sábado, 16 de janeiro de 2010

Carta aberta aos colegas da Unicamp

Prezados Colegas,

Eu deveria dizer que estou chocado com a atitude da Embaixatriz Roseana Aben-Athar Kipman, especialmente por tê-la conhecido de perto e trabalhado com ela no Centro Cultural Brasil Haiti, o mesmo local em que ela se negou a prestar apoio a vocês.

A verdade, no entanto, é que esta atitude e as coisas que ela pode ter dito sobre o Haiti e os haitianos em nada me espantam. E como os colegas disseram, sinto-me envergonhado por ela.

A descrição feita na postagem anterior corrobora perfeitamente com aquilo que presenciei ao longo do tempo que permaneci junto à Embaixada do Brasil no Haiti. E o tal assessor Paes Leme, pelo visto, está apenas cumprindo seu papel de tapar um buraco e encobrir uma ação para mais de vergonhosa de pessoas a quem eu mesmo recomendei que os colegas procurassem, imaginando que através da Embaixada, do Embaixador Igor Kipman e de sua esposa, tivessem a acolhida obrigatória devida a todo brasileiro que se encontra no exterior.

Ontem, ao conversar com amigos que estão no Haiti, confesso ter ficado tenso e envergonhado ao saber que a ordem dada pela embaixada era de impedir o acesso dos alunos da Unicamp e do meu amigo Pedro Braun, como eu pesquisador do Museu Nacional. Não conseguia entender qual era o princípio que governava tal atitude. Perguntava-me por que o Embaixador e Embaixada do Brasil estão fazendo isso?

Fiquei imaginando as cenas de filmes como "Killing Fields", quando os cidadãos estadunidenses acorreram à sua Embaixada Nacional, deixando de fora milhares de cambodjanos desesperados.

Cortei a imagem e transferi para a nossa embaixada no Haiti, negando a cidadãos brasileiros o mínimo de apoio que estes solicitavam: um local seguro para dormir enquanto decidiam o que fazer diante do quadro aterrador moldado por este terremoto.

Novo corte, e retorno a cena, descrita como "debochada" ou como "fofoca de blog" por um assessor mal informado, que tem a obrigação de defender o indefensável, posto que a cena se desenrolasse diante de uma dúzia de testemunhas, além do grupo de pessoas do grupo da Unicamp, parte interessada. Neste novo corte revejo a Embaixatriz Roseana cercada por 4 ou 5 fuzileiros, armados com pistolas 9 mmm e duas sub-metralhadoras, depois de atravessar a cidade numa Nissan Patrol Blindada, bem vestida com seus cabelos presos num coque para trás, ostentando uma grossa corrente de ouro no pescoço.

Não, não posso duvidar dos colegas da Unicamp. Com todo respeito, de quem pôde conviver com a Embaixatriz Roseana, é o que vejo. E fico envergonhado, porque fui eu mesmo quem confiou meus amigos pesquisadores a ela, de quem eu não esperava uma ajuda baseada privilégio da amizade, que ela tantas vezes exaltou que devotava a mim, mas o simples cumprimento dos direitos destes cidadãos brasileiros.

Estou triste, envergonhado e decepcionado.

Peço aos meus colegas da Unicamp desculpas por ter-lhes sugerido que entrassem em contato com a Embaixada. E junto ao meu pedido de desculpas vai també o pedido de minha colega e amiga Normelia Parise, diretora do Centro Cultural Brasil Haiti, que se empenhou no sentido de possibilitar que eles pudessem ser atendidos pela Embaixada, e simplesmente relatou-me não conseguir entender o que se passava naquele momento, pois não conseguia entender como numa situação como aquela pudesse haver algum tipo de atitude mesquinha e leviana como aquela assumida pelo comando de nossa Embaixada no Haiti.

Abraços do colega,

José Renato Baptista

Antropólogo, Doutorando em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Pretensão e água benta, um pouco de cada

Eis que me visita novamente o anônimo, que descubro, faz uma defesa apaixonada dos militares...

"Anônimo disse...

Amigo meu:

Concordo com você: discordamos.

Concordo com você: nem tudo que reluz é ouro.

Concordo com você: existem muitas verdades sobre o Haiti e ninguém as conhece integralmente.

Concordo com você: existem realmente muitas perguntas no ar e o povo haitiano não se pronunciou de forma definitiva e/ou clara.

Concordo com você: defendo a MINUSTAH enquanto vertente militar e enquanto Brasil.

Concordo com você, discordando
."

Deixa beijos...


Devo admitir que é arrogante demais afirmar, como fiz nas última postagens, que as pessoas não entendem nada disso aqui. De outro lado, porém, nunca disse que eu sei a verdade e por isso posso acusar a sua ignorância a partir de uma autoridade discursiva construída por estar aqui "vendo as coisas de perto", como o meu caro(a) anônimo. Isso também vale para as críticas que faço aos debates promovidos pelos movimentos de esquerda e pelas centrais de movimentos sociais, onde, curiosamente, assumo a defesa da MINUSTAH, não pelas suas virtudes intrínsecas, mas por reconhecer que há também avanços e passos importantes que foram dados a partir desta missão.

Uma amiga costuma dizer que eu faço sempre o papel do advogado do Diabo. Eu forneço todos os argumentos para convencer que a MINUSTAH deve sair do país. Dez minutos depois de convencer as pessoas, eu começo um discurso em direção contrária, problematizando esta saída e defendendo a permanência das tropas. Não é verdade. A única verdade é que evito chegar a conclusões definitivas, pensando que o quadro é muito mais complexo do que possam supor as nossas melhores palavras de ordem e discursos. Para um lado e para outro.

Procuro dividir-me então entre ingerir doses de pretensão sociológica e me purificar com água benta, fazendo um jogo dialético entre uma posição e outra, sem nunca ficar em cima do muro. Na verdade, tomando parte nos dois lados da questão, porque a vida real é mais matizada que o preto e o branco.

Volto-me então para a mensagem deixada pelo anônimo: "o povo haitiano não se pronunciou de forma definitiva e/ou clara". Será?

As manifestações recentes não são uma manifestação clara de insatisfação com a MINUSTAH? A viatura queimada, o incidente da Catedral, a ausência num processo eleitoral que excluiu a principal força política do país... Não seriam sinais de algo vai errado?

Ok, senhor(a) Anônimo, mas como vejo o senhor(a) não tem o hábito de enxergar as coisas processualmente, vê apenas o preto no branco: Sou (mais) MINUSTAH e Sou (mais) Brasil... É um ponto de vista dos mais respeitáveis, mas ao mesmo tempo há pessoas no Brasil que não enxergam essa missão com a sua complacência patriótica, mas com um olhar crítico e necessário. Um olhar que permite compreender que houve um erro grosseiro dos nossos "soldados da paz" ao atirar em direção aos manifestantes. E que militares, como seres humanos que são, erram, e por estarem imbuídos de um poder, as armas, que civis não dispõe, tem uma responsabilidade ainda maior quanto a estes erros.

Conversava com um colega e ríamos às gargalhadas de como policiais e militares tem ainda o que aprender com civis, especialmente no que tange às manisfestações e passeatas, atos de caráter político. Em primeiro lugar, falta-lhes entender que, em princípio, toda manifestação é pacífica. Ninguém vai para uma passeata armado. Isso é um fato dito por um militante com mais de 25 anos de experiência e com longa tradição familiar nisto. Nós sabemos quando vamos às ruas, especialmente porque há mulheres, jovens, às vezes idosos, que não temos nem armas para confrontar policiais ou exércitos. Dirão alguns que militantes do MST ou de outros movimentos camponeses faziam suas manifestações munidos de foices, enxadas e facões... É verdade, mas será que estes objetos não são instrumentos de trabalho destes manifestantes? Dirão então que eu sou ingênuo ou cínico pois ouso dizer que estes instrumentos são usados de forma pacífica. Não, eles também não são só instrumentos de trabalho. São instrumentos de defesa sim. Claro que sim. Policiais vem com gás lacrimogêneo, cassetetes, balas de borracha, mangueiras d'água, escudos e capacetes, às vezes (quase sempre) com armas de fogo. Nós temos as nossas convicções, as pedras do chão, paus e o que mais estiver ao alcance das mãos. Nós tentamos entrar nos lugares, ocupar (as ruas) e resistir. Eles tentam nos impedir e para isso usam todos os meios necessários. Eles obedecem ordens, nós agimos segundo as nossas convicções, as nossas pulsões e paixões.

Há momentos em que o confronto é inevitável...

Sim, já vi coisas impressionantes... Um dos caras mais pacíficos e tranquilos que conheço, na época da privatização da Vale do Rio Doce, revoltado com a violência da polícia, que nos expulsou dos arredores da Praça XV, no Rio, que nos caçou impiedosamente naqueles dias quentes no Centro do Rio de Janeiro: vários colegas de diversos movimentos e universidades foram varridos pelas ruas até o Largo de São Francisco, onde fica o IFCS, onde estudávamos. Naquele dia, na batalha campal travada nos arredores da Praça XV, um dos mais moderados e pacíficos militantes que já conheci (até hoje ele é assim) saiu catando pedras portuguesas e lançando-as contra os policiais. Exagero? Depende... De onde partiu o exagero? De nós é que não foi. Prepararam uma verdadeira barricada em torno da Bolsa de Valores do Rio. E, embora tenhamos ocupado de maneira pacífica, cantando e conversando o espaço, fomos expulsos na base da porrada e com bombas de gás lacrimogêneo. Diz o poeta: a praça é do povo, assim como o céu é do condor. Naquele dia fomos expulsos da praça, queríamos as ruas, fomos expulsos das ruas. Um momento, as forças públicas estatais não estão ali para me proteger e servir?

Mas como digo sempre, tudo é uma questão de ponto de vista...

O problema é que estas tropas estão sempre prontas para exagerar no uso da força. Afinal, como disse, o monopólio do uso da força pertence ao Estado. Mas o Estado deve representar os cidadãos e se estes vão às ruas se manifestar, cabe ao Estado garantir-lhes este direito, não? Não, as máquinas de repressão dos Estados estão montadas para garantir-lhes a sobrevivência a todo custo, à revelia da vontade dos cidadãos.

Processos eleitorais devem garantir uma representação legítima da sociedade no Estado...

A quem representam os atuais senadores do Haiti, o seu presidente, a classe política?

Quem então controla a força que o Estado usa sobre os indivíduos e coletividades?

Ouço relatos da ação firme da MINUSTAH nos bairros populares de Port au Prince. Várias apreensões de drogas em bairros populares: maconha, normalmente nas mãos de usuários... Os caras recebem um treinamento no Brasil para estourar bocas de fumo em favelas cariocas e chegam no Haiti brincando de "Capitão Nascimento"... Francamente, se essa é a vertente brasileira, ela caiu muito de qualidade em relação aos contingentes anteriores. Pelo menos essa é a percepção de alguns interlocutores que vem destes bairros populares.

Meu anônimo insiste em falar em "verdades"...

O que é a verdade, senão a versão consagrada ou oficial de um fato?

Por falar em militares, pergunto ao meu anônimo se ele assistiu o filme "Zuzu Angel". A versão oficial da ditadura militar é que Stuart Angel nunca esteve em nenhuma unidade militar, no entanto, um "traidor da pátria" resolve abrir o jogo, contar o que viu preso em um quartel . Stuart Angel chega a ser julgado e absolvido numa auditoria militar, sem nunca ter sido preso segundo constava nos arquivos de unidades militares. Uma comédia mal dirigida por coronéis da linha dura. Infelizmente, para estes, a coisa vaza através de um deles, que resolve, por razões pessoais e egoísticas, contar o que viu. Zuzu Angel denuncia, corre atrás, vai a todo canto buscar quem lhe ouça. Acaba morta em um "acidente". Qual a verdade que nos interessa contar? A da ditadura ou a da família destas duas vítimas da ditadura?

Qual a verdade que nos interessa contar no incidente da Catedral? A que suja as mãos dos nossos "soldados da paz" com o sangue de um manifestante ou a que diz que este morreu por causa de pedradas?

Não quero convencer meu caro anônimo de nada, quero apenas que ele reflita, como eu faço, pensando que não se trata de uma questão nacionalista, mas de uma questão mais profunda que diz respeito à humanidade. Que concerne ao respeito à condição humana e à autonomia e liberdade de um povo.

A Missão da ONU veio ao Haiti para evitar uma crise social violenta e um massacre indiscriminado de pessoas como houve em Ruanda, por exemplo. Ela não está aqui para matar haitianos. Quando ela começa a fazer isso, esta missão precisa ser repensada. É nisso que meu anônimo precisa pensar.

O verdadeiro brilho falso do ouro dos tolos

Desde pequeno ouço a frase "Nem tudo que reluz é ouro"...

Quando era criança, fui algumas vezes à Rio Bonito, na casa de uma grande amiga de minha mãe a quem chamávamos de tia. Ela era irmã do marido da irmã de meu pai - isso me remete às classificações e diagramas de parentesco - e, com efeito, chamávamos seus filhos de primos. A casa era um pequeno sítio, com uma pequena horta e uma oficina - o marido dela, que não chamávamos de "tio", mas de "seu" Nelson, era mecânico. Havia ainda algumas cabras e muitas galinhas daquelas que damos nome e, crianças, choramos quando vamos comer.

Ao lado do pequeno sítio havia um barranco com grandes valas formadas pela erosão da chuva. O barranco, com sua terra avermelhada e com grande quantidade de pedras e cascalho, era um local perfeito para explorações e brincadeiras de criança. Encontrávamos pequenos cristais de quartzo e grandes pedaços de malacacheta, que faziam a nossa alegria infantil se tornar sonhos de riqueza: estávamos encontrando diamantes e pedras preciosas. O verdadeiro brilho daquelas pedras embalava nossas brincadeiras com falsas esperanças de encontrar riquezas. Porém, nem tudo que reluz é ouro.

As recentes postagens deste blog apresentam uma crítica um tanto feroz à MINUSTAH. E entendo que os defensores de "outras facetas" desta missão se sintam ofendidos. Para eles é como se eu não reconhecesse essa importância. Pode ser...

Por outro lado, aprendi que o monopólio legítimo da força deve pertencer ao Estado, e que este é um dos sinais de soberania deste Estado. Aprendi também que o Estado é a representação da sociedade, e para alguns contratualistas, inclusive, é através do Estado que indivíduos abrem mão de seus interesses pessoais em favor da coletividade, e que este contrato social estabelece uma igualdade entre os seus signatários. Logo, é no interior deste Estado, representante dos interesses coletivos, que grupos de indivíduos disputam entre si o controle da sociedade. Toda essa discussão teórico-política tem um objetivo claro, explicar àqueles que se dizem "do lado da verdade" (e como efeito, do lado da MINUSTAH), que esta missão não chega aqui por acaso e que ela tem objetivos e interesses definidos, interesses estes que não chegam nem um pouco perto dos interesses de maioria da população haitiana.

Subestimam a inteligência deste povo, aqueles que pensam que basta dar-lhes comida e pronto! Está resolvido o problema. Pensar que este povo é composto de "gente que vive num estado de animalidade", que "não atingiram ainda o estágio de desenvolvimento da civilização", "que são como bichos" e, por isso, "precisam ser alimentados, adestrados e preparados para a civilização", que "eles estão ainda em um estágio onde ainda são puro instinto e por isso se matam como animais", entre outras observações que traduzem uma visão preconceituosa, redutora e racista do povo haitiano.

Concordo, porém, que soa pretensioso demais alguém julgar que enxerga mais do que os outros. E esse é o brilho do ouro dos tolos. Portanto, se devo dizer algo diferente é que todos se iludem com o brilho verdadeiro do ouro falso, e creem estar enxergando muito mais do que os outros do lugar de onde olham. Porém, alerto quaisquer de meus interlocutores para este momento de auto-crítica, citando Marcelo D2, "eu não estou 100% certo, mas você está totalmente errado" se não se esforçar em fazer também uma auto-crítica.

Vamos então discutir aquilo que meus interlocutores chamam de "fatos"...

Fiz um esforço para retroceder ao ponto de chegada da missão da ONU ao país: um golpe de Estado orquestrado pelas Embaixadas locais de EUA, França e Canadá e uma força de segurança provisória formada por estes três países. O sequestro do presidente do país, democraticamente eleito e com o apoio da maioria da população pobre do país, e sua suposta "renúncia" assinada numa situação de sequestro - onde parece ser óbvio estão reduzidas as suas opções de escolha: "ou assina, ou (a gente te) ass(ass)ina". Antes disso, é importante ressaltar, um quadro de crise social, com conflitos armados, o que supunha a necessidade de uma intervenção que evitasse uma crise mais aguda com violações dos direitos humanos e um quadro de profunda instabilidade. Vejam bem que tal quadro ainda não havia se definido, embora se desenhasse, a necessidade de uma intervenção se fez como medida preventiva.

Os "poderes instituídos", no caso o governo provisório pós-golpe, solicita a intervenção das Nações Unidas. Desembarcam aqui, "a pedido do governo local", os "casque bleu" da ONU para estabilizar o país. Realizam-se eleições, e René Preval não chega a atingir o total acima de 50% que garantiria sua vitória no primeiro turno, o que obrigaria a realização de um segundo turno, o que é exigido pela constituição do país. Uma bem orquestrada ação de diplomatas e de governos do continente americano, muito bem conduzida pelo nosso Brasil, garante a posse de Preval, atropelando a norma constitucional. Preval, que reconhece que sua chegada ao poder pela segunda vez (na primeira, esta se deu sob os auspícios do hoje "leproso" Aristide) se deve a este esforço da "comunidade internacional", renova o mandato da Missão da ONU.

Custa tão caro, portanto, aceitar que diversos aspectos desta Missão da ONU se dão à revelia da população? Que não são os interesses do "povo" que estão em jogo, mas que diversas articulações entre elites de extração variada e interesses diversos estão em jogo nesta missão?

O que tenho apontado é isso. Não é cansaço, como disse, é a constatação clara de que, não se pode defender infinitamente esta missão, porque os seus pressupostos fundadores subestimam a capacidade deste povo de gerir suas crises, na verdade, como tenho insistido, colocam os haitianos numa condição subalterna, onde estes precisam ser tutelados. Poder-se-ia insistir que não há tutela posto que a missão obedece uma demanda de governos locais.

A atual Primeira Ministra, Michelle Pierre-Louis, publicou em 2008 um interessante artigo na revista do Institut Français d'Haïti, "Conjonction", falando que nos últimos 16 anos o país teria sido palco de pelo menos 15 missões das Nações Unidas, com diferentes mandatos, entre elas a atual missão, a MINUSTAH, que já está no país desde 2004. Creio que ao chegar ao posto de Primeira Ministra, tal como fizera um famoso intelectual brasileiro que chegou à presidência da república, Mme. Pierre Louis deva ter dito para que esquecêssemos tudo o que ela escrevera. A questão que ela propunha com o texto era discutir até onde o país realmente poderia ser autônomo e desenvolver processos gestionários a partir de si mesmo, um vez que fosse constantemente palco de diversas missões que subtraem o poder do Estado em favor de outrem. Em outras palavras, se as missões da ONU "estabilizam", porque estes processos não se traduzem numa longa duração? Talvez, a resposta é exatamente aquela que venho sugerindo aqui: as missões da ONU, a despeito de todo o seu caráter humanitário, elas pecam por um grave reducionismo: não estão preocupadas com a realidade local, mas com os modelos prontos que eles tem que trazer e implantar nos locais onde atuam.

Pensar que a ação de indivíduos isolados pode trazer efeitos positivos para esse tipo de missão me parece uma espécie de "jogo do contente" de Poliana. Concordo, porém, que não se deva jogar o bebê fora junto com a água do banho. O que penso, porém, vai mais longe e diz respeito ao caráter deste tipo de missão. E, isto, insisto, passa por considerar "certa incapacidade dos povos atendidos por estas missões". Apenas para ilustrar, uma vez conversando com um funcionário do UNFPA (Fundo de Populações das Nações Unidas), que vinha pela primeira vez ao Haiti, falávamos sobre o país e ele me disse que já conhecia muito sobre o Haiti, pois estudara em seu doutorado os "état faible". Fiz uma rápida analogia, contando a história de um país que elegera seu presidente em eleições fraudadas, o Estado não garantia saúde e nem educação a todos os seus cidadãos, que se tratava de um país marcado por clivagens de diversas ordens, e que este país era considerado uma das mais fortes e importantes democracias do planeta. Ele perguntou de que país falava, disse-lhe que me referia à primeira eleição de George Bush Jr. à presidência dos EUA e ninguém nunca discutira se este país é um "état faible". Disse, enfim, que este tipo de conceito, de caráter normativo não era útil para pensar o Haiti. Esta conversa, no entanto, dá a dimensão de como a vertente civil das Missões da ONU pensa suas intervenções no mundo.

Nem tudo que reluz é ouro...

Quando estamos diante de um Estado que não detém o monopólio legítimo da violência, transferindo este para forças estrangeiras, responsáveis por garantir a segurança pública, creio se tratar de um caso interessante onde a soberania deste Estado se encontra nas mãos de outrem, e podemos dizer duas coisas: ou este Estado não representa a sua sociedade ou esta força é um "corpo estranho" colocado entre esta sociedade e este Estado, criando tensões irreconciliáveis. Explico.

Esse "corpo estranho" não está ligado aos interesses colocados por este Estado, mas a interesses acima deste, referidos à "segurança hemisférica". Ora, isso que dizer que este poder militar não está submetido ao poder deste Estado e muito menos aos interesses desta sociedade, mas a uma espécie de "deus ex-machina" que se coloca acima dos problemas e questões localizadas para decidir, de maneira olímpica, o rumo desta sociedade e sua relação com o Estado.

Quando o soldado imprudente atira em direção a uma massa que se manifesta, supostamente, de maneira pacífica à saída de uma missa (algo em comum com o assassinato do estudante Édson Luís no Calabouço e a reação da tropa ao povo que saía da missa em sua homenagem na Candelária?), não se trata de um erro individual isolado. Este ato reflete duas coisas, dois pressupostos: o primeiro, a total ignorância e desconhecimento sobre a população, baseada em informações estereotipadas e, por vezes, terrivelmente equivocadas, vindas de "especialistas" em cultura e povo haitiano. A falta de informação qualificada e correta induz a percepções equivocadas sobre o povo local, percepções baseadas em preconceitos das mais variadas ordens e que se traduzem em certas ações e julgamentos. O segundo, é que tal ignorância e desconhecimento tem raízes históricas e estão, no caso do Haiti em especial, ligadas a um conjunto de preconceitos e idéias constituídas ao longo de dois séculos de história do país, que colocam estes países que são alvo de missões da ONU numa espécie de "não lugar", particularmente dado, que lhes transforma em excrescências do mundo moderno: eles não deveriam existir. Porém, uma vez que estes "não lugares" existem, como lidar com eles? Eis a questão.

O problema é que mesmo os especialistas em relações internacionais acabam operando com teorias normativas e, com efeito, não se ocupam de pensar estes "não lugares", mas de enquadrá-los dentro de suas teorias, sem perceber que sua própria condição de "não lugar" é fruto de uma relação com algum "lugar" dado. E que, é possível, pensar que "não lugares" não são uma condição, mas de fato uma relação entre coisas, pessoas, Estados, sociedades, etc. que está em relação com "lugares" que também são relações entre coisas, pessoas, Estados, sociedades, etc., um jogo permanente que opõe as coisas umas às outras e que forma redes e configurações. Logo, se o Haiti é o que é, não é somente por suas "características intrínsecas" ou pela sua "natureza", ou ainda, o "espírito de seu povo", mas decorre de relações e de um sistema de relações internacionais que engendra "Haitis", "Rwandas", "Congos", etc., como partes de um sistema colonial que ainda persiste. Como disse sabiamente Omar Thomaz, professor da Unicamp, em conversas particulares, há no Haiti uma espécie de "persistência da história". O mundo pós-colonial existe, então, como uma relação dada no plano histórico-temporal, mas também no plano concreto da existência cotidiana, em relação a um mundo colonialista.

Porém, como "nem tudo que reluz é ouro", penso também que posso estar me iludindo com o brilho tão verdadeiro de elaboradas discussões intelectuais, forjadas sobre falsos dilemas, transformando, como uma criança, pequenos cristais de quartzo e grandes blocos de malacacheta em tesouros incríveis sem valor algum.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Não, eu não estou irritado e nem cansado... Apenas estou enxergando melhor

"Sobre o incidente em frente ao Palácio você tem interlocutor previlegiado.

Porquê nào o busca para saber a verdade e o que está sendo feito para comprová-la pra o grande público?

Você está cansado fisicamente. Isto é um fato. Até que ponto isto influencia a sua observação apaixonada deste país que amamos?"


Escreveu um anônimo no meu blog...

Ok. Em primeiro lugar, teríamos que qualificar aquilo que chamamos de verdade. Uma das verdades incontestáveis é que o sujeito que foi morto em frente à Catedral de Port au Prince tomou mesmo um tiro. Outra verdade é que parece que nossos "Soldados da Paz" atiraram mesmo em direção aos "manifestantes" que saíam de uma (perigosa?) missa na Catedral de Port au Prince, uma celebração aparentemente pacífica à morte de uma liderança popular, o Padre Jean Juste.


Ainda que eu duvidasse disto ou mesmo que estivesse enganado, creio que meu cansaço nada tem a ver com o meu juízo sobre os fatos.


Quanto à minha irritação, bem ela talvez seja um fato, mas não decorre do cansaço, decorre por exemplo, de ouvir de outro interlocutor privilegiado que, realmente, do ponto de vista militar esta missão é marcada pela coragem e pela decisão no agir do comando brasileiro, o que é visto em termos de missões da ONU como algo positivo, sendo que, no entanto, do ponto de vista dos direitos humanos (isto não se refere de modo absoluto à intervenção brasileira, mas à missão como um todo), esta missão apresentaria falhas graves. Portanto, não acho que esteja faltando com a verdade quando faço as minhas críticas a esta missão, mas apenas apresento o meu ponto de vista, sem patriotadas exageradas.

Militares tem grande dificuldade em aceitar os seus erros. Uma vez conversando com um oficial das forças armadas, este se recusava a aceitar que houve uma ditadura e que esta ditadura matou e torturou pessoas. E quanto a tortura este dizia apenas que ela existe em todo lugar. Ora, suponho que a partir disto esta pessoa não veja defeito em torturar alguém, se for por um bom motivo. A velha máxima de Maquiavel, "os fins justificam os meios" (fica aqui uma pergunta: como se define um "bom motivo" para justificar a tortura?). Quanto à ditadura, ele me dizia que foram realizadas eleições. O que ele esquecia de dizer é que, em 1978, quando o partido da ditadura perdeu as eleições, eles criaram senadores e governadores "biônicos", garantindo assim a eleição do candidato militar nas eleições indiretas para presidente, João Figueiredo. Eis o que os militares daquela época chamavam de democracia. Isso mudou? Espero... História. O que isso teria a ver com a presente discussão? Esclareço.


Errar é humano. Eu erro, ainda bem. Não sou perfeito. Mas não "falseio com a verdade," porque "verdade" pode ser um ponto de vista. O meu é esse, doa a quem doer. Não tenho compromisso algum com as Nações Unidas e nem com os militares brasileiros que estão aqui, senão alguns laços de camaradagem com algumas pessoas que penso serem boas pessoas. Seria mais honesto e sensato reconhecer erros e corrigi-los. No entanto, isto parece ser difícil, não parece ser a prática nas missões de paz da ONU. Eu não confundo, porém, as coisas. Sobretudo porque pessoas que vivem aqui como eu e um comentador deste blog, que me critica por apresentar o meu "ponto de vista antropológico", uma delegação de haitianos foi ao Congresso Nacional demandar de nossos senadores a retirada do Brasil da MINUSTAH. Acho que este é um argumento bem mais "verdadeiro" que o meu e de meu simpático comentador e crítico, posto que venha de haitianos insatisfeitos com a situação do país e a presença da ONU aqui.


Ou não, é apenas mais um ponto de vista que deve ser considerado. A única coisa que "meu ponto de vista antropológico" faz é considerar todos os demais pontos de vista, sem assumir o meu como "único e verdadeiro" sobre esta questão. Meu comentador também não considera o pressuposto deste blog: são relatos impressionistas. Eu não sou jornalista, nem porta-voz de ninguém. Meu amigo e grande intelectual Fred Coelho tem exaltado exatamente isto na net: sua capacidade de oferecer diversos pontos de vista. Aqueles que criticam o meu, terão todo espaço aqui mesmo para apresentar o seu.



Quando analiso uma situação, eu não olho para indivíduos. Para mim estes não existem, senão quando inscritos em configurações sociais. E o que vejo aqui é sempre uma maneira de reduzir os haitianos a uma condição de inferioridade. Daí o título da postagem: Alteridade Redutora. Sim, porque há um pressuposto que a diferença é sempre entendida em termos qualitativos.


Não ignoro as virtudes da "Ajuda Humanitária" e das "boas intenções" destas missões. Espanta-me, no entanto, ao conversar com pessoas que participaram de outras intervenções da ONU em outros lugares do mundo, perceber exatamente isto: estes povos são incapazes de se governar, governemos por eles. Uns exaltam o fato da ONU em algumas missões ter assumido o Estado, e por isso ter garantido a condução do processo de democratização e estabilização com mais eficácia. Outros destacam o fato de que alguns povos "vivem mergulhados na barbárie e na falta de democracia", como se o modelo democrático pudesse realmente garantir que as coisas "melhorem" no país. Melhorem para quem "cara pálida"?


Os processos de estabilização da ONU visam exclusivamente garantir que as elites locais retomem o poder e garantam o desenvolvimento de um modelo que nem sempre é aquele que estes povos desejam. E insisto, a única coisa que me faria defender a permanência da ONU aqui é para evitar que os EUA tomem isso aqui, como fizeram no início do século XX. O povo fica de fora destes processos, como ficou de fora das eleições "democráticas" realizadas aqui. Ouvi dizer: melhor haver eleições ruins do que não haver eleições. Pergunto de novo: "Melhor" para quem "cara pálida"?


Sim, levar alimentos para quem tem fome é importante, e destaco que se não fosse a presença da ONU, muitos aspectos da cooperação não poderiam existir simplesmente, porque não haveria condição disto chegar ao país, conforme disse em postagem anterior:


"De outro lado, como seria realmente possível a nossa presença aqui, digo, nós "os bem intencionados paladinos da verdade" críticos desta visão estereotipada, mas nem um pouco menos comprometidos com a necessidade de uma "estabilidade" que nos permita ao menos estar aqui? Eis a suprema contradição... Sem a missão da ONU não haveria a segurança mínima necessária para este esforço de internacionalização de nossa antropologia, e no mesmo pacote, outras coisas: o desenvolvimento de um novo perfil para a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) do Ministério das Relações Exteriores, a internacionalização de nossas organizações não governamentais, a expansão continental de nossas empresas... Ou seja, ambiguidades e contradições de processos desta ordem."(Ayitian Nuvels, segunda-feira, 22 de junho de 2009)


Não percebe meu interlocutor que estou incluído entre os “bem intencionados paladinos da verdade” críticos (ferozes, incluo) desta visão estereotipada. E que, apesar do meu cansaço, ao qual ele atribui as minhas críticas que falseiam a verdade, eu reconheço “as ambiguidades e contradições de processos desta ordem”. Pergunto eu, estaria meu interlocutor anônimo preparado para lidar com suas ambiguidades? Espero que sim.


Portanto, quando falo destas missões da ONU, não tenho a ousadia de achar que estou certo, mas me vejo no direito de criticar aquilo que chamo de "desvio original" das missões de paz: o seu caráter colonialista e redutor dos povos.


Ouço muito por aqui as pessoas de várias partes do mundo, sobretudo de países da Europa, apontarem o Brasil como uma potência mundial emergente. O "país do futuro" estaria se tornando uma realidade presente? Não sei... O meu pesadelo, no entanto, é ver que este país pode cometer o mesmo erro de potências anteriores, mas sobretudo, cometer o erro de ignorar seu próprio passado e suas contradições e agir como os velhos países colonialistas. Já ouvi de alguns estudantes haitianos a crítica ao Brasil, referindo-se a possível ranços imperialistas. Estarão eles errados? Não estaremos nós cegos e inebriados com o poder, querendo guiar aqueles que julgamos cegos?


Este é o meu pressuposto. Não é defender e nem apresentar a verdade. Quanto mais conheço esse país, quanto mais vivo nele e leio sobre ele, menos tenho a pretensão de dizer que conheço algo. Temo que alguns, enganados pelo brilho do ouro dos tolos, achem que realmente são especialistas na cultura e no conhecimento sobre este povo.



quarta-feira, 24 de junho de 2009

Alteridade redutora ou cegos guiando outros cegos em meio à escuridão

É possível que toda esta irritação seja mesmo decorrente de meu cansaço e de minha vontade de voltar para casa. Pode ser que não. Pode ser apenas a constatação de que as pessoas que vieram das mais diversas partes do mundo para "ajudar a estabilizar e desenvolver o Haiti" não entendem absolutamente nada sobre relações humanas. Ou melhor, estes entendem mas apenas de uma maneira de pensar que opera com uma redução do "outro" a um "inferior". Em minhas primeiras aulas de antropologia aprendi uma fórmula que até hoje repito como uma máxima que permita compreender as formas de tratamento das diferenças culturais: não confundir alteridade com inferioridadade.

Em primeiro lugar, a simples ideia de que alguém venha de algum lugar para outro "ajudar alguém" já supõe algo um tanto estranho. Sim, porque pressupõe alguém que tem "necessidades" e que alguém venha "atender" estas. Pressupõe uma "falta" de um lado, do lado de quem recebe, e a "abundância" do lado de quem doa. Pressupõe, enfim, "força" de um lado, e "fraqueza", do outro.

Este jogo de palavras não e apenas um jogo, mas exprime uma relação de poder. Há, enfim, um lado que tudo pode, dotado de toda potência de fazer, de realizar coisas, e um lado desprovido de qualquer poder, de qualquer autonomia. Há de um lado, tudo, de outro nada. Não há cultura, não há linguagem, não há nada. Há um vazio que será preenchido com "cultura", "educação", "desenvolvimento", "democracia". Estamos diante de relações que transformam qualquer diferença em uma relação de subalternidade.

Conversando com alguns membros da Missão da ONU é fácil perceber que esta relação não se refere especificamente ao Haiti, mas a todos os lugares onde se encontram as missões das Nações Unidas. Militares e civis chegam a estes países imbuídos de "nobres valores civilizatorios" e encontram "populações mergulhadas no obscurantismo e em tradições culturais inúteis que impedem a chegada do desenvolvimento". Nunca o ideal iluminista da civilização esteve tão presente, e creio que nem mesmo no século XIX, nos processos de colonização da África e Ásia deste período, pudéssemos encontrar uma visão tão redutora da diferença como esta que os modelos de intervenção humanitária colocam. Na verdade, revestido deste verniz "humanitário" encontramos a pior forma possível de colonialismo, escondido sobre camadas de boas intenções.

Comentam estes mesmos que estes povos "não querem ser ajudados", "não estão prontos para democracia", "não são racionais". Com estas afirmações, sustentadas pelas suas vastas experiências ao redor do mundo com os mais variados povos, estes "agentes da civilização" especializam-se em teorizar sobre "a influência do clima no desenvolvimento dos povos", constatando que as zonas quentes do mundo são menos desenvolvidas antes em função da abundância de meios, mas também por uma preguiça crônica destes povos. Percebem que as culturas tradicionais são um empecilho para o desenvolvimento de novas técnicas de produção "mais racionais". Que estes povos se recusam a aceitar uma educação para o desenvolvimento pois encontram-se apegados aos seus costumes tradicionais. Um caminhão de preconceitos e estereótipos que desembarca junto aos bem intencionados "soldados da paz". Não bastasse apenas tal caminhão desembarcar, é ele que orienta os laços entre estes agentes e a população local. Há pouco ou nenhum esforço em compreender que a diferença cultural não se processa em termos qualitativos.

Essa ideia de estar se relacionando com alguém que é (naturalmente?) inferior é ainda mais cruel que aquelas relações coloniais do século XIX, que se sustentavam em teorias racistas e num arraigado etnocentrismo. Não, agora, pelo contrário, eles são "humanos" como nós e, de fato, eles são "até" movidos pelos mesmos princípios. Mas seu estado de confusão mental e seu atraso crônico impedem eles de pensar de maneira racional e coerente. A perversão é mais perigosa ainda, pois eles são "iguais" porque partilham de uma mesma essência que nos faz humanos. O problema é que "eles ainda não nos alcançaram". Nós somos, de alguma forma, sempre melhores do aqueles a quem ajudamos...

Enquanto for este o pressuposto de qualquer ação humanitária coordenada pelas Nações Unidas, todas as missões da mesma natureza que esta missão de estabilização no Haiti estão condenadas a um fragoroso fracasso.

Estranho o fato de que as missões da ONU impedem qualquer vínculo entre seus integrantes e a população local, que não seja no âmbito de relações de trabalho. Logo, você tem que trabalhar com o povo, mas não pode se envolver com eles. Envolver-se significa conhecer sua cultura, seus hábitos, sua maneira de ser, imiscuir-se na vida cotidiana destas pessoas. Como ajudar alguém que não conheço?

O pressuposto da ajuda humanitária, porém, é a impessoalidade... Sim, não há relações entre pessoas, mas entre sujeitos (aquele que doa ou que ajuda) e objetos (aquele que recebe ou é ajudado). A impessoalidade é tal que não se deve conhecer o nome ou a vida das pessoas, senão quando necessário...

Eis então o ponto... Como um cego, alguém que não enxerga o outro como sujeito, mas como um objeto, aquele que não pode ver o outro, pode tentar guiar este outro por algum caminho?

Na verdade, os povos "ajudados" não estão, nem um pouco cegos, pelo contrário, enxergam perfeitamente e com o passar do tempo cada vez melhor. O problema é que aqueles que querem guiar estes povos, estes sim, são cronicamente cegos: sua cegueira não lhes permite ver sua própria estupidez e sua ignorância. Reputam a estes povos uma cegueira e ignorância que não existe senão neles mesmos. Porém, estes insistem em afirmar que sabem o caminho e em apontar as saídas.

Não sei como e nem quando, mas sei apenas que se não mudarem os pressupostos destas "Missões de Paz" ou "Ajuda Humanitária" o mundo caminha invariavelmente numa espiral de exclusão e de acirramento dos conflitos num prazo não muito longo...

Cuidado com o despertar dos povos colonizados. Uma vez houve um Haiti... Da segunda vez haverá centenas de milhares de Haitis espocando pelo "mundo civilizado" e desta vez não será possível conter o grito por dois séculos.


segunda-feira, 22 de junho de 2009

Por quanto tempo ainda? (Ou "Por (in)feliz (?) coincidência")

No último fim de semana realizou-se o segundo turno das eleições senatoriais no Haiti. Estas eleições tem como objetivo completar o número de 30 (trinta) senadores no parlamento do país. Atualmente o Senado conta com apenas 18 senadores. Com a eleição realizada o número de senadores chegaria a 28, pois seriam eleitos 10 senadores, um para cada departamento do país. Faltariam exatamente dois: um, que fora cassado em virtude do problema da dupla nacionalidade, um debate fortíssimo no país, outro, por renúncia em virtude de problemas de saúde. Parece-me que o sistema político-eleitoral não prevê a existência de suplentes, que seria neste caso a solução para completar o número de senadores constitucionalmente previsto.

Desta vez, por (in)feliz (?) coincidência eu não participei como Observador Internacional neste segundo turno.

O quadro em que se realiza tal eleição, no entanto, está marcado por inúmeros conflitos e tensões. Ao contrário do primeiro turno, onde os incidentes ocorridos poderiam ser considerados fatos isolados, por uma (in)feliz coincidência, a semana que antecede as eleições foi marcada por inúmeros problemas e confrontos entre a Polícia Nacional Haitiana (PNH), as tropas militares da MINUSTAH e diferentes manifestantes. Confrontos que denotaram excessos de força por parte dos agentes responsáveis pela manutenção da ordem.

É curioso que tal fato ocorra neste exato momento, quando fiz uma crítica aberta aos grupos de pressão que estiveram no Congresso Brasileiro pedindo a saída do Brasil da Missão da ONU. Devo, de fato, fazer um mea culpa, pois as coisas até este momento não haviam chegado aos limites atingidos nas duas últimas semanas. Como diria o nosso presidente, "nunca antes na história desta missão" os conflitos com manifestantes de rua chegaram a este ponto. E mesmo no ano passado, quando os conflitos chegaram às portas do Palais National, não havia ocorrido nenhum episódio de excesso de violência contra manifestantes de rua. Neste caso, as tropas cumpriram seu mandato de garantir a segurança dos poderes instituídos. No momento atual, parece que houve excesso de força, o que vem gerando inúmeras críticas.

Ouvi de um informante que estes problemas decorreriam do fato dos EUA (?) terem extra-oficialmente acesso (e "controle", segundo o mesmo informante) à PNH, e isto provocaria uma espécie de dupla entrada no comando: de um lado os agentes de polícia estadunidenses e de outro a Missão da ONU. A resposta poderia ser boa, não fosse o fato de que o excesso de força teria vindo dos soldados da MINUSTAH e, o pior de tudo, dos soldados brasileiros.

Embora os desmentidos da porta voz da MINUSTAH afirmem que os soldados teriam atirado para o alto, no intuito de dispersar a turba, imagens recolhidas e divulgadas pelas TVs, que parecem estar disponíveis no Youtube, dão conta de que estes teriam atirado em direção aos manifestantes. Em contrapartida, a MINUSTAH afirma que os manifestantes estariam atirando pedras na direção dos soldados. Há também o fato de ter sido incendiada uma viatura da UNPOL (Polícia das Nações Unidas), força policial formada por agentes de vários países (inclusive do Brasil).

Confesso que neste momento sinto-me em meio a uma guerra de versões no interior de uma central de boatos. Logo, meu mea culpa, não é por uma suposta defesa da Missão da ONU no país e da liderança brasileira neste processo, mas por realmente, mesmo estando aqui e agora, ignorar o que está realmente acontecendo e ser tão impressionista quanto qualquer matéria (mal) escrita por jornais brasileiros, sem nenhum compromisso ético (sim, porque qual veículo de comunicação é confiável no nosso país?). Tenho (e sempre tive) inúmeras críticas a esta missão, mas sempre me pergunto o que ocorreria se a MINUSTAH saísse do país nos próximos seis meses. Aliás, temo sempre pelo pior, que seria uma intervenção direta dos EUA neste país, "em nome da segurança hemisférica".

Aliás, este é o ponto que devemos reter no que tange esta missão: o que aconteceu entre a queda do Presidente Aristide e a chegada da Missão das Nações Unidas?

Vamos retornar ao ano de 2004, quando uma aguda crise social atingiu o país, gerando intensos conflitos entre os poderes instituídos, o presidente eleito Jean-Bertrand Aristide, e inúmeros setores da sociedade civil e movimentos sociais que se opunham a este governo. A crise insustentável gerou intensas clivagens que provocaram reações violentas de ambas partes. Acusa-se Aristide de ter se cercado dos chefes das gangues dos bairros pobres da capital do país, para resistir a uma eventual queda do poder. De outro lado, instrumentalizados por "forças ocultas" (leia-se os governos dos EUA, França e Canadá, insatisfeitos com Aristide) grupos diversos, incluindo grupos armados (como a "Armée Canibale" e o grupo de Gui Phillippe, que se organizou desde a República Dominicana, entrando no país pelo Plateau Central), estudantes (o movimento conhecido como "GNB") e um grupo de intelectuais e empresários (O grupo dos "184"), grupos que criaram um quadro de tensão social que "obrigou" uma intervenção de uma força internacional formada por (coincidência?) por Canadá, EUA e França, visando "evitar um quadro grave de violação dos direitos humanos" após a "renúncia" (segundo contam os partidários dos presidente deposto Aristide, forçada por um "sequestro" pelos marines dos EUA) do Presidente. Seis meses depois, após a instalação de um governo provisório, em outubro, as Nações Unidas organizam uma missão humanitária/militar liderada pelas tropas brasileiras.

Eis o quadro...

Interessante é ver hoje, a Missão da ONU associar grupos que são, pelo menos no contexto em que se deu a queda de Aristide, antagônicos e de certa maneira, inimigos viscerais, como os estudantes e o Movimento Lavalas, partidários do presidente deposto. Ouvi de um militar que as manifestações dos estudantes estariam sendo fomentadas pelo Lavalas (sic). É bem verdade que a pauta dos estudantes parece um tanto ampla e difusa. Está referida desde questões internas da Université d'Etat d'Haïti, tais como o caráter elitista e conservador do curso de medicina, que excluiria os alunos de classes populares, qualidade de ensino, críticas aos professores que não teriam compromisso com a Universidade, passando pelos problemas econômicos do país e a votação da lei do salário mínimo, cujo valor hoje não ultrapassa US$ 50, e o projeto que tramita hoje aumentaria para algo em torno de US$ 150, até a retirada das tropas da ONU do país. No entanto, não vejo de maneira negativa tal pauta, exceto pelo fato de atirar em muitas direções e não possuir uma estratégia e um interlocutor definido: com quem o movimento dos estudantes está dialogando: com a direção da universidade? Com o legislativo? Com o executivo? Com o comando da Missão da ONU? Com todos estes ou com nenhum destes?

Posso pecar por um excesso de pragmatismo, mas em um quadro institucional fraco, com uma grande dispersão das forças políticas, fico pensando nos efeitos práticos e na capacidade de obter vantagens ou vitórias de um movimento desta ordem, tão disperso e tão difuso, excessivamente localizado na capital do país, mais precisamente em uma única área: o Champ Mars e os arredores do Palais National. Um movimento que não conta nem com o apoio maciço da população, que aliás, exceto pelos incidentes ocorridos recentemente, se mantém indiferente a tal movimento.

Ao mesmo tempo, começamos a perceber certo desgaste (e talvez, porque não, inutilidade) da Missão da ONU, que afinal não consegue resolver aquilo que veio fazer: "estabilizar o país". Afinal, o que quer dizer isso? Criar um clima favorável para que as elites políticas e econômicas do país criem um quadro de institucionalidade que permita o país "funcionar" com relativa "ordem"? A quem de fato interessa essa "estabilização" promovida pela ONU? Quem são os atores políticos que jogam este jogo?

Não assumi, ainda, uma posição de total descrença em relação a presença da ONU no país, mas confesso que quanto mais se aproxima a hora de partir, um tanto mais desiludido, percebo que não há no horizonte possibilidade alguma de acreditar que as coisas sigam por um caminho que seja realmente bom para o povo do país.

Um interlocutor que circula por altas esferas do país disse-me não ver grande vantagem na chegada de empresas brasileiras (leia-se, "empreiteiras"), que se especializaram em nosso país com o lucro fácil e com enriquecimento em larga escala. Aqui eles apenas farão mais dinheiro, julgando (como apostaram em lugares como Equador, por exemplo) numa liberdade absoluta para seus negócios. O que ganhará o Haiti com isso? Alguns empregos, empreendimentos, mais presença estrangeira, menos autonomia...

Como fará o Estado haitiano para converter estas presenças estrangeiras, que vem ao país em busca do lucro fácil e da baixa tributação, em benefícios como saúde pública, escolas públicas, saneamento básico, água potável, entre outras coisas, para as população pobre do país? E qual o papel que a Missão da ONU desempenha neste cenário? Ela "estabiliza" para haver investimentos? Investimentos em quê? Infra-estrutura (estradas, redes de esgostos e água, geração de energia, etc.) para quem? "Vamos fazer o bolo crescer para depois dividir"? Dividir entre quem?

Achei extraordinário o lançamento do livro de Jean Casimir, sociólogo haitiano, que fez pesquisa no Nordeste, na região da plantation, sobre as elites do país: "Haïti e ses élites: un dialogue de sourds", onde analisa a formação das elites nacionais, desde os affranchis do período colonial, e de seu papel como elemento amortecedor de tensões entre o poder colonial e os escravos bossales, até o papel que aqueles desempenharão no processo de independência.

O círculo então se fecha: desarticulação entre movimentos sociais, descompromisso das elites locais com o desenvolvimento social do país, intervenção estrangeira. Como se estas coisas vivessem um processo de retroalimentação que, como supôs o importante pesquisador que esteve no país nos anos 50, antes de Duvalier, não permitirá nunca que o país encontre uma saída sem que estas três coisas se articulem. Em outras palavras, o decano pesquisador disse com todas as letras que o Haiti não se levanta sozinho...

Custo a crer...

Não vejo, porém, saída... Só penso que a Missão da ONU não poderá ficar eternamente no país sem que isso represente o total fracasso do modelo de intervenção humanitária que este tipo de missão sugere. A ONU vai colecionando fragorosos fracassos em inúmeras partes do mundo, mostrando que o único papel que ela desempenha no mundo é o defender os interesses do Grande Irmão do Norte. Se a presença do Brasil nesta missão se reduzir a reproduzir o modelo consagrado, sem agregar algum tipo de valor, podemos dizer que este será um dos maiores erros da nossa política externa.

Há, no entanto, outro lado. Se conseguirmos agregar valor, e fugirmos de velhos modelos imperialistas, mas estabelecermos um tipo de cooperação bilateral do gênero sul-sul, é possível que a missão, ao se desmilitarizar, traga possibilidades de construir um projeto realmente de desenvolvimento do país, não a partir de uma visão intervencionista, mas a partir do respeito às particularidades e aos processos históricos desta sociedade. Falta, entretanto, uma visão menos "civilizatória" a esta missão. A MINUSTAH não respeita e nem compreende nada sobre este país.

Vejo claramente que todos que chegam ao país, apostam nos estereótipos e nas visões consagradas sobre o Haiti e seu povo: uma massa inculta e incivilizada. Desta maneira será impossível pensar em construir algo em conjunto com este povo. A idéia de barbárie sempre permeia a visão deste outro que supomos tão distinto e ao qual reputamos uma idéia de incapacidade ou de "infância mental", na ausência de um termo mais adequado. Na visão de algumas missões, ONGs e cooperantes "o Haiti não se desenvolve por sua absoluta incapacidade de se adequar aos modelos civilizatórios que nossas missões aqui propõem". A MINUSTAH não é nem um pouco diferente, aliás, na visão de seus militares e principalmente destes, este povo não é capaz de se governar e somos nós que vamos dar a eles os melhores instrumentos: a democracia, a cultura e o desenvolvimento.

De outro lado, como seria realmente possível a nossa presença aqui, digo, nós "os bem intencionados paladinos da verdade" críticos desta visão estereotipada, mas nem um pouco menos comprometidos com a necessidade de uma "estabilidade" que nos permita ao menos estar aqui? Eis a suprema contradição... Sem a missão da ONU não haveria a segurança mínima necessária para este esforço de internacionalização de nossa antropologia, e no mesmo pacote, outras coisas: o desenvolvimento de um novo perfil para a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) do Ministério das Relações Exteriores, a internacionalização de nossas organizações não governamentais, a expansão continental de nossas empresas... Ou seja, ambiguidades e contradições de processos desta ordem.

Costumo dizer a todos meus interlocutores que o que há de mais significativo nesta experiência de pesquisa no Haiti e dar-me conta das contradições de nosso velho mundo, não porque elas sejam particulares do Haiti, mas são resultado de várias dimensões da experiência humana em todo este vasto planeta. O Haiti, como dizia a minha grande mestra Professora Lygia Sigaud, é um desafio ao pensamento, mas ao mesmo tempo ela dizia também: o que é que não nos desafia o pensamento?




sábado, 25 de abril de 2009

O Pinhão Manso e o Biodiesel - A cura dos males do Haiti?

Estive esta semana na Biblioteca Nacional e na Biblioteca da Instituição Religiosa Saint Louis Gonzague. Ambas são sempre citadas em bibliografias de obras sobre o vodu como grandes repositórios da literatura etnológica do país. Ja estivera antes na biblioteca do Bureau de Ethnologie, fundado pelo escritor e etnólogo Jacques Roumain no início dos anos 40, que infelizmente se encontra em estado um tanto precário, apesar do bom conjunto de obras disponíveis.

Entre os livros encontrados, achei "Mythologie Vodou (Rite Arada)" de Milo Marcelin (1949), onde há um excelente coleta de dados sobre os lôas do Rito Rada. Segundo a literatura, o vodu se divide em duas linhas pricipais, o rito Rada (ou Arada), dos
lwa ginnen (lôas guiné), os ancestrais africanos e o rito Petro, que são os lwas créole (lôas créole), os lôas nativos do Haiti, as divindades originárias daqui. Num dos capítulos, Marcelin fala de Ayizan Véléquete, esposa de Atibon Legba, protetora e deusa das águas doces, também dos mercados, dos lugares públicos, portas e entradas diversas. Ayizan Velequeté é uma das divindades mais velhas, e já fora objeto de um culto particular, distinto dos demais lôas. Segundo Marcelin, antes de bay manje lwa yo ("dar comida aos loas"), a comida deveria ser separada em duas metades iguais, uma das metades era destinada a Ayizan, a outra metade dividida entre os demais lôas. Afirma ainda que cada lôa tem um "reposoir", uma árvore que serve de residência para o lôa ou divindade. A árvore destinada a Ayizan é o médicinier béni ou gwo metsyien (Jatropha curcas L.). Traduzindo, a árvore destinada a Ayizan é o bem conhecido dos defensores dos biocombustíveis "Pinhão Manso".

Esta semana num dos dois maiores jornais do país
Le Nouvelliste lançou uma matéria sobre a Jatropha, que como todas as questões relacionadas aos biocombustíveis se encontra cercada de polêmicas, sobretudo por que os defensores do biodiesel não cansam de apontar as vantagens do desenvolvimento destas tecnologias . Polêmicas a parte, isto me levou a uma conversa que tive ontem com um velho amigo sobre as saídas da crise haitiana. Falávamos das eleições e do beco sem saída em que o país parece estar metido. Este amigo acredita que é melhor mesmo que haja eleições, mesmo que ruins. Retorqui dizendo que eleições desta ordem servem apenas para deslegitimar o sistema representativo e denunciam a sua farsa, pois cada vez menos gente confia nos políticos e nas eleições.

Este não é um fenômeno particular do Haiti, mas parece demonstrar a gravidade do problemas dos rumos da democracia representativa. Aliás, a democracia virou, pelo menos em casos como o haitiano, mera representação, no sentido de
encenação ou de figurar como símbolo de algo. Neste sentido, a democracia ocidental cada vez mais, ao invés de se fortalecer em processos como o iraquiano, afegão ou haitiano, vai perdendo legimitidade junto às populações locais e cedendo espaço para "outra coisa". Qual seria essa "outra coisa"? Meu amigo perguntou-me a resposta deste dilema, e qual seria a outra saída. Ou apenas lhe respondi que se soubesse, teria achado a chave da história da humanidade. O certo é que o "fim da história" sonhado pelos liberais dos anos 90 ou pelos comunistas de todas as eras ainda está bem longe, mas é certo também que em tempos recentes a democracia liberal pode estar começando a sofrer os seus mais fortes golpes: a primeira eleição de Bush nos EUA já afetara gravemente a credibilidade do sistema, e estas eleições no Haiti são outra prova. Como disse também ao meu amigo, se dissesse algo tão bombástico assim, ou eu seria um profeta iluminado, ou seria um grande mentiroso.

Entramos então numa discussão sobre o papel da comunidade internacional no Haiti e os projetos para o desenvolvimento do país. Parece claro que a saída consiste em garantir às comunas do interior do país a possibilidade de desenvolvimento, possibilitar o renascimento da vida camponesa no país. Somente, através da recuperação agrícola, da criação de oportunidades no campo para as pessoas é que será possível iniciar uma recuperação econômica do Haiti. O país é uma das maiores vítimas da crise alimentar. O declínio da produção rural decorre, sobretudo, da falta de uma política agrícola e da falta de competitividade da produção nacional contra os produtos alimentares importados. A crise ambiental agrava os efeitos do esvaziamento do campo e do inchaço das cidades: as pessoas saem das pequenas comunas do interior para as capitais departamentais e destas para Port au Prince. Depois de Port au Prince, como debatia com o amigo, a próxima saída era o aeroporto. O amigo então insistiu no fato de que, uma das formas de tirar dinheiro dos EUA seria exatamente o controle da imigração, através deste desenvolvimento local. Eu poderia até concordar, porém, não há tantos boat people assim... E embora altos, os investimentos estrangeiros no país, sobretudo aqueles vindos EUA, estes parecem não chegar ao interior do país.

A constituição do país prevê uma descentralização econômica e administrativa. Esta, no entanto, está amarrada em interesses não muito claros dos sucessivos governos haitianos, que não possuem políticas para o desenvolvimento das outras regiões do país e concentram a aplicação de recursos na capital nacional. Nem mesmo as capitais departamentais recebem grandes investimentos.

Entre as supostas virtudes da Jatropha, o nosso "pinhão manso", estaria o fato dele ser uma planta nativa, bem adaptada às condições ambientais desfavoráveis. Outras vantagens seriam as inúmeras possibilidades de seu cultivo em consórcio com outras culturas, algumas delas de produtos alimentares de alto valor agregado (açaí, palmitos diversos, gado, etc.). Seu sugestivo nome médecinier e suas características de erva medicinal, utilizada em diversos fins, no tratamento de feridas e inflamações, como repelente natural de insetos, antiséptico, nos fazem perguntar se, de fato, ela não seria uma cura para os males do país...

A preocupação dos críticos dos biocombustíveis é a criação dos grandes "desertos verdes", quando a monocultura pode não apenas expulsar as outras culturas, como reduzir a produção de alimentos e facilitar a concentração de terras, o que sem dúvida agravaria ainda mais os muitos problemas do campo no Haiti. De outro lado, há além da produção do biocombustível, os resíduos quando aplicados sobre biodigestores produzem gás, que pode ser utilizado para a geração de energia elétrica, um dos grande problemas do país. Panacéia?

A sabedoria dos médsin fèyi (médicos das folhas) e dos herdeiros dos conhecimentos tradicionais do vodu que cultuam este arbusto como um repositório de Ayizan, além dos grandes Mapous, quase extintos, que são a morada de Loco Atissou, provocam uma reflexão sobre o lugar das plantas e vegetais nas religiões tradicionais. O vodu é uma religião que cultua a natureza, e cada vegetal, cada mata é uma habitasyon de uma divindade, de um lôa, que deve ser preservado. Tal e qual o Brasil, onde as religiões tradicionais, afro-brasileiras e indígenas estão na vanguarda da luta pela preservação, aqui no Haiti o vodu pode ser o lugar deste despertar para a preservação dos mapous, da busca de alternativas para um desenvolvimento sustentável do Haiti.

Abraços a todos,

Ansioso pela grande final, a terceira...


quarta-feira, 22 de abril de 2009

Casa abandonada...

Quero me desculpar com todas as pessoas que vinham postando comentários no meu blog... A verdade é que a casa andou meio abandonada...

É sempre meio difícil admitir certos momentos de esterilidade ou o simples fato de estar cansado de chover no molhado, de repetir as fórmulas. Quando retornei ao país no início do mês de fevereiro, estava realmente vivendo um momento novo, uma espécie de "reentrada" na atmosfera, o que equivale a dizer que me sentia como um astronauta que voltava ao mundo. Estranha relação que desenvolvi com o Haiti. Minha casa, meu país, minha vida e minhas coisas estão no Brasil. No entanto, parece que o ar leve, a atmosfera rarefeita das férias no Brasil, parece que minha ida ao Brasil foi como uma viagem ao espaço. Voltar então ao Haiti foi voltar ao mundo real, ao planeta terra.

E foi exatamente esse o sentido da minha primeira postagem quando voltei: o choque de realidade que o Haiti provoca.

Agora, pouco mais de dois dias após a postagem sobre as eleições, me dou conta disto: como o Haiti tem sido revelador na medida em que expõe coisas que não nos parecem óbvias à primeira vista.

Incomodou-me fortemente uma conversa com um outro observador que chegou a afirmar que "é melhor haver eleições ruins que não haver eleição alguma". Fiquei pensando se de fato a tal "comunidade internacional", tão ciosa dos rumos democráticos do "mundo livre", pensa desta maneira. Sim, porque volta e meia ouço aqueles que dizem que em Cuba "não há liberdade, não há eleições livres", pergunto: "houve, de fato, eleições livres no Haiti?". Ou ainda, como será que têm sido feitas as eleições no Iraque ou no Afeganistão? Será que elas são "livres"? É claro que os mais apressados dizem que Chávez é um ditador... Sim, talvez, mas será que as eleições do Haiti foram "mais democráticas" que qualquer pleito realizado na Venezuela nos últimos 10 (dez) anos? Não creio... No mínimo, estas eleições que fazem de Chávez um "ditador populista" foram mais concorridas que a esvaziada eleição para o senado do último domingo...

Será que a democracia, tão cara ao nosso mundo ocidental, se resume a isso? Fazer eleições ainda que pouco representativas e absolutamente distantes dos anseios populares.

Minha experiência neste país têm me mostrado um dado interessante: são inúmeras as organizações populares, os grupos chamados de "kombit" ou "têt ansanm", que visam organizar as pessoas em torno de idéias difusas sobre desenvolvimento. O fato é que em Jacmel, em Cité Soleil e Port au Prince, conhecemos (eu e outros colegas antropólogos que aqui estiveram) diversas organizações populares de caráter mais variado possível: trabalhadores rurais, religiosos, organizações de mulheres, organizações voltadas à educação. No entanto, ao se realizar uma eleição nenhuma destas organizações pareceu estar ligada a algumas candidatura, nenhuma delas se concretizou em grupos de interesse, nenhuma delas esteve ligada a partido ou organização política formal, que estivesse envolvida no processo eleitoral.

Como disse na postagem anterior, uma das reclamações foi exatamente que os candidatos a senador não possuíam nenhuma base política junto às populações.

Em contrapartida, os partidos políticos não parecem ter muita representatividade, isso parece ainda mais estranho, se nos dermos conta do número de intelectuais nacionais, como a própria primeira ministra Michelle Pierre Louis, que nunca fez parte de nenhum grupo político ou partido. Conversando com alguns intelectuais importantes do país, percebo que nenhum deles faz parte ou tem interesse de organizar-se em partidos políticos, embora estejam constantemente ocupando espaço na imprensa e na vida pública.

Qual seria então o vazio, o hiato que existe entre sociedade civil, estado, intelectuais, partidos, etc. e especialmente, o "povo" em geral?

Não posso dizer, mas percebo, de maneira ainda muito "naïf", que não parece haver interesse em resolver esse hiato, em preencher tal vazio. A presença da Minustah aqui dá uma sensação de estabilidade, que pode durar infinitamente, enquanto essa missão aqui permanecer. A ação da "comunidade internacional" e das ONGS mantém um funcionamento mínimo das coisas, que pode prescindir do Estado e a cooperação internacional completa o quadro, fazendo funcionar esse planetário, permitindo um falso equilíbrio entre forças díspares e desencontradas.

Aliás, uso provocativamente aspas para falar do povo, esta entidade abstrata e disforme da qual muitas pessoas daqui pensam não fazer parte, e por quem nós "blancs" fazemos todos os nossos esforços.

É no meio deste "povo" que ouço algumas vozes dissonantes pedir a volta de "Titid". Ouço-os dizer que este era "o único a se preocupar conosco".

E assim voltamos ao início ou à postagem anterior: se Aristide desenvolveu uma relação perniciosa com a massa e com isso tornou impossível reorganizar o espaço político em outros termos, qual seria a possibilidade de estabelecer, de fato, uma prática política democrática e popular no país? Há saída com a realização de eleições deste tipo?

Prepara-se a realização de um segundo turno das eleições no mês de junho... Será possível isso ou veremos novamente os mesmo erros serem cometidos?

Com a palavra a "comunidade internacional"?

Alguns me perguntarão, "por que não com a palavra o povo haitiano"?

Respondo: Me parece que o povo haitiano já deu a sua resposta sobre estas eleições...


Abraços

domingo, 19 de abril de 2009

Eleições no Haiti - Abril de 2009






“Fraude Eleitoral”, ou a minha experiência como Observador Internacional

Em primeiro lugar, nem sei se estou autorizado a expor as idéias que coloco aqui, mas ainda assim correrei o risco de expor a minha opinião sincera, para além de posições oficiais que tenha a defender, como sempre fiz aqui neste blog. Sempre pautei o lugar deste blog em minha temporada aqui no Haiti como um espaço livre das constrições do papel de intelectual acadêmico, bem como de qualquer relação com a presença brasileira no Haiti nos mais diversos níveis. Não quero também dramatizar o quadro, dizendo que estou fazendo algo contra a lei ou passível de censura. Pelo contrário, quero apenas deixar claro que não estou falando oficialmente, mas não posso me furtar do compromisso de falar daquilo que presenciei, passemos portanto ao que interessa aqui, sem mais delongas.


O título desta postagem é de fato uma provocação. A palavra “fraude” aparece entre aspas, porque há sempre um entendimento de que “fraude eleitoral” seja um desvio nas regras de um procedimento legal aprovado, em outras palavras adotei o significado estrito de fraude que ora exponho, segundo o Dicionário Houaiss fraude é qualquer ato ardiloso, enganoso, de má fé com o intuito de ludibriar outrem ou de não cumpri determinado dever(...) ver tb. sinonímia de ardil e mentira (...) ver (...) antonímia de verdade. A fraude eleitoral aqui neste caso não se trata de um desvio procedimental, mas de fato de que as eleições senatoriais que se realizaram no Haiti neste domingo, dia 19 de abril de 2009, são uma mentira, um ardil, um ato enganoso que visa ludibriar outrem.


Exponho a minha visão dos fatos que pode contrariar o que alguns jornais virão dizer, que “a despeito de alguns incidentes isolados, o pleito tenha ocorrido dentro da normalidade democrática e num clima de respeito às leis”. É possível que se diga isso e, de fato, isso não contraria demais a verdade, não fosse uma série de movimentos que antecederam o presente processo eleitoral, que maculam qualquer idéia de democracia e de justiça, que ferem os princípios liberais-democráticos tão caros à cosmologia ocidental, que parecem que aqui no Haiti chegaram ao paroxismo de sua mentira.


Retorno um pouco no tempo para que possamos discutir de fato como manobras “democráticas” e de caráter “legalista” roubaram deste pleito o mínimo de legitimidade que ele pudesse ter. Em primeiro lugar, as divisões e problemas internos da maior força política do país, o Fanmi Lavalas, partido que dá sustentação ao deposto presidente Jean Bertrand Aristide, seu principal líder, provocaram a apresentação por parte deste grupo político de três listas de candidatos diferentes, o que impediu o registro de suas candidaturas para uma participação nestas eleições senatoriais. Explicando melhor, seria como se o PMDB apresentasse três listas de candidatos diferentes, uma da facção governista, outra da facção de oposição e outra de uma terceira, que se classificaria como independente. Como a lei eleitoral brasileira não permita isso, uma das três listas seria aprovada ou a participação do partido seria negada, e o partido não poderia apresentar candidatos. É claro que tal impasse produziria uma crise política sem precedentes no país, e uma eleição que deixasse de fora aquele que se supõe o maior partido político do país geraria infinitas distorções no quadro eleitoral.


Do ponto de vista legal, no entanto, não haveria nada demais em negar tal participação, posto que fosse uma flagrante violação da lei eleitoral. No entanto, a política é uma arte, não no sentido da tradição platônica de um conjunto racional de técnicas visando um fim prático, mas no sentido aristotélico, que se opõe à ciência, uma habilidade particular de produzir um conhecimento não necessariamente aplicado. Em outras palavras, as artes da política nem sempre podem e devem se submeter ao legalismo exagerado, mas considerar os diversos aspectos envolvidos em uma questão: a “fragilidade” da democracia no Haiti não deveria permitir que a força política de maior apelo e expressão popular ficasse de fora de nenhum processo político, sobretudo de um processo eleitoral, sob pena de deslegitimar quaisquer atos que se realizem.


Retirar o Lavalas de Aristide da eleição é negar a possibilidade de um processo político verdadeiramente democrático no Haiti. Qualquer explicação de caráter legal para isto reforça a mentira e a fraude da democracia no Haiti. Sem Lavalas e Aristide não há possibilidade de produzir qualquer transformação política séria no país. Não sou defensor do ex-presidente Aristide, pelo contrário, aqui neste mesmo blog sempre expus a minha percepção sobre as suas ambiguidades e seu caráter (com a licença do termo) “populista”. Porém, também nunca ousei aqui negar o valor e a importância de sua popularidade junto às massas dos bairros populares e favelas do Haiti. E reconhecendo isso, penso que a comunidade internacional ao aceitar a ausência do Lavalas na eleição cometeu um erro fatal: deslegitimou o processo eleitoral que era deflagrado com o registro das candidaturas.


Durante esta semana circularam em diversos lugares do país, sobretudo nas regiões onde o Lavalas seria a maior força política, uma série de panfletos (foto) com ameaças de violência contra quem participasse do processo eleitoral. O Lavalas realmente estava organizando suas bases políticas para enfraquecer o processo eleitoral, inclusive através de declarações atribuídas a Aristide de que estas eleições não eram legítimas e que se fizesse neste dia uma jornada de reflexão junto às famílias, que não saíssem às ruas para votar, que permanecessem em suas casas refletindo sobre os rumos da democracia e da política no Haiti. De fato, a operação que seria deflagrada pelo Lavalas chamava-se Bay lari la blanch (traduzido “Deixar as ruas vazias”), e tal nome foi apropriado pelos responsáveis por supostos panfletos que ameaçavam de morte qualquer um que saísse às ruas para participar da eleição. A principal recomendação era que as pessoas colocassem seus nomes nas solas dos sapatos, para que em caso de morte fossem reconhecidas.


Conversando com algumas pessoas durante a semana, perguntei por que muitos não iriam votar. A maioria afirmava que não acreditava nos políticos, e sendo o voto facultativo, estes preferiam ficar em casa no domingo, sem sair às ruas. Alguns falaram das ameaças em seus bairros, locais onde o Lavalas seria a força majoritária e que, portanto, não era conveniente participar da eleição. Esperava, no entanto, que no domingo o quadro fosse diferente, pelo menos entre aqueles que se alistaram para votar. Ao ouvir o rádio pela manhã, percebi que muitas pessoas não sabiam onde seriam seus locais de votação e, para piorar, houve a informação de que os tap taps e caminhonetes não poderiam circular no domingo da eleição, e as motocicletas foram interditadas de circular na noite de sábado. Logo, as pessoas além de não saber onde votar, não havia meios de transportes disponíveis para se deslocar rumo às suas seções eleitorais.


Não bastasse isso tudo, o presidente do país, René Garcia Preval, às vésperas da eleição, deu uma declaração de que os cidadãos que não quisessem ir votar tinham este direito e que participaria de eleição quem quisesse. Tal declaração não seria problema, se não fosse Preval o Supremo Mandatário da Nação, e não desse uma declaração que deslegitimava o processo eleitoral que se realizaria no domingo. Embora a Primeira Ministra Michelle Pierre-Louis tenha reforçado a importância da participação nas eleições, o estrago já estava feito: nem mesmo os políticos do país acreditam no papel do processo eleitoral.


Tudo isso poderiam ser ilações de um observador distante dos fatos, que estaria tirando conclusões a partir de suposições e idéias distantes da realidade. Porém, ao sair à rua numa viatura da Embaixada do Brasil no Haiti, na condição de observador internacional, tive a oportunidade de falar diretamente com a população envolvida na eleição, falei com pessoas que atuavam como mesários, chefes de seção e, especialmente, com eleitores (ou “não eleitores”) presentes nestas seções eleitorais.


Na primeira ida a uma seção eleitoral em um prédio onde funciona oanexo da previdência social e uma unidade da Universidade do Estado, no Champ Mars, fiz algumas perguntas, e descobri que uma seção eleitoral tinha apenas 07 (sete) eleitores inscritos. Neste local pude ainda ver (e fotografar) uma cédula eleitoral. As urnas são transparentes e pode ser visto quantos votos há no seu interior. Algumas pessoas me pediram dinheiro e fizeram piadas e gozações com o grupo de blancs ali presente.


Fomos então à Faculdade de Medicina, onde estavam concentradas outras zonas eleitorais, lá conversei com mesários também, e foi lá que descobri que os mesários não estão inscritos para votar e, a maioria deles está trabalhando na eleição por conta do pagamento que foi oferecido aqueles que trabalhassem na eleição. Só então entendi porque algumas pessoas me interrogaram “porque eu não ofereci este trabalho para eles”, ainda que lhes explicasse que estava como voluntário, que aceitara um convite do Embaixador. Nesta seção, no entanto, havia mais de 400 (quatrocentos) inscritos para votar, porém, por volta das 11:00 h da manhã houvesse apenas duas pessoas comparecido para votar.


De lá saímos para a região de Delmas 19, onde encontramos com uma guarnição militar dos Fuzileiros Navais brasileiros. Dali, nos encaminhamos para a região próxima ao Carrefour Trois Mains, num grande prédio anteriormente abandonado, ocupado, onde nos pilotis há uma grande zona eleitoral. Neste lugar fomos abordados por um sujeito baixinho, irritado, que começou a falar conosco: “Sem Aristide, não há eleição. Sem Lavalas, a eleição é uma mentira. Queremos que Aristide volte. Se ele voltar, o país vai se libertar, o país vai melhorar. Aristide é a vida!”. Fiquei um pouco impressionado, e mais ainda assustado, quando fui percebendo que se formava uma roda à nossa volta. E as pessoas reforçavam o que ele dizia. Um pessoa que estava conosco perguntou, já que ele não acreditava no processo eleitoral, o que estava fazendo ali? Eu não respondi e nem fiz tal pergunta. Achei que ela insultava o homem.


Fomos ainda a duas escolas na região. Os mesmos discursos. Numa delas, porém, fomos abordados, eu e uma colega, por uma repórter da Associated Press. Compreendendo o protocolo, sabendo que o Embaixador era o chefe da equipe, perguntei a um dos seguranças se nós poderíamos falar. Minha colega se recusava a falar, porém, o segurança se antecipou dizendo que não poderíamos falar com a imprensa, que deixássemos o Embaixador falar. Sinceramente, fiquei um pouco aborrecido com aquilo que interpretei como algum tipo de censura, pois realmente o que vira até ali, deslegitimava totalmente o processo eleitoral. Sabia que não devia falar isso, porém, as perguntas da repórter tornavam mais claro aquilo que vinha percebendo: ela perguntou se estávamos cientes de que no Departamento Central as eleições haviam sido canceladas por conta de alguns incidentes e pela total falta de quórum. Saí dali realmente irritado com tudo. Na escola seguinte, permaneci sentado num banco, sem ir às seções eleitorais. Refletindo. Dali iríamos para a cidade de Cabaret, na rota para Gonaives.


Em Cabaret, por fim, mais um encontro interessante com a população. De novo, não entrei nas seções eleitorais, que em todos os lugares pareciam esvaziadas e sem qualquer interesse. Veio em minha direção um homem falando em créole. Boa parte das pessoas não sabe que falo (com relativa fluência) esta língua. Então, começam a falar a esmo, como se eu não lhes compreendesse. No entanto, ao lhes perguntar, sempre em créole, o que estão dizendo, começam a falar, primeiro em francês, que é quando lhes digo que podem falar em sua língua, que sou capaz de compreender. Então as coisas se revelam...


Primeiro, o sujeito começou atacando o processo que excluiu o Lavalas, dizendo que ele era vazio e sem propósito, que não pode haver eleição sem o Lavalas. Mas isto não seria o mais importante, começou a falar dos candidatos a senador, que não eram conhecidos, que vieram à cidade uns poucos dias antes e que não eram conhecidos, por isso, como votar? Logo após, juntou-se um outro homem, mais tranquilo e falando de forma bastante esclarecedora sua posição quanto ao processo eleitoral. Disse que apesar de não ser Lavalas, achava que não podia haver eleição sem este partido, e mais ainda, que a forma que as eleição foi feita, de maneira isolada para senador, não havia qualquer chance de que as pessoas conhecessem os candidatos. Falou que quando as eleições são casadas (majistrat – prefeito, deputados e senadores) há possibilidade das lideranças locais apoiarem candidaturas e, com efeito, este apoio se traduz numa relação de confiança e credibilidade dos candidatos a senador. Ele afirmou que esta eleição “isolada” não podia ter alguma relação entre a população e os candidatos. Depois o primeiro retornou falando de Dessalines, que “somos um povo livre, que o sangue de Dessalines corre em nossas veias”. Isto, no entanto, soou como uma ironia grosseira conosco, os estrangeiros, pois ele se retirava rindo, enquanto falava estas coisas. Um outro sujeito ainda insistia sobre o Lavalas, dizendo que “Aristide deve voltar”.


A conclusão de toda esta primeira experiência como “Observador Internacional” foi impressionante. Em primeiro lugar, estas eleições são realmente uma armadilha cruel, cujo resultado, seja ele qual for, sempre reforçará estigmas e visões distorcidas sobre o Haiti: “os haitianos não participam da política, abandonam o país a própria sorte, e não tomam para si o dever de transformar a sua vida”. Esta é uma mentira, que este processo eleitoral não sustenta. Pelo contrário, estas eleições foram feitas desde o seu início para fracassar, interesses diversos tanto das forças políticas locais – entre elas, curiosamente do próprio Lavalas, por razões distintas, da comunidade internacional que se esmera em reforçar a farsa democrática ao redor do mundo, da ONU e OEA, que mantém o “Circo Haiti” de pé, fazendo o seu espetáculo de “manutenção da paz mundial”, enfim, das aspirações do chamado “Mundo Livre” que precisa da “democracia” para manter a ordem no mundo.


Em segundo lugar, as causas endógenas: o povo haitiano não participa do processo. Os partidos pouco representam no panorama político, não há representatividade, a despeito de haver dezenas de organizações políticas espalhadas por diversos lugares do país. E mesmo os indivíduos, atores políticos isolados como o Presidente Preval, o ex-primeiro ministro Alexis, figuras como o Senador Boulos, a ex-candidata à Presidência Mirlande Manigat também tem pouca representatividade, senão em setores ou grupos isolados. A única força política que tem representatividade do ponto de vista coletivo é o Lavalas e o único ator individual representativo é o próprio Aristide. Fora disso é necessária uma longa construção e um amplo debate. E por isso, mais uma vez, será penalizado o povo haitiano, “que não está habituado às instituições democráticas, que não tem os saudáveis hábitos do voto, da organização política, dos partidos organizados, etc., e que por isso não está pronto para se dirigir a si mesmo e aos seus destinos”. Caímos novamente no silogismo cruel e estigmatizante que sempre coloca o Haiti no lugar da barbárie, da recusa do mundo ocidental livre.

Por fim, reitero aqui a minha percepção de que o Haiti nem de longe é este inferno. Os erros são do governo local e talvez do próprio povo. Estes erros, porém, são também da chamada comunidade internacional que precisa legitimar o Haiti da forma que mais lhes interessa: um lugar onde ela precisa atuar e reforçar a sua importância e seu papel na defesa do chamado mundo livre. Essa é a grande fraude eleitoral que está em jogo.

Abraços a todos, feliz da vida com o Mengão na final do Carioca, quem sabe, rumo ao Penta-Tri.



P.S.: Observadores Internacionais, tal como os duendes, existem... O importante é você acreditar neles...