Ontem, conversava por telefone com um brasileiro que está aqui no Haiti. Fotógrafo, nós havíamos tentado conversar para que eu o levasse à Des Ermites. Infelizmente, uma série de desencontros impediu que nos encontrássemos. Porém, muito gentil, ele perguntou se eu queria conhecer St. Michel du Sud, que segundo ele é um lugar de peregrinação e poderia ser muito interessante para mim. Disse a ele que infelizmente não poderia ir, pois quero estar ao máximo possível em Des Ermites, acompanhando a preparação da festa do santuário, no dia 2 de julho. Comentei que queria ir à Saut d’Eau na festa da Vierge des Miracles em 16 de julho.
Meu interlocutor disse que eu não devia ir neste dia, pois “se quisesse ver as coisas mais ‘puras’ da ‘religião mesmo’, que chegasse antes, por volta do dia 13 de julho”. Disse ainda que “a festa do dia 16 é mais ‘profana’, com gente bebendo cerveja e dançando”. Respondi-lhe que era engraçado o que ele dizia, pois como antropólogo não tinha o hábito de julgar assim as coisas que as pessoas faziam, pois não sou eu quem coloca o selo de “autenticidade” numa manifestação cultural.
Uma vez soube que um jovem antropólogo, numa espécie de auto-elogio ao seu trabalho de pesquisa, criticou o trabalho de outro antropólogo, pesquisador do candomblé, porque em seus livros sobre a música dos terreiros ele fazia as gravações em estúdio, e que do coro destas gravações participaram alguns músicos profissionais, entre eles, um cantor de samba, conhecido na noite do Rio de Janeiro. Disse ainda que suas gravações eram “autênticas” porque haviam sido feitas num terreiro, com os membros deste terreiro. O que não sabia o jovem antropólogo é que o coro que ele criticara era formado por membros de um terreiro ao qual o outro antropólogo é filiado e o cantor conhecido freqüentava a mesma casa de santo, ora como cliente, ora como visitante nas festas públicas.
Isto, de fato, não tem muita importância. O que importa é que certa visão da antropologia se preocupa em buscar uma essência, uma pureza que só existe como idéia nativa, e por isso se apresenta como um problema sociológico, e sendo uma idéia nativa, esta pureza é um “programa de verdade”, por isso se torna um interessante problema a ser pensado. Quando esta “verdade”, esta “pureza” se torna objeto de disputas intelectuais ela é também um problema sociológico, mas não sobre o ponto de vista nativo, na verdade, torna-se um problema de sociologia dos intelectuais, suas disputas, a formação do campo, etc., neste caso, intelectuais tornam-se “nativos”. Não confundir também isto com a questão dos “intelectuais nativos” ou “nativos intelectuais”. Enfim, este jogo de palavras está referido a uma questão: a questão da busca da “pureza” e da “verdade” das coisas.
Meu interlocutor talvez tenha razão. A festa do dia 16 de julho se tornou uma festa “profana”... Isso tira a sua “verdade” como celebração religiosa? Do meu ponto de vista, não. Por quê? Porque na vida real as coisas não se separam de modo distintivo. Separações desta natureza são exercícios de purificação operados a partir de determinados pontos de vista normativos sobre a ordem “verdadeira”, “boa” e “legítima” das coisas.
Olho então para a minha querida Salvador...
A festa do dia 02 de fevereiro, dedicada ao orixá Iemanjá, no bairro do Rio Vermelho é uma festa “de largo”, como dizem os baianos, ou uma festa que ainda guarda um conteúdo religioso? Não sei dizer... Mas vejo as pessoas depositarem suas oferendas no mar, os pequenos barcos saindo com flores e presentes para Iemanjá. Ao mesmo tempo, vejo nas ruas do Rio Vermelho um verdadeiro carnaval, hotéis oferecendo pacotes e camarotes para o dia da festa. Todo mundo enchendo a cara de cerveja e se divertindo. Todo mundo fazendo oferendas, pedidos e pagando promessas feitas à Iemanjá. Sagrado ou profano?
No Rio de Janeiro, no dia 23 de abril, o dia de São Jorge, é feriado. Milhares de pessoas se amontoam em torno do Campo de Santana, ali no final do SAARA, quase na esquina da Avenida Presidente Vargas. São devotos do Santo Guerreiro que vão à sua igreja louvá-lo. Muitos vestidos com roupas vermelhas ou vestidos de branco, chegam ainda na madrugada para aguardar o toque dos clarins dos policiais militares e bombeiros, a queima de fogos e a benção do padre da igreja, as muitas missas, a procissão e o cortejo do santo. Em Madureira, a cavalhada de São Jorge sai da quadra da Escola de Samba Império Serrano e vai até a igreja do santo em Quintino. Em torno de ambas as igrejas, muita festa, pagode, batucada e cerveja. Sagrado ou profano?
Volto para o Haiti. Em Des Ermites olho o modo como as pessoas dançam louvando a santa. Acho curioso, dançam sensualmente, quase de modo “profano”, bebem rum e cerveja, contam piadas e fazem brincadeiras, enquanto transcorre o serviço religioso e diante dos loas manifestados. Sagrado ou profano?
Há alguns anos escrevi um trabalho que intitulei “Profanando o Sagrado?”, que investigava uma pequena loja de artigos religiosos no bairro do Cachambi, Rio de Janeiro, onde sua dona, uma mãe de santo prestava todo tipo de atendimento espiritual na parte do fundo da loja. De um lado, um estabelecimento comercial, voltado à venda de produtos para religião. De outro lado, um verdadeiro templo religioso instalado no interior deste estabelecimento comercial. A minha conclusão era que não havia “profanação” alguma. Havia sim uma naturalização das relações entre uma coisa e outra, que atribuí então à visão de mundo do candomblé e das religiões afro-brasileiras em geral. Mais tarde, já quando defendi a minha dissertação de mestrado, aprofundava a questão afirmando que estas separações são operações de purificação utilizadas muitas vezes pelos agentes em situações de acusação. A vida real torna as coisas extremamente mescladas, complexas e precisamos separá-las para fazê-las inteligíveis.
Talvez Saut d’Eau não seja mais uma “festa religiosa” stricto senso. Mas de outro lado, aprendi que as festas religiosas sempre têm uma faceta profana, que é inseparável de seu lado mais sacralizado. Não desprezaria as observações de meu interlocutor, mas diria que para mim interessa muito mais essa festa mais “misutrada”, onde o “sagrado” parece sufocado pelo “profano”, talvez exatamente porque essa mistura não apresente as coisas “puras” ou “purificadas”, mas porque para mim, suponho, elas parecem mais próximas de como o mundo real se apresenta, sem máscaras ou fantasias.
Não quero dizer que há uma verdade nos fatos a ser descoberta, porque estaria incorrendo no mesmo erro daqueles que falam em “pureza”, “verdade” e outras coisas que no final acabam sendo formas de estabelecer uma visão normativa sobre o mundo. Só não quero também dirigir meu olhar sobre as coisas para fazê-las parecer aquilo que quero enxergar. Quero que as coisas, as sensações, os fatos, entrem pelos meus olhos, ouvidos, pelos meus poros, para que de alguma forma esse exercício quase poético me permita compreender os sentidos que as pessoas atribuem às suas ações.
E com isso, vamos à Saut d’Eau em julho, sem expectativas especiais, apenas para olhar o grande santuário católico/vodu, ver a fé das pessoas misturada com sua alegria, bebedeira e danças. Não quero ver apenas o Apolo do rito bem organizado e preparado, mas ver exatamente o Dionísio presente nestas festas. Porque estes vivem juntos e inseparáveis.
Quero juntar Rimbaud com Max Weber e ver no que dá...
Meu interlocutor disse que eu não devia ir neste dia, pois “se quisesse ver as coisas mais ‘puras’ da ‘religião mesmo’, que chegasse antes, por volta do dia 13 de julho”. Disse ainda que “a festa do dia 16 é mais ‘profana’, com gente bebendo cerveja e dançando”. Respondi-lhe que era engraçado o que ele dizia, pois como antropólogo não tinha o hábito de julgar assim as coisas que as pessoas faziam, pois não sou eu quem coloca o selo de “autenticidade” numa manifestação cultural.
Uma vez soube que um jovem antropólogo, numa espécie de auto-elogio ao seu trabalho de pesquisa, criticou o trabalho de outro antropólogo, pesquisador do candomblé, porque em seus livros sobre a música dos terreiros ele fazia as gravações em estúdio, e que do coro destas gravações participaram alguns músicos profissionais, entre eles, um cantor de samba, conhecido na noite do Rio de Janeiro. Disse ainda que suas gravações eram “autênticas” porque haviam sido feitas num terreiro, com os membros deste terreiro. O que não sabia o jovem antropólogo é que o coro que ele criticara era formado por membros de um terreiro ao qual o outro antropólogo é filiado e o cantor conhecido freqüentava a mesma casa de santo, ora como cliente, ora como visitante nas festas públicas.
Isto, de fato, não tem muita importância. O que importa é que certa visão da antropologia se preocupa em buscar uma essência, uma pureza que só existe como idéia nativa, e por isso se apresenta como um problema sociológico, e sendo uma idéia nativa, esta pureza é um “programa de verdade”, por isso se torna um interessante problema a ser pensado. Quando esta “verdade”, esta “pureza” se torna objeto de disputas intelectuais ela é também um problema sociológico, mas não sobre o ponto de vista nativo, na verdade, torna-se um problema de sociologia dos intelectuais, suas disputas, a formação do campo, etc., neste caso, intelectuais tornam-se “nativos”. Não confundir também isto com a questão dos “intelectuais nativos” ou “nativos intelectuais”. Enfim, este jogo de palavras está referido a uma questão: a questão da busca da “pureza” e da “verdade” das coisas.
Meu interlocutor talvez tenha razão. A festa do dia 16 de julho se tornou uma festa “profana”... Isso tira a sua “verdade” como celebração religiosa? Do meu ponto de vista, não. Por quê? Porque na vida real as coisas não se separam de modo distintivo. Separações desta natureza são exercícios de purificação operados a partir de determinados pontos de vista normativos sobre a ordem “verdadeira”, “boa” e “legítima” das coisas.
Olho então para a minha querida Salvador...
A festa do dia 02 de fevereiro, dedicada ao orixá Iemanjá, no bairro do Rio Vermelho é uma festa “de largo”, como dizem os baianos, ou uma festa que ainda guarda um conteúdo religioso? Não sei dizer... Mas vejo as pessoas depositarem suas oferendas no mar, os pequenos barcos saindo com flores e presentes para Iemanjá. Ao mesmo tempo, vejo nas ruas do Rio Vermelho um verdadeiro carnaval, hotéis oferecendo pacotes e camarotes para o dia da festa. Todo mundo enchendo a cara de cerveja e se divertindo. Todo mundo fazendo oferendas, pedidos e pagando promessas feitas à Iemanjá. Sagrado ou profano?
No Rio de Janeiro, no dia 23 de abril, o dia de São Jorge, é feriado. Milhares de pessoas se amontoam em torno do Campo de Santana, ali no final do SAARA, quase na esquina da Avenida Presidente Vargas. São devotos do Santo Guerreiro que vão à sua igreja louvá-lo. Muitos vestidos com roupas vermelhas ou vestidos de branco, chegam ainda na madrugada para aguardar o toque dos clarins dos policiais militares e bombeiros, a queima de fogos e a benção do padre da igreja, as muitas missas, a procissão e o cortejo do santo. Em Madureira, a cavalhada de São Jorge sai da quadra da Escola de Samba Império Serrano e vai até a igreja do santo em Quintino. Em torno de ambas as igrejas, muita festa, pagode, batucada e cerveja. Sagrado ou profano?
Volto para o Haiti. Em Des Ermites olho o modo como as pessoas dançam louvando a santa. Acho curioso, dançam sensualmente, quase de modo “profano”, bebem rum e cerveja, contam piadas e fazem brincadeiras, enquanto transcorre o serviço religioso e diante dos loas manifestados. Sagrado ou profano?
Há alguns anos escrevi um trabalho que intitulei “Profanando o Sagrado?”, que investigava uma pequena loja de artigos religiosos no bairro do Cachambi, Rio de Janeiro, onde sua dona, uma mãe de santo prestava todo tipo de atendimento espiritual na parte do fundo da loja. De um lado, um estabelecimento comercial, voltado à venda de produtos para religião. De outro lado, um verdadeiro templo religioso instalado no interior deste estabelecimento comercial. A minha conclusão era que não havia “profanação” alguma. Havia sim uma naturalização das relações entre uma coisa e outra, que atribuí então à visão de mundo do candomblé e das religiões afro-brasileiras em geral. Mais tarde, já quando defendi a minha dissertação de mestrado, aprofundava a questão afirmando que estas separações são operações de purificação utilizadas muitas vezes pelos agentes em situações de acusação. A vida real torna as coisas extremamente mescladas, complexas e precisamos separá-las para fazê-las inteligíveis.
Talvez Saut d’Eau não seja mais uma “festa religiosa” stricto senso. Mas de outro lado, aprendi que as festas religiosas sempre têm uma faceta profana, que é inseparável de seu lado mais sacralizado. Não desprezaria as observações de meu interlocutor, mas diria que para mim interessa muito mais essa festa mais “misutrada”, onde o “sagrado” parece sufocado pelo “profano”, talvez exatamente porque essa mistura não apresente as coisas “puras” ou “purificadas”, mas porque para mim, suponho, elas parecem mais próximas de como o mundo real se apresenta, sem máscaras ou fantasias.
Não quero dizer que há uma verdade nos fatos a ser descoberta, porque estaria incorrendo no mesmo erro daqueles que falam em “pureza”, “verdade” e outras coisas que no final acabam sendo formas de estabelecer uma visão normativa sobre o mundo. Só não quero também dirigir meu olhar sobre as coisas para fazê-las parecer aquilo que quero enxergar. Quero que as coisas, as sensações, os fatos, entrem pelos meus olhos, ouvidos, pelos meus poros, para que de alguma forma esse exercício quase poético me permita compreender os sentidos que as pessoas atribuem às suas ações.
E com isso, vamos à Saut d’Eau em julho, sem expectativas especiais, apenas para olhar o grande santuário católico/vodu, ver a fé das pessoas misturada com sua alegria, bebedeira e danças. Não quero ver apenas o Apolo do rito bem organizado e preparado, mas ver exatamente o Dionísio presente nestas festas. Porque estes vivem juntos e inseparáveis.
Quero juntar Rimbaud com Max Weber e ver no que dá...