terça-feira, 4 de março de 2008

Sem romantismo




Quando contei, ainda no blog antigo, a minha viagem de tap tap de Jacmel à Port au Prince, imagino que muitas pessoas ficaram encantadas com a possibilidade de viajar em um meio de transporte tão pitoresco e particular. Para quem conheceu, em meados dos anos 80, parecia ser como a viagem de ônibus para o paraíso de Visconde de Mauá. O ônibus velho, onde se misturavam pessoas, animais e cargas, a estrada de terra, sinuosa, cheia de pinguelas e precipícios, um clima de paz, amor e aventura, que fazia de uma viagem precária de quatro horas num ônibus desconfortável numa estrada ruim, uma doce e agradável festa.
É, pode haver certo romantismo e nostalgia no tipo de narrativa que faço, que nos levaria a um lugar mágico, onde o que é na realidade precário e desconfortável se converte numa grande aventura por um mundo novo e desconhecido. A verdade é que encarar rotineiramente tal viagem pode não ser tão romântico assim...
A distância entre Port au Prince e Jacmel não chega a ser superior a 70 km. No entanto, a viagem por este trecho, com muita sorte, pode durar no mínimo 3 horas. Para se ter uma idéia, seria mais ou menos como viajar durante as mesmas três horas para ir do Rio de Janeiro à Petrópolis ou Maricá. Digamos ainda que tal viagem seja feita na véspera de um feriado, por volta das 18:00 horas, no maior pico possível na Ponte Rio-Niterói ou na Rio-Petrópolis. Ok, bem vindo ao inferno dos veranistas. Agora, imagine isso cotidianamente, como algo que ocorre todos os dias no trânsito entre as duas cidades, Port au Prince e Jacmel. Ou você desiste de seu veraneio na praia ou na serra, ou começa a pensar nas alternativas para fugir desta loucura.
O problema é que as alternativas parecem não ser muitas...
Mesmo em um veículo particular, viajando em um bom ritmo pela estrada, você levaria, ainda assim, um bom e precioso tempo. Engarrafamentos constantes e estradas precárias é a regra por aqui.
Anteontem (domingo) saí de Belvil, na Route des Fréres, Pétion Ville, às 6:30 da manhã. A pé até a entrada do bairro, para pegar a primeira condução, uma caminhonete que vai até a “estação”, no cemitério de Pétion Ville. Com a mochila nas costas, com laptop e outras coisas, e uma bolsa de viagem cheia de coisas para a casa, que comprei em PaP (escorredor de louça, facas de cozinha, uma cafeteira, tábua de carne, entre outras coisas) caminhei por cerca de 10 minutos até a saída, onde peguei a caminhonete. Ia acompanhando Mme. Evance, que folga aos domingos, e vai para a sua casa na região próxima à Canapé Vert. Durante a semana ela dorme no emprego, na casa de Laeneck.
A viagem não se estende por algo mais que três ou quatro quilômetros ladeira a acima e, sem engarrafamentos, durou algo em torno de 30 minutos. Saltamos perto do cemitério de Pétion Ville e cruzamos a Delmas, em direção à esquina desta com a Av. Panaméricaine, no posto de gasolina National, de onde partem as caminhonetes que descem a avenida rumo ao “Centreville”, o centro da capital Port au Prince, rumo ao Champ Mars. De lá também partem as caminhonetes que seguem para o mesmo destino, pela Rt. Delmas. Como não havia caminhonetes ali, seguimos para a Rue Lamarre, esquina com Villate, e ali aguardamos por uma caminhonete que servisse para mim, que ia para o Champ Mars, e para Mme. Evance.
Mesmo quem está habituado a pegar as caminhonetes e tap taps pode se confundir com elas, e não saber exatamente qual delas vai para o destino que deseja. Todas vão para o Centreville, mas pelas diferentes rotas: Delmas, Panaméricaine ou Canapé Vert. Nossa espera deve ter durado algo em torno de dez minutos, e depois de “embarcados” no pequeno caminhão com desconfortáveis bancos de madeira, foram ainda mais cinco minutos até partir. Como na havia engarrafamentos, chegamos ao Canapé Vert em vinte minutos, onde Mme. Evance saltou, fazendo recomendações de que mantivesse atento para descer no Champ Mars, informou ao motorista, que deu um ok. Bem somando tempo que viajei até agora, sem sair do eixo Pétion Ville/PaP já temos uma hora e quinze minutos de viagem.
Saltei no Champ Mars, onde tinha três opções para chegar à Portail Leogane, onde fica a “estação” dos tap taps para Jacmel e diversas cidades: a primeira era pegar um táxi, que não conheço bem, a segunda, pegar uma caminhonete que vem da Delmas 65 para Portail Leogane e a terceira era andar a curta distância de pouco mais de 600 m entre o Champ Mars e a “estação”. Claro que optei por andar, pois conhecia melhor o caminho a pé, mesmo sem tê-lo feito, pelas tantas vezes que passei de carro por ali, para ir à Université Quisqueya, para ir à Jacmel, quando estivemos no Oloffson, etc.
Aliás, foi ótimo andar pelo Champ Mars e ver as pessoas por lá, os homens adultos jogando futebol como crianças, as pessoas fazendo jogging, passeando simplesmente pela bela praça e seus monumentos que contam as histórias dos heróis da libertação nacional do Haiti. Como tinha pressa, não parei muito para olhar, porém, como preciso voltar ao Centreville de PaP para resolver coisas no Ministério das Relações Exteriores local, relativas à minha permanência no país, devo voltar em breve à PaP e aproveitar para ver com mais calma o Champ Mars.
Segui pela Rue Capoix, onde saltei, dobrei a Rue Magny, bem defronte ao Museu D’Art Haïtien, que visitei em minha primeira viagem ao Haiti, no ano de 2006, e penso que já é hora de voltar por lá. Segui em direção a Rue O. Durand, onde ficam as faculdades de Direito e Economia, de Odontologia e de Medicina da Université D’Etat. Em frente à faculdade de Direito e Economia fica a embaixada dos Estados Unidos, que está sendo transferida para o Blvd. 15 de Octobre, bem distante da confusão do centro de PaP, uma espécie de fortaleza, numa área com pouquíssimas construções e bem mais próxima ao aeroporto Toussaint L’Ouverture.
Caminhei por esta rua até o Estádio Sílvio Cator, onde jogou a seleção brasileira quando esteve aqui. No dia anterior, haviam jogado a equipe do Aigle Noir, atual campeão nacional, e ao que parece, time de maior torcida, contra o Violette. Neste domingo jogariam Dom Bosco, time pelo qual se destacou o recém falecido Manno (Emanuel) Sanon, um dos maiores craques da história do futebol haitiano, comparado pelos jornais locais com Kaká, e a equipe da Associação Desportiva de Cap Haïtien. Passando do Estádio, mais uns 100 m, estamos na “estação” dos Tap tap.
Chegando lá, como já disse no post anterior, falando da gentileza e da solicitude dos haitianos, parei no mesmo lugar onde havia desembarcado na sexta feira, quando vim de Jacmel para PaP, porém, um homem me perguntou: “Les Cayes?”, eu respondi, “Non, Jacmel”. Imediatamente ele apontou um ônibus, tipo aqueles escolares bem antigos, de filme americano. Na porta, um sujeito com pequenos bilhetes carimbados com o nome de uma associação de condutores de veículos e o trecho da viagem: Jacmel/PaP. Como achei que a passagem custava 25 dólares haitanos (125 gourdes), dei-lhe 150 gourdes, ele rapidamente perguntou para onde eu ia, eu disse: Jacmel, ele me devolveu 50 gourdes e disse que a viagem custava apenas 20 dólares.
Antes que alguém imagine que se trata de uma “estação rodoviária”, organizada, com guichês, placas informando as linhas e plataformas, informo-lhes que não é bem esse o caso. Tudo é muito improvisado e meio tumultuado. Várias pessoas vendendo inúmeras coisas. Mulheres nas ruas vendendo comida (de um modo geral o haitiano come muito nas ruas): frango ou cabrito frito, banane pisée, riz ak pwa (arroz com feijão), macarrão. Vendedores de água e refrigerantes, biscoitos, pequenos mercados. Aliás, em Portail Leogane há também um grande mercado de rua. Tudo se confunde e se mistura de uma maneira que não dá para saber bem onde as coisas são ou estão.
Saber como ir e para onde ir para um estrangeiro, que domina mal o creóle, depende realmente da generosidade e da boa vontade das pessoas. E elas são generosas e solícitas. Com isso, entrei em no tal ônibus escolar. Sentei no fundo, no último lugar (pelo menos supunha eu que era), numa espécie de tábua acolchoada, sobre o estepe do ônibus. Ali ainda havia bolsas, malas e sacos de cereais em grão (arroz e milho). Encostei-me em um deles achando que iríamos sair logo, afinal, o ônibus estava cheio.
De repente: Avancê!
Entra um homem, com algo em volta dos 50 anos de idade e vai se colocar no canto, da janela, ao lado do rapaz que estava ao meu lado sobre a tábua acolchoada e o estepe. Aos poucos, dos bancos que são para duas pessoas, são estendidas tábuas, continuações dos assentos vão sendo ocupadas até o ônibus lotar ao máximo. Estou no fundo do ônibus, na sua saída de emergência, quando um sujeito bate na porta e pede para abrir. Não acreditei. Será que vai entrar mais alguém? Não, o sujeito me manda levantar para meter no ônibus mais dois grandes sacos de arroz. Ficava até um pouco mais confortável, tinha agora onde encostar com um pouco mais de conforto.
São 8:30 h da manhã. Já faz duas horas que saí da casa de Laeneck para ir à Jacmel. Começa, enfim, a viagem. Finalmente, absolutamente lotado, sem qualquer possibilidade de locomoção e de segurança para os passageiros em seu interior o ônibus sai. Quero dizer que este é um dos meios de transporte mais seguros, pois os clássicos e coloridos tap taps e os caminhões adaptados para passageiros, são ainda mais desconfortáveis e inseguros. Como disse antes, não quero glamourizar as coisas. Estou contando como é que me senti na última viagem.
Sem engarrafamentos o ônibus segue pela Bicentenaire (Blvd. Harry Truman) até Bizoton, onde segue por uma outra rota ainda mais precária, mas com menos veículos. O ônibus sacode e pela janela entra uma poeira fina da estrada.
Depois de Gressier a rota fica um pouco menos acidentada até Leogane. Aí passamos por algumas concentrações grandes de gente, mercados que se formam e “estações” de veículos, tal como aquela de Port au Prince. O ritmo tem que ser um pouco mais lento. Estamos mais ou menos à metade do caminho, pois ainda temos que começar a subida. São mais de 9:40 h da manhã. Viajei algo em torno de 30 km, e isto até agora já levou três horas.
Em Carrefour Dufort começa a subida. Ali também fica a bifurcação, de um lado, seguimos para Jacmel, subindo à direita em direção ao sudoeste do país. De outro lado, seguindo para o Departamento de Grande Anse, cuja capital é a cidade de Jéremie, e o departamento Sul, cuja capital é Les Cayes. De qualquer forma, para ir à Jéremie, é necessário seguir pela rota para Les Cayes. Na subida há incontáveis pequenas cidades e seus mercados de beira de estrada. O ônibus segue por um longo maciço, e depois de quase três horas de viagem, avista-se ao longe a Baía de Jacmel. Começa a descida.
No caminho da descida ainda nos deparamos com bem vindas obras de recapeamento da estrada. Não fosse o fato de ser uma estrada estreita, de mão dupla, sem acostamento, tais obras não causariam grande transtorno. Ao passar pelo fim das obras, reparo a ausência de um sinalizador. Como estou no fundo do ônibus, também não notara sua ausência no começo do trecho de mais de 500 m de obras em uma descida sinuosa. Chegamos na parte plana da rota que leva à Jacmel. Cruzamos um rio com pouca água, em função da estação seca. Mais duas pontes e enfim, a “estação” de Jacmel. Faltam quinze minutos para o meio dia. Chantale me disse para ligar assim que chegasse, pois ela e um amigo iriam me pegar na “estação” que é fora dos limites da cidade.
Foram cinco horas e quinze minutos de estrada e agora, aguardava por mais 20 minutos a chegada de Chantale.
Bem, o fato é que, gentilmente, Chantale me convidou para almoçar em sua casa e com isso, chegamos lá por volta das 13:15 h. Na minha casa, que fica à 3 km do centro da vila de Jacmel eu só chegaria por volta das 16 horas.
Essa viagem num tap tap ou num caminhão “adaptado” pode ser ainda mais dura e cansativa. Sem romantismo e sem glamour, deve ser realmente difícil conviver com a precariedade do transporte público no Haiti. Não há como negar o quão pode ser infernal um dia de viagem como esse. O incrível é que na sexta feira Chantale havia viajado junto comigo para Port au Prince e voltado no fim da tarde para Jacmel. Imagino que ela deva ter passado pelo menos entre sete e dez horas viajando naquele dia. De fato, o percurso de Jacmel ao Portail Leogane, em Port au Prince, às vezes, leva menos tempo, pois se escapa dos engarrafamentos da capital. Naquela sexta mesmo, havíamos levado três horas para ir de Jacmel ao centro da Capital. Levei ainda mais uma hora para chegar à Rte. des Fréres, à Belvil.
P.S.: As fotos são de dentro de dois ônibus diferentes, no entanto, o procedimento é o mesmo: o ônibus só sai quando está absolutamente lotado, sem lugares.

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