Grandes espíritos não montam em maus cavalos - Provérbio Haitiano extraído da epígrafe do livro "Divine Horsemen" de Maya Deren
Há duas semanas atrás, antes de estourarem os protestos e as tensões em PaP, estive na cidade circulando por áreas que jamais fora antes. Nas duas vezes que estive aqui antes, apenas numa delas passei por fora de La Saline, para me dirigir ao Marche Croix des Bossales. No entanto, desta vez pude ir à Cité Soleil e sua gente. Desta vez também pude ir aos mercados do centro de PaP, o próprio Croix des Bossales, la Polite, Têt Boeuf e Marche en Fer. Nestes últimos pude ir desta vez com Herold.
Herold é uma daquelas figuras inesquecíveis, que no Brasil certamente seria um diretor de harmonia ou compositor de uma escola de samba, partideiro, militante, pessoa querida por todos na vizinhança, respeitado pelos velhos, adorado pelas crianças, enfim, essas figuras míticas que conhecemos fazendo pesquisa de campo em antropologia. Herold é o cara...
Sabe o que é sair pelas vizinhanças falando com todo mundo de Carrefour Feuilles, por Bel Air ou La Saline, favela onde ele nasceu, se criou e saiu de lá para se tornar uma figura que opera neste nebuloso meio campo entre pesquisadores, cooperantes, agências e demais figuras que estão agora e sempre estiveram no Haiti.
Formado em Psicologia Social, Herold fez questão de, após nosso passeio pelos mercados, sabendo de meu interesse no vodu, levar-me ao Bureau de Ethnologie e me apresentar lá como um pesquisador brasileiro, interessado no vodu. Disse-me que ele mesmo é um serviteur dos loas. E foi essa a mediação que me levou a entrar fundo em La Saline e conhecer alguns ougáns, mambos e hounsis (servidores dos loas) de lá.
Havíamos saído pelos mercados na segunda e terça feira de manhã. Nestes dois dias conversamos muito e marcamos encontro para domingo. Saí de Jacmel para PaP bem cedo, quase madrugada. Queria chegar na hora. Cheguei cedo ao Oloffson, onde marcamos nosso encontro, tomei um café da manhã reforçado, pois não comera nada antes de viajar. Pontualmente, às 11 da manhã ele apareceu no estacionamento do hotel, cercado das crianças de Bel Air. Parou para falar com uma francesa que trabalha em alguma agência internacional, enquanto os moleques se penduravam nos seus braços. Subiu, tomou um copo d'água, flertando com a garçonete do Oloffson e seguimos para a rua.
Na rua, paramos várias vezes para ele falar com gente da vizinhança, moleques, homens adultos, senhoras que vendem mercadorias nas ruas. Como disse a ele que não tinha um carro, pegamos um tap tap.
Antes de entrarmos nas vielas estreitas e sujas de La Saline, ele fez questão de cada vez que passávamos pelos "chefes do local" me apresentar e dizer o que eu estava fazendo lá. Para cada um, um sorriso, uma piada, uma gentileza. Fomos direto procurar Samba Papito, um músico e líder comunitário de La Saline que havia conhecido há uma semana. Herold caminha pelas vielas a passos largos, pára de repente e fala com alguém. Caminhamos mais um pouco, ele pára mais adiante para me dizer: "Este é fulano e faz isso assim, assim", "este você precisa saber quem é, para procurar mais tarde para a sua pesquisa", etc.
Encontramos Samba Papito, que almoçava um prato de arroz e feijão, com um molho. Ele juntou-se a nós para nos levar para mais dentro ainda da favela. Dali chegamos num inusitado sítio dentro da confusão da favela. Uma espécie de quintal, com uma árvore, com panos e objetos amarrados. Estava claro que aquela árvore, naquele lugar, não era uma árvore comum. As pessoas da casa se juntaram para buscar cadeiras e sentamos para conversar. Ao lado havia um poço, coisa rara nestas favelas. Ali, disseram-me, morava o esprit que montava a jovem Nadine, o mesmo que montou durante anos sua mãe, até que esta morresse e que foi herdado por Nadine. Não era nem uma árvore, nem um poço comuns. A água esverdeada do poço parecia esconder mistérios que nem comecei ainda a desvendar. Aliás, um dos nomes dados aos loas é exatamente este: mistérios.
Depois fomos procurar um outro jovem ougán. Herold sempre me apresentava fazendo várias (boas) recomendações, de que fossem atenciosos comigo. Este segundo encontro foi revelador. Sobretudo pelas coisas que se desenrolaram ao longo da semana, com os protestos. Este jovem ougán, Michel, estava acompanhado de outros jovens, que estavam intrigados com minha presença. O que quereria um brasileiro ali? Expliquei várias vezes enquanto conversávamos, mas isto não resolvia. Até que disse que eles poderiam colocar questões para mim, que pergutassem o que quisesse. Sumiram as desconfianças e sorrisos apareceram nos rostos quando disse que não era do governo brasileiro, nem da Minustah e nem estava ali em uma missão especial. Estava por minha conta, recebia uma bolsa para estudar um tema que foi de minha escolha, e tinha autonomia perante a embaixada ou qualquer agência, exceto à Capes, que financiava a minha pesquisa, mas que ela não interferia em absolutamente nada.
Daí em diante falaram muito, falaram das perseguições que o vodu sofrera ao longo da história e de seu papel na independência do país. Falaram com orgulho de Bois Caiman, o sacrifício realizado por Buckman e que deflagrou a luta de independência, e que os espíritos ancestrais estavam sempre lutando para libertar o Haiti. Falaram da fome e que os espíritos não podem resolvê-la, mas que dão força para que eles lutem para enfrentá-la. Foi uma conversa emocionante, pois era a primeira vez que via voduissants falarem numa perspectiva de luta política e de enfrentamento através de sua religião, das perseguições e dos novos inimigos, os pentecostais que perseguiam o vodu. Convidaram-me então para uma festa que vai acontecer no fim do mês de maio. Agradeci e disse que faria questão de estar lá.
Fiquei longo tempo com eles até Herold voltar, para me levar a um outro jovem hounsi e seu tio, que me falaram de várias coisas. Falaram sobretudo que trabalhavam para o bem, mas se necessário, conheciam as artes necessárias para fazer malefícios. Mas que só faziam isso como contra-magia, contra os bokô (feiticeiros). Depois o tio me mostrou que com o asson, uma cabaça coberta com miçangas e um pequeno sino, dois ougáns e/ou os espíritos podem se comunicar entre si. Convidaram-me também para uma cerimônia no fim de abril, que fariam para alimentar o loa que monta o jovem Jean.
Saímos de La Saline conversando sobre muitas coisas, Herold esclarecia algumas dúvidas e fazias certas observações que me deixavam intrigado, mas que abriam novos interesses e questões. No fim, disse-lhe que gostaria de entrevistá-lo, ao que respondeu que faria com o maior prazer.
Despedimo-nos, ele seguiu para Carrefour Feuilles e eu fui voltei para Jacmel animadíssimo, pois combinamos que voltaria na semana seguinte para visitar alguns oufós e voduissants em Bel Air. Infelizmente, a semana quente em PaP impediu que nos encontrássemos, mas fica aberta esta nova e excitante possibilidade de pesquisa.
Abraços
Zé