"Nou pa pè, nou pap jann pè!" - Grito ouvido na manifestação em Jacmel, que significa "Nós não temos medo, nós jamais teremos medo!".
Estou bem, ainda um pouco preocupado, mas bem... Vamos ver o que virá. Desde já, esta é uma das experiências mais incríveis da minha vida, e o simples fato de estar aqui, com ou sem pesquisa de doutorado, já terá valido a pena.
Um abraço a todos, Paz!
Zé
"Preferimos morrer pelas balas à morrer de fome" - Fala de um manifestante de Port au Prince
Hoje, pela primeira vez desde novembro 2006, quando cheguei por aqui da primeira vez vi manifestações de rua que chegavam muito próximas da imagem que as pessoas fazem daqui. Hoje, pela primeira vez estive diante de manifestações e ações da população local face ao quadro político do país, de uma forma que ainda não conhecia pessoalmente. Ainda que de muito longe de PaP, onde as coisas assumiram realmente uma proporção intensa e violenta, exatamente no olho do furacão, as manifestações aqui tiveram também uma face um tanto assustadora, apesar de não ter havido confrontos.
O pior de tudo por aqui é saber que as notícias que chegam são as mesmas que todos recebem no Brasil. São poucas as informações. Tudo o que sei é que a situação está quente em PaP, as pessoas tentaram invadir o Palais National, houve confrontos entre manifestantes e as tropas das Minustah. Aliás, a propósito disto, algumas pessoas ficam preocupadas com as ações dos contingentes brasileiros por aqui. Podem ter certeza que nossos soldados, pelo menos pelas informações que temos, são os menos "violentos", muito embora quando julguem necessário, utilizem demasiada força. Os contingentes militares mais conhecidos pelo abuso no uso da força são exatamente os jordanianos e as tropas do Sri Lanka, justamente os que estão lotados em Léogane e Jacmel, de onde vos escrevo.
No entanto, hoje os soldados do Sri Lanka deram uma demonstração de frieza e tranquilidade diante de uma situação realmente tensa.
Em virtude das muitas notícias do dia anterior e da possibilidade de haver manifestações no centro de Jacmel, já havia entre nós a intenção de ficar em casa. Digo nós, porque no momento formamos uma equipe de pesquisadores do Brasil aqui em Jacmel, formada pelo meu orientador, Federico Neiburg, a recém doutora pelo Museu Nacional, Natacha Nicaise, e os estudantes de mestrado Flávia Dalmaso, Pedro Braun e Felipe Evangelista. Junta-se a nós o estudante de sociologia da Université d'Etat d'Haïti, da Faculdades de Ciências Humanas (FASCH), William Jean, fluente em português, que vem nos ajudando com o créole com aulas e algumas vezes como intérprete. Mas assim mesmo, de manhã cedo, saíram para a cidade Federico, Natacha, William e Felipe. Por volta das 9 h da manhã, recebi uma ligação no celular de Federico, dizendo que não devíamos descer para a cidade, pois havia muita confusão e correria. As manifestações que haviam agitado a capital do país no dia anterior chegaram à Jacmel.
Na verdade, já havíamos presenciado uma manifestação em Canapé Vert, Port au Prince, quando descíamos para visitar o centro de PaP, a zona de Bel Air, La Saline, os mercados Croix de Bossales, Polite e Têt Bouef. E realmente ficamos assustados com a multidão vindo em direção a nós, ao carro que estávamos, segurando ramos de árvores, gritando contra a fome. Seguimos descendo pela Rue Lamartinière comentando a força do movimento, a tensão que sentimos...
Voltando ao que falava antes, já em Jacmel, os que ficamos em casa, Pedro, Flávia e eu, naturalmente ficamos assustados, um pouco preocupados com o que poderia estar acontecendo. Pouco tempo depois eles voltaram, um pouco tensos, mas passando calma para nós. A coisa estava estranha, mas como disse, longe de ser como está em Port au Prince. Ficamos em casa, esperando passar o tempo, enquanto conversava com Wisler, que chegou com o pessoal. Wisler é um haitiano que conheci no ônibus de PaP para Jacmel. Muito inteligente e articulado, Wisler foi bastante simpático comigo, e hoje, quando passou lá em casa, falou de sua família, principalmente do avô, que é ougan e do tio, que depois de um AVC do avô, passou a cuidar da vida espiritual familiar.
Saímos enfim à rua, para ver o que estava acontecendo na Av. Barranquilla, muita gente passando e um ônibus atravessado, na avenida, a cerca de 100 m da esquina do Ballade, com a rua onde fica a minha casa. Voltei em casa, para me vestir e para sair para comer algo. Decidimos que íamos almoçar todos no Ballade, e como fiquei para trás, fui o último a chegar, quando vi os carros da Minustah (Missão das Nações Unidas de estabilização do Haiti), as tropas da ONU, próximas ao ônibus atravessado, parecendo que queriam tirá-lo da rota, para garantir a circulação.
Foi neste momento, pouco depois de entrar no Ballade que comecei a ouvir cada vez mais forte os gritos dos manifestantes: Nou pa pè, nou pap jann pè! Num claro desafio às tropas que continham manifestantes vindos da direção de Cayes Jacmel e tentavam tirar da rota o ônibus. Confesso que fiquei muito tenso ante um eminente conflito entre as tropas e manifestantes. Estes vinham correndo e reduziram o ritmo da marcha exatamente a cem metros do local onde estavam as tropas. E nós todos, dentro do Ballade, que fechava as portas para evitar que os manifestantes pudessem fazer algo. O responsável pela porta dizia para entrarmos correndo. Uma das meninas que trabalham lá, diziam que havia um local melhor para observar, uma espécie de varanda no alto.
Dali vimos as pessoas pegando pedras, restos de objetos de metal, carros, madeiras. Alguns vinham com pneus, e gritavam agitados. Parecia mesmo que o confronto ia acontecer. A esta altura, os soldados já haviam retirado da rua o ônibus atravessado e se posicionaram no acostamento, permitindo que os manifestantes passassem. Nossa tensão era enorme, pois de onde estávamos não podíamos ver exatamente como estavam dispostos os soldados e nem o que de fato estava acontecendo.
Estranhamente, apesar de todo o clima de violência e tensão, havia crianças entre os manifestantes, o que causava espécie. Apesar da retórica de enfrentamento, de toda a tensão no ar, muitas mulheres e crianças. Os manifestantes passaram. As tropas ficaram lá, esperando e logo depois, se retiraram, pegando uma rota por dentro da zona rural, evitando a Barranquilla. Ficamos um tanto aliviados por um tempo, mas logo após ouvimos os gritos de novo, com os manifestantes passando de volta, descendo rumo à cidade. Quando parei para olhar por uma grade, um dos manifestantes disse, de forma agressiva, algo que entendi como: não fique nos olhando... Saí, e voltei para a mesa.
Pouco depois silêncio. A rua coberta de pedras e escombros, cacos de vidro quebrados. Gente passando, indo e voltando...
Ainda não posso dizer nada sobre o que aconteceu, apenas registrar de maneira muito impressionistas aquilo que vi.
Sabemos que a foi a alta dos preços, especialmente do arroz, básico na dieta do país, que provocou essa reação violenta. Sabemos também que foi a leniência do governo, sua longa inação que levou às coisas a esta situação. Não quero fazer nenhum juízo de valor, mas confesso que depois daquele encontro com Preval, muitas coisas nas ações do povo nestes dois dias fazem totalmente sentido.
Ao mesmo tempo, é justamente a falta de meios que provoca esta inação. É estranho pensar numa nação soberana sob ocupação militar. Uma nação soberana que não tem um exército nacional, que não "detém o monopólio legítimo da violência", confiando este às forças estrangeiras da ONU. Uma nação cujos projetos para educação, saúde e coisas básicas dependem de modo extremo da cooperação internacional. Um Estado que não tem nenhum poder de definir a sua política econômica, que não tem recursos próprios para gerir a vida do país.
Estou bem, ainda um pouco preocupado, mas bem... Vamos ver o que virá. Desde já, esta é uma das experiências mais incríveis da minha vida, e o simples fato de estar aqui, com ou sem pesquisa de doutorado, já terá valido a pena.
Um abraço a todos, Paz!
Zé
3 comentários:
Olá, li algumas de seus textos e pensei em muitas frases,poesias e historias sobre povos em conflito, mas nada se iguala ao estar lá. Ninguem pode imaginar,se não viveu. E como somos humanista, nos doi muito não poder intervir ou resolver as situações. Ms vc tambem,agora, também é parte disso.
beijos, Dodoya
Susto, mano. Medo. Mas, também, emoção com sua coragem de estar aí. Fica em paz, sempre nos dando notícias suas e das aventuras desse "Estado de Alerta" em que você se encontra.
Beijos.
Mana.
Oi,
Meu nome é Tatiana Molina sou jornalista e atualmente estou preparando minha monografia de pós-graduação em Relações Internacionais. Meu tema será sobre Missão de Paz e gostaria de ir para o Haiti ver pessoalmente o trabalho da nossa Forças Armadas.
Encontrei sem querer seu blog e gostei muito. Muito bom saber mais sobre o país e seu dia-a-dia por alguém que está aí.
Tenho uma dica a te pedir: quem da Embaixada do Brasil no Haiti eu poderia procurar para fazer um contato?
Agradeço sua resposta e deixo meu e-mail para contato tatianamolina@ig.com.br
Abraço
e boa sorte em sua pesquisa
Tatiana
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