vezes se apresentam como mudanças demasiadamente radicais para ser incorporadas facilmente.
E isto é que me faz pensar que vou, infelizmente, ganhar a tal aposta.
Nossa experiência frustrada de 1989 nos mostrou que não adianta ser criativo na hora de fazer campanha. Certos golpes são duros demais para se absorver e como eu disse, não será fácil para um americano médio ouvir McCain se referir nos debates ao seu opositor como Mr. Hussein. E não adiantará Obama dizer que seu nome é Barack Obama. Isso só vai pesar contra ele, porque pode ser visto como uma negação de seu nome. Será um complicado jogo de xadrez, muito mais complexo do que convencer um partido (supostamente) progressista a adotar uma candidatura que rompe paradigmas.
E aí vem a questão da Unidade e Esperança... Sim, esse discurso é muito bom para nós. Mas mesmo Bush, no auge da crise do onze de setembro, invocou a nação Una e Indivisível sob os olhos de Deus. E com isso conseguiu fazer passar uma legislação que coloca por terra uma série de tradições ligadas aos direitos individuais nos EUA. E ainda, conseguiu criar uma situação que desrespeita protocolos internacionais relativos aos aeroportos, posto que país algum exige visto para estabelecer uma conexão entre vôos. Somente os EUA... Tudo em nome da unidade da nação e da esperança de manter unido este povo...
Sei não, meu caro, sou muito pessimista, o calo nos ensina a andar de sapato apertado...
Embora não seja partidário da noção de unidade, prefiro a pluralidade e o pluralismo, tenho sempre esperança. Como disse, aposto no Fluminense na final da Libertadores, mas não me incomodaria em perder. Aposto em McCain para a presidência dos EUA, adoraria perder!
O que parece ainda mais interessante é como estas eleições afetam o Haiti e sobretudo a comunidade haitiano-americana. Afeta tanto que meu amigo da aposta vai falar no sábado em um programa de rádio, transmitido para a Flórida (onde se encontra parte substantiva da comunidade haitiana nos EUA), fazendo um manifesto em favor do voto dos haitianos em Obama. Disse a ele que isso não lhe fará ganhar a aposta, pois ele vai pregar para convertidos: imigrantes normalmente votam em candidatos democratas e, mesmo com o grande apoio dos haitianos ao casal Clinton e a pré candidata Hilary, será mais do que natural o voto destes em Obama.
Enfim... Acho que é isso...
Um abraço aos dois amigos e aos outros dez leitores

terça-feira, 10 de junho de 2008

"Antropologices" ou "A maldição"


Cada vez que converso com um hatiano que encontro pelo caminho das minhas pesquisas sobre o vodu, tenho a impressão de que muitos haitianos crêem que seu país sofre de algum tipo de maldição proferida por Deus ou pelos deuses.




Tenho percebido que há por aqui entre os cristãos, católicos, voduissants e protestantes,uma idéia muito forte de um Deus todo poderoso, ciumento e vingador, imagem que entre nós brasileiros parece muito mais recorrente em certas versões do protestantismo, referidas ao Deus do antigo testamento. Fosse tal visão apenas partilhada pelos religiosos, não pareceria estranho, no entanto, ela parece também atravessar de alguma forma a visão de certos intelectuais daqui sobre o seu país.




Enquanto para os religiosos a visão de mundo é atravessada por crenças em divindades sobrenaturais, em poderes superiores e inexplicáveis, pela ação de entidades maléficas exteriores aos homens, ou ainda que são parte de uma natureza pervertida da espécie humana, uma natureza marcada pelo pecado original, entre os intelectuais este pecado original está na Cultura. Cultura autoritária, cultura da violência, cultura da barbárie, cultura "macoute", cultura da "marronage", estão entre muitas associações entre o termo cultura e os males da nação.



Num certo sentido a cultura aparece como um deus ex-machina capaz de resolver e explicar todos os problemas, conferir sentido racional a tudo aquilo que parece fora de ordem ou desarrumado. Em outras palavras, a cosmologia de certa parcela dos intelectuais daqui pode ser enquadrada nos mesmos marcos que as explicações nativas sobre um suposto mal de raiz, uma "natureza" dos haitianos voltada para o mal, apoiadas nas crenças religiosas de católicos, voduissants e protestantes.



Para estes, o mal de raiz viria exatamente do ato de nascença do Haiti: o Sacrifício de Bois Caiman.



Tido como o ato que deflagrou a luta de independência na região norte do país, que uniu os escravos e eclodiu a revolta nas fazendas da região, Bois Caiman é um mito de origem nacional que faz uma associação perfeita entre construção nacional e vodu. Para quem não conhece a história do Haiti, Bois Caiman foi o local onde se realizou uma grande cerimônia vodu, liderada pelo jamaicano Boukman, que organizou os escravos e deu início à luta de independência, onde teria sido sacrificado um porco ou cem porcos às divindades vodu.



Por si só tal ato criaria uma cisão irreconciliável entre o movimento de racionalização, essencial às construção de uma ordem moderna e republicana, e as crenças ancestrais africanas, símbolos por excelência do atraso e da irracionalidade. Como criar uma nação a partir disto? Seria como se algum pintor "espírito de porco" pintasse o Grito do Ipiranga com D. Pedro com as calças na mão, depois de obrar, montado em um burrico. Nada mais realista e menos heróico.



Aliás, é deste modo que se estabelece de maneira perfeita o pecado original dos intelectuais, a ligação perfeita entre cultura haitiana e atraso: não é a razão instrumental que cria uma nação, não é esta que cria o novo mundo pós-colonial no Haiti, não é desta que brota uma nação, mas de seu extremo oposto: é a magia, o encanto e o mito que estão por trás da criação da nova nação. Eis o lugar onde a cultura aparece...



E este ato, Bois Caiman, é quase uma condenação à danação eterna: jamais será possível fazer prevalecer a razão num mundo onde os agentes mágicos se fazem tão presentes e com tamanha força. Não será possível criar uma nação sob os olhos de Deus onde os djab / esprit sejam tão fortes.



Evans-Pritchard escreveu um clássico sobre os Azande, conseguindo demonstrar que através da bruxaria é possível perceber um esquema racional capaz de explicar o funcionamento do mundo e do infortúnio. Fez isso sem recorrer ao esquema evolucionista spenceriano baseado no tripé magia-religião-ciência. Lévi-Strauss foi ainda mais longe ao perceber que os esquemas do "pensamento selvagem" e o pensamento mítico não estão tão distantes assim da "racionalidade" dos sistemas ditos "científicos".



O fato de estarmos fazendo pesquisa no Haiti nos oferece uma visão privilegiada para investigar espaços de pensamento "não purificados", onde oposições binárias não são capazes de explicar com precisão a complexidade da vida social. Seqüências binárias do tipo atraso/modernidade, racional/irracional, rural/urbano não são suficientes para entender o que se passa por aqui. É um mundo de milhões de telefones celulares pelos quais loup garrou e djab diversos se comunicam o tempo todo. As oposições rígidas não servem senão como um exercício heurístico permanentemente descartável. Usamos uma oposição binária no primeiro parágrafo, para descartá-la no segundo, sobretudo quando somos colocados diante de situações sociais reais, empíricas.



Aliás, somente estas situações sociais, as "cenas sociais" que Florence Weber propõe, interações momentâneas de caráter durável ou não, é que nos permitem perceber o quanto e como as tensões se evidenciam entre os modelos analíticos e o mundo que observamos. São exatamente as relações sociais e os sentidos atribuídos às ações pelos agente que talvez nos permitem compreender o que se passa por aqui no Haiti e talvez no resto do mundo.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Apostas

Há certos tipos de aposta que adoraríamos perder...
Por exemplo, se hoje eu tivesse que apostar na equipe que seria campeã da Taça Libertadores, apostaria de olhos fechados no Fluminense, e sei que fatalmente iria ganhar. Eis uma aposta que gostaria de perder...

Recentemente fiz uma aposta com um amigo haitiano entusiasta da candidatura de Barack Obama à presidência dos EUA. Seu entusiasmo é, sobretudo, com uma crença de que os EUA estariam mudando e que Obama representa esta mudança de mentalidade. Não é com menos entusiasmo que vejo esta candidatura como um sinal de uma importante mudança no mundo, a mais rica e poderosa nação, cuja história sempre foi marcada por uma radical clivagem racial, teria em sua presidência um “homem de cor”. Mas também olho com um pouco mais de realismo desencantado: não, os EUA ainda não estão preparados para ter um negro como seu presidente.

Então, fizemos uma aposta: Obama não derrotará McCain. Vamos jantar num caro restaurante chinês de Pétion Ville, se Obama se tornar presidente dos EUA, eu pagarei o jantar. Se ele perder, meu amigo pagará o jantar. Eis uma aposta que adoraria perder...
As eleições nos EUA sempre têm grande importância aqui no Haiti.

Os próprios movimentos da política nacional do Haiti estiveram nos últimos quinze anos muito relacionados com a alternância entre republicanos e democratas no poder nos EUA. O golpe de 1991 contra Aristide, segundo alguns relatos daqui, estaria intimamente ligado às ações da CIA, posto que um dos líderes deste golpe, que viria a se tornar presidente com a derrubada de Aristide, Raoul Cedras, foi aluno da malsinada “Escola das Américas”. Estes mesmos relatos afirmam que o golpe dado teria apoio do então presidente George Bush “Pai”.

De outro lado, a volta de Aristide ao poder, segundo o jornalista Jean Dominique, assassinado em 2000, foi um coup de télephone (literalmente, “golpe de telefone”), dado por Bill Clinton no governo Cedras. Dominique afirmava que os EUA derrubaram Baby Doc da mesma forma, e num programa de TV nos EUA, disse que se tratava do Presidente dos EUA tomar uma atitude contra o governo golpista e restituir Aristide ao seu lugar de presidente eleito. Aristide voltou ao país protegido pelos marines americanos e retomou seu posto de presidente.

Alguns críticos mais radicais e adeptos de teorias conspiratórias fazem uma associação curiosa entre a queda de Aristide em 2004 e o fato do presidente dos EUA ser George Bush, “Filho”. O fato é que a comunidade haitiana nos EUA apóia intensamente os democratas, pois crê que a política destes para o Haiti é mais positiva (e propositiva) que o “Big Stick” republicano. O curioso é que algumas informações que tive por aqui diziam que esta comunidade apoiava a candidatura do casal Clinton e, reforçando a crítica comum à Obama, que este não seria “suficientemente negro”. Outros afirmam que este apoio viria de partidários de Aristide, que são muitos na Flórida, principalmente, que conta com a simpatia e o apoio do casal Clinton.

O cenário das eleições nos EUA tem grande importância no Haiti por variadas razões. Boa parte da comunidade haitiana nos EUA sustenta a economia do país através de remessas de dinheiro e alimentos para os parentes daqui. Uma das principais alternativas para melhoria de vida por aqui é a ida para os EUA, para desta forma remeter dinheiro para os parentes daqui. A falta de perspectivas dos jovens e jovens adultos faz dos EUA um eldorado e o sonho do Green Card povoa até as demandas aos sacerdotes vodu, que têm na diáspora haitiana uma parcela significativa de sua clientela.

Neste momento, Obama já derrotou Hilary Clinton e está frente a frente com McCain para disputar a presidência do país. Meu amigo diz para mim que já venceu a metade da aposta, e eu lhe respondo que não, pois sempre lhe dissera que Obama seria capaz de derrotar Hilary. Digo sempre que o difícil será convencer algum morador do Kansas, ou do Alabama que o presidente dos EUA se chama Barack Hussein Obama... Ou ouvir McCain nos debates se referir à Obama como Mr. Hussein...

Em 1989 eu militava num partido que tinha como sonho levar um operário fabril à presidência do Brasil. Em 2002, com alguma desilusão e muito realismo chegamos com Lula ao poder, já não eram mais o mesmo projeto e o mesmo operário que chegava ao poder. Mas havíamos vencido. Vejo o caminho de Obama como este mesmo sonho. Será que ele se realiza tão rápido ou será ainda necessária uma longa espera, muitas desilusões e mudanças para chegar lá?

Abraço