quinta-feira, 13 de março de 2008




O corpo, a morte leva
A voz some na brisa
A dor sobe para as trevas
O nome, a obra imortaliza
Súplica, João Nogueira e Paulo César Pinheiro



Para meu amigo Guilherme Sá, que pediu que eu falasse do vodu...



Uma das coisas que mais faço desde que fui morar em Jacmel é caminhar. Minha casa fica a cerca de 3 km do centro da vila de Jacmel, logo, qualquer coisa que tenho que fazer, com exceção de comer os deliciosos akra malanga e beber a minha boa Prestige, que faço no Ballade, o bar restaurante na esquina de minha casa, sou obrigado a andar essa distância para fazê-la.


Como tenho dito, há um problema crônico no transporte público no Haiti. Não há ônibus formalmente instituídos, tal como conhecemo-los, os táxis idem e, em Jacmel, a grande força do transporte público são os moto-táxis. Já vi algumas vezes um dois (talvez o mesmo carro?) circulando com o sinal de “táxi” sobre ele, pelas ruas do centro de Jacmel. Mas ainda não faço a mínima idéia de como ele funciona. E como tenho, ou pelo menos tinha, pavor de andar de motocicleta, o que mais faço é andar. As caminhonetes passam sempre lotadas, mas já utilizei algumas vezes. O bom é conseguir subir nelas no centro e de lá seguir “à kote Ballade là” pelo preço de 2 dólares haitianos (10 gourdes). Porém, o meio de transporte mais rápido é mesmo a motocicleta.


Sempre tive pânico de motocicleta... Desde as queimaduras na parte interior da batata da perna que as meninas assanhadas da minha adolescência tinham até os tombos terríveis que alguns amigos tomaram, o pior deles o que meu amigaço Beto tomou em 1992, quando passou 6 meses com os dois braços e uma perna inteira engessados, ou do Marcelo que praticamente perdeu a sola do pé, e ainda meu primo Leandro, que fraturou as duas pernas e viu seu amigo, que ia de carona, morrer num acidente com moto... Enfim, motocicletas sempre representaram para mim um perigo permanente... Mas desde que cheguei à Jacmel, tenho sido sistematicamente obrigado a abandonar meu medo e montar em motocicletas e... “kote Ballade là, souplè”.


Enfim, em Jacmel (estou no momento em PaP) faço diariamente longas caminhadas. Especialmente quando acordo (muito) cedo “pou pwomennen nan la campagne”. Saio para fazer algumas caminhadas pelas estradinhas de terra batida que seguem da rua onde moro em direção ao mar. Passeios que rendem belas fotos. Em Jacmel os dias são realmente longos, pois desperto em torno das 6 horas da manhã, quando já há alguma luz. Não perdi, ainda, o hábito de dormir tarde. Então, às vezes vou dormir às 23 horas, ou às vezes mais tarde. Como já disse, não tenho nem internet em casa e nem luz o tempo todo. Normalmente a luz só chega por volta das 18 horas ou pouco antes de escurecer. Então, trabalho enquanto a bateria do laptop agüenta, e depois saio para fazer esses passeios.


Desde a minha primeira viagem ao Haiti e à Jacmel, em especial, comentei que achei impressionante a quantidade de pequenos túmulos ou conjuntos de túmulos próximos às casas, pelos caminhos que passei. Na estrada de PaP à Jacmel, principalmente a partir de Leógane, são inúmeras casas, os “lakou”, conjuntos de casas de famílias ou parentes próximos, onde é possível ver de tão perto os túmulos e as pessoas sentadas fazendo suas coisas normalmente, como se aquilo fosse mais um objeto da casa, um móvel, uma árvore ou, quem sabe, uma pessoa.Vi algumas vezes alguns deles com coroas de flores, vasos e velas acesas, mas sempre cercados de gente e próximos às casas.


Um dos passeios a pé que fiz foi até Cyvadier, uma localidade a cerca de 4 km da minha casa. Lá existe um hotel que tem o mesmo nome da localidade, com uma boa praia e o dono/administrador é um jovem extremamente simpático, onde é possível beber um suco ou uma cerveja gelada. Caminhei bastante neste dia, pois fui também por outras direções, onde poderia ver e fotografar o mar, antes de retomar a Route Barranquilla.


Neste dia o meu espanto com essa proximidade entre os túmulos dos mortos e as pessoas vivas chegou ao seu limite mais extremo, quando vi um grupo de crianças brincando tranqüilas sobre um túmulo com flores ainda frescas. Comecei a pensar nas idéias de poluição que são ensinadas para nós entre estas duas dimensões. Os mundos dos vivos e dos mortos em nossa cultura são radicalmente separados. Mesmo as religiões tratam essa separação de uma maneira muito precisa, estabelecendo limites, por vezes rigorosos entre estas dimensões.


Os restos dos mortos têm um caráter “poluidor” muitas vezes. A presença de um morto é um sinal de perturbação, seja ela visível ou invisível àqueles que crêem. O direito de enterrar os mortos, por exemplo, já foi objeto de conflito no Brasil Colônia com a criação do primeiro cemitério público em Salvador, contra os interesses das ordens religiosas e dos próprios fiéis que acreditavam ter o direito de enterrar os seus mortos nas paróquias e freguesias onde eles viviam, e não num terreno pré-determinado pelas leis públicas (o historiador João José Reis tem um estudo publicado sobre o tema). Mas de qualquer forma, neste caso ao menos, não se tratava de enterrar os seus mortos na própria casa, mas no cemitério da paróquia. Não é pouco significativa essa separação entre os mundos de vivos e mortos no campo das religiões.


Os ritos das mais diversas tradições religiosas estabelecem uma separação física entre estas duas dimensões de uma maneira radical. Mesmo os egípcios, que acreditavam numa existência post-mortem tão importante quanto àquela vivida, a ponto de terem desenvolvido diversas técnicas de conservação do corpo físico dos mortos e nos casos de reis e pessoas ricas, muitas vezes sepultarem junto com o morto suas riquezas materiais e as pessoas mais próximas de seu convívio. Enfim, não vou me alongar muito para dizer o quão estranho me é ver pessoas vivas e túmulos convivendo de forma tão natural como se não houvesse limites entre vivos e mortos.


Não falo nem do ponto de vista religioso, que me interessa particularmente, mas do ponto de vista das relações entre as pessoas. Mesmo o mais incrédulo ateu ou o agnóstico convicto hão de considerar que mortos e vivos não se misturam. Para estes principalmente, pois com o fim da existência física, o que resta ali é carne que vai apodrecer e virar partículas de carbono com o passar dos anos. A pessoa que existiu não existe mais. Mas de qualquer forma, estas pessoas não experimentam estar próximos de túmulos e nem vêem isso como algo natural ou agradável.


Aqui, vivos e mortos vivem num mesmo mundo. O que nos leva ao universo social do vodu. Mortos e vivos formam uma unidade indissolúvel, onde não se trata necessariamente de uma separação entre corpo físico e alma imaterial, mas de uma compreensão sobre a existência humana. As pessoas, no campo conceitual do vodu, são mais do que sua existência física, sendo esta apenas uma das possíveis dimensões da existência. O ser humano, a pessoa, é antes um conceito para além da matéria física da qual ela é feita. Logo, nem mesmo a noção de alma e a dicotomia corpo/alma, podem dar conta deste “conceito”, porque, como insisto não se trata de falar em duas metades, mas de uma unidade conceitual.


Ora, neste sentido, a morte pode não ser um lugar “poluidor”, porque ela passa a “não existir” de fato. Túmulos são apenas sinais de uma existência física que se encerra, mas que permanece constantemente junto dos vivos, que requer destes, atenção e cuidados. Que eventualmente se manifestam sob diversas formas requerendo dos vivos o cumprimento de suas obrigações com os mortos. Os mortos estão presentes o tempo todo e exigem o cumprimento de certas formalidades, não querem ser esquecidos, por isso, podem estar ali, o tempo todo, como alguém que nunca foi embora de fato, ou que deixou algo para que não fosse esquecido.


Quando estive aqui pela primeira vez imaginei que estes pequenos túmulos fossem apenas uma mera coincidência, em função de estarmos no campo, e que as cidades no campo não tivessem cemitérios públicos, como aqueles que vira em Port au Prince, Pétion Ville, Delmas. Porém, a minha surpresa e meu espanto aumentaram no ano passado, quando estive novamente em Jacmel, e circulando por uma área que ainda não conhecia da cidade, vi seu cemitério municipal. A coisa fica ainda mais confusa, se julgasse que as sepulturas no campo fossem túmulos pequenos e humildes, mas já vi grandes jazigos, de famílias “conhecidas” e mesmo o menor dos túmulos, nas mais humilde casa, não é uma cova rasa, marcada apenas com uma cruz. Há sempre uma pequena construção em alvenaria sobre estas sepulturas, indicando um cuidado particular em erguer um túmulo para o morto da família.


Ainda não sei exatamente como caminharão as minhas investigações por aqui, mas certamente estes túmulos e essa onipresença da morte deverão ser objetos de investigação. Mesmo que eu pretendesse me restringir exclusivamente aos aspectos econômicos da religião vodu, estes cuidados com os mortos pressupõem uma série de custos e despesas que são parte importante de uma discussão sobre a economia das religiões.


Bem, espero poder voltar a escrever com mais freqüência para os amigos...



Abraços e saudades






P.S.: Em pânico com o futuro do Fla na Libertadores, mas convencido que o 30° Título Carioca do Flamengo caminha célere... Fé em Deus e em São Judas Tadeu, nosso leal interventor.

3 comentários:

Zé Renato disse...

Aproximações à desconstrução da metafísica?

Na penúltima postagem do blog, quando falei da relação entre vivos e mortos no Haiti, dediquei o texto ao meu amigão Guilherme Sá, com quem sempre tive debates interessantes sobre antropologia, às vezes excessivamente acalorados, quase sempre atravessados por muita provocação e, no fim de tudo, sempre com muito bom humor e gozação mútua. Nem sempre tenho certeza se Guilherme está falando sério comigo ou está me zoando, e vice versa. Enfim, às vezes soa tão pernóstico nosso debate, que só pode ser sacanagem. Mas às vezes não. Às vezes, suas ponderações são um desafio ao pensamento e um estímulo à reflexão. O pior disso é que mesmo quando é uma gozação, permite uma resposta séria, e quando é sério, é claro, sempre há espaço para a piada. Nunca pode ser sério demais.
Mas neste caso específico, resolvi levar demasiado a sério o comentário de Guilherme, que me parece mais sério ainda do que parece. Mesmo que soe pernóstico.
Pois bem, aceita a provocação intelectual de meu bom amigo...
Inicialmente, e de modo provocativo imagino, meu amigo fala em cosmologia. Evitei o termo, talvez pela falta de hábito de utilizá-lo, preferindo utilizar “mundo social”, “universo social”, “campo conceitual”. É interessante, no entanto, pensar a sua apropriação pelas ciências sociais, posto que no âmbito destas tornou-se sinônimo de cosmovisão e, de certo modo, em face do relativismo antropológico, o termo que designava um ramo da física que estuda a formação, sua extensão e as teorias sobre o universo, passa a tratar do reconhecimento de teorias nativas sobre o universo para além da ciência como considerações de ordem cosmológica. Não é esse o centro de minha questão. Cosmologia ou mundo social, dependendo de qual categoria utilizada, têm implicações distintas, e por isso não utilizo o termo.
Bem, relações sociais ou naturais. Vamos de novo à direção de certas ontologias. Aliás, este termo “ontologia” é outro que tenho abjurado com certa freqüência. E neste caso reconheço que tenho medo de falar do que não entendo. Para fugir de certas polêmicas, não enfrento uma discussão mais profunda sobre seu uso. Mas de certo modo, reconheço que não me coloco no debate a partir destes termos “relações sociais” x “relações naturais”. Meu velho amigo tem uma obsessão lévi-straussiana pelo divisor natureza/cultura, ou pela oposição entre natural/social. Eu sou um homem de fé. Tenho meus credos e minhas convicções. Donde, não acredito que nada seja absolutamente natural, posto que a idéia de natureza seja antes uma construção (do intelecto?) do que algo que existe enquanto tal e que é apreendido pelo homem. Ou ainda, o pressuposto da existência de uma natureza que “É” algo, ou que relações “SEJAM” algo, e este algo seja apreensível pelo intelecto estamos diante de um dilema: metafísica ou empirismo radical?
Bem, fugindo de toda essa discussão filosófica que pode não ter fim, acho que as relações SÃO sempre sociais, mesmo quando envolvem entes “naturais”. Neste sentido, os objetos, e aí chegamos aos famosos bonecos vodu, são sociais, porque pressupõe uma relação com um outro sujeito e uma ação social orientada no sentido deste outro sujeito. O boneco é uma representação. E eis aí um problema para os latourianos. Não é um fetiche (no sentido que Latour usa), algo para o qual se transfere uma agência, mas é algo que representa uma outra coisa. O boneco vodu é uma representação de outra pessoa através da qual eu manipulo seu corpo. Isso quebra (pelo menos para mim) todas as teorias “contra representação”. O boneco não é uma pessoa, não é a pessoa. É um objeto que está ligado à pessoa através de traços materiais (cabelo, unhas, pele, etc.) e através qual eu posso agir sobre a pessoa. Mas o boneco não age, as pessoas agem através do boneco e (supostamente) sofrem o sentido desta ação. Mais do que nunca estou convencido de que sejam relações sociais! É mais forte do que eu. É crença...
Neste sentido, o bom e velho Simmel de “A Filosofia do Dinheiro” está aí, forte e poderoso nos falando de um terceiro termo da relação (a velha tríade), que pode se autonomizar (como o dinheiro) e se “desencaixar”, (Giddens) das relações em que ele esteja envolvido, transferindo-se para outros contextos. O boneco vodu não é um “objeto dotado de agência”, mas uma agência através da qual dois atores sociais pode interagir. E aí estamos diante de uma discussão extensa sobre os objetos mágicos, que poderia remontar toda a discussão empreendida por Durkheim em FEVR, passando por Malinowski e discutindo com a teoria maussiana do dom, chegando aos modernosos Gell e Latour. Muito trabalho, né?
Bem, espero ter respondido meu amigo Guilherme.
Ou então ter aberto mais questões...
Abraço

Zé Renato disse...

Obrigado Zé! Maravilha de descrição e de fotos. Boa aproximação à desconstrução da metafísica haitina. Me pergunto se o princípio adotado para interpretação da relação mortos/vivos, ou seja, a não divisão, poderia ser expandido também à relação entre objetos(coisas) e sujeitos(pessoas) na cosmologia vodu... A propósito, estas são relações "sociais" ou "naturais"? Abração.

Cometário postado pelo meu amigo Guilherme Sá, apagado por mim, por incompetência no uso do blog

Zé Renato disse...

Ah, ia esquecendo...
Essa "aproximação à desconstrução da metafísica haitiana" se deve sobretudo à leitura recente de Maya Deren, "Divine Horsemen".
Maya Deren foi uma cineasta que recebeu uma grana da Wenner Gren nos anos 40 para ir ao Haiti fazer um documentário sobre dança e performance e acabou escrevendo uma tese sobre possessão no vodu e dança, orientada por ninguém menos que Gregory Bateson.
O interessante de sua monografia é sobretudo o fato de ter experimentado a iniciação no vodu e a possessão pelos loas.

Abraço