É incrível perceber que quanto mais pobre o país maior pode ser o oportunismo de algumas pessoas. Imagino que meus 13 leitores conhecem muito bem a história de Sílvio Santos e seu “Baú da Felicidade”. A história do famoso “self-made man” brasileiro, que começou a vida como camelô e se tornou um dos mais famosos e ricos milionários da comunicação no país. A fortuna de Sílvio aumentou consideravelmente nos tempos do “Milagre Econômico”, auge da ditadura militar, quando a inflação disparava, através de uma singela e esperta caixa de capitalização chamada Baú da Felicidade.
Através do sistema do “Baú da Felicidade” as pessoas pagavam mensalmente uma quantia determinada durante seis meses, que lhes garantia ao fim do carnê a compra de eletrodomésticos e produtos nas lojas próprias do Baú (até coisa de 10 anos atrás ainda havia uma ali, na Sete de Setembro, bem pertinho do IFCS), no valor total do carnê de mensalidades. O interessante é que ao fim de seis meses, com a inflação galopante, o dinheiro recolhido perdia o seu valor e os produtos, ao contrário, aumentavam seus preços. Em outras palavras, digamos que o sujeito depositasse mensalmente no Baú da Felicidade algo em torno de 20 reais por mês, ao fim deste período de seis meses ele retiraria na loja um produto de 120 reais. Acontece que quando ele começava a pagar o carnê, uma televisão de 29’ custava isso, no entanto, ao fim de seis meses, com a inflação, ele conseguia, quando muito, comprar um ferro elétrico ou um liquidificador.
Mas o carnê do Baú ainda lhe dava outros direitos. Entre eles o de “Rodar o Pião” no programa da TV e concorrer a automóveis e prêmios em dinheiro. Bastava para isso que você não atrasasse as mensalidades do Baú, e com isso estava habilitado a participar dos sorteios semanais que lhe levariam ao programa Sílvio Santos para concorrer ao grande prêmio do automóvel zero km. Num país onde a loteria esportiva era o grande sonho de ascensão social das pessoas pobres (lembro do “Dudu da Loteca” e do desdentado Miron), o Baú era até mais vantajoso, porque você recebia “ao fim do carnê todo o seu dinheiro de volta em mercadorias do Baú da Felicidade”. Faltava dizer que não era com “juros e correção monetária”. Lembro ainda hoje do jingle do “Atrasildo Atrasado”:
Esta é a história de Atrasildo Atrasado
Que vivia atrapalhado porque em tudo se atrasava
Perdia o ônibus, o trem e o serviço
Não cumpria compromisso
Sua vida não dava...
Certo dia o Atrasildo foi chamado
Por ter sido premiado com um carro do Baú
Mas seu carnê também estava atrasado e Atrasildo, desolado, ficou triste pra chuchu
Mas o que o pobre do Atrasildo não sabia é que a Esposa, que alegria
Havia pago a prestação
Graças a ela que de nada se esquecia seu carnê estava em dia
Ele ganhou o seu carrão
Que vivia atrapalhado porque em tudo se atrasava
Perdia o ônibus, o trem e o serviço
Não cumpria compromisso
Sua vida não dava...
Certo dia o Atrasildo foi chamado
Por ter sido premiado com um carro do Baú
Mas seu carnê também estava atrasado e Atrasildo, desolado, ficou triste pra chuchu
Mas o que o pobre do Atrasildo não sabia é que a Esposa, que alegria
Havia pago a prestação
Graças a ela que de nada se esquecia seu carnê estava em dia
Ele ganhou o seu carrão
Os atrasos nas prestações ainda faziam você correr o risco de perder o investimento, pois, ao parar de pagar, perdia o direito a retirar seu dinheiro em mercadorias. A idéia brilhante é que o Baú retinha uma poupança das pessoas por um período de seis meses, podendo investir este valor em diversas aplicações de curto e médio prazo, na época de alta rentabilidade e devolver este dinheiro desvalorizado pela inflação em mercadorias ordinárias, e com isso ainda fazer a pessoa acreditar que estava fazendo um bom negócio.
Hoje parece ridículo que as pessoas possam ter acreditado nisso, mas nem tanto. Penso isso quando vejo as propagandas sobre marketing de rede e seus fiéis seguidores...
Nesse nosso mundo globalizado internético, os sonhos do homem médio comum não variam muito. Aqui como em muitos países pobres, pobres como o nosso Brasil, as pessoas sonham com uma boa casa, um belo carro, uma boa educação para os filhos, plano de saúde, uma aposentadoria confortável. Sonhos vendidos diariamente pelas muitas loterias nas TVs do Brasil, nos grandes negócios, nas “grandes oportunidades” abertas pelo marketing de rede. Sim, porque quanto mais pobre e quanto menos alternativas para um engajamento formalizado no mercado de trabalho, mais fácil fica para que essas “oportunidades de enriquecer” apareçam.
Tenho um colega que quase sempre manifesta o desejo incofessável de acreditar na idéia de um indivíduo maximizador, voltado exclusivamente para o cálculo e para adequação entre fins e meios. Para ele essa seria a única justificativa possível para que tal tipo de “oportunidade de negócio” prospere e atinja tantas pessoas.
Encontre alguém disposto a me dar US$ 500 e me indicar mais cinco pessoas dispostas e dar a ele US$ 500, que indiquem cada uma delas, pelo menos mais duas pessoas, que indicarão mais duas, e mais duas e ao infinito, e eu me tornarei o mais novo milionário do mundo. E tem mais, eu vou lhe dar 100 dólares para cada pessoa que você incluir no sistema. E é claro, que você não está “me dando” dinheiro, pois você adquire com este valor um kit de produtos de primeira qualidade, exclusivos, que são a última novidade em tecnologia, ou para garantir a saúde, o emagrecimento, o aumento do pênis, a conquista infinita de todos os seus sonhos...
Fácil, não?
Pois bem, foi assim a conversa que ouvi outro dia numa reunião em Jacmel...
Voltava para casa, e como a casa de Chantale fica a meio caminho entre a vila de Jacmel e minha casa, pretendia passar por lá para me informar de algumas coisas necessárias para a chegada do nosso grupo de pesquisa à Jacmel no mês que vem. Liguei e Chantale me disse que gostaria muito que fosse a uma reunião que ela estava me convidando. Disse que era uma coisa muito importante, que certamente me interessaria.
Imaginei que tivesse algo a ver com a vida política ou social de Jacmel, posto que tinha dito a ela no dia anterior que me interessava profundamente por tudo que dissesse respeito à vida cotidiana de Jacmel. Essa é também uma forma de diluir um pouco o foco sobre o vodu, para que, de alguma forma, ele apareça naturalmente nas conversas, de forma menos direcionada para a pesquisa. No dia anterior ela havia me contado sobre uma “caixinha” que ela e algumas pessoas fazem, para que mensalmente alguém retire ou quem tem alguma necessidade especial. Disse que isso me interessava e que queria conversar sobre isso com calma.
Fui lá para a tal reunião que imaginava que seria na sua casa. Porém, ao chegar lá encontrei a moça que trabalha lá e outras mulheres na varanda da frente da casa trançando cabelos. Ela me disse algo em créole que julguei ter entendido, mas na dúvida, resolvi ligar novamente para Chantale, e realmente havia entendido. A reunião era num restaurante boate (como vou descobrindo gradualmente que são muitos) que durante o dia (é claro) funciona somente com serviço de refeições, sobre um depósito de bebidas.
Entrei e logo Chantale me recebeu, dando-me uma bela caneta, com o logo GTN – Global Track Networks, ela me diz que é para anotar as coisas e fazer perguntas. Vejo um sujeito vestido num terno elegante, à frente de um laptop, falando em creóle que já viveu e estudou nos EUA, falando que as riquezas do mundo estão todas concentradas nas mãos de apenas 1% da população mundial, que Deus criou o mundo e a riqueza para todos, blá, blá, blá.
Pensei: igreja evangélica... Menos mal... Pensei na Diana Lima, e achei um bom mote para discutirmos juntos alguma questão como esta, fazendo uma comparação Brasil / Haiti. Ainda mais que o cara falava de Deus numa linguagem meio empresarial... A Teologia da Prosperidade chegou ao Haiti.
Mas logo depois a impressão se desfez, Não era mesmo igreja. Era só discurso empresarial, atravessado de algumas considerações sobre as virtudes do marketing de rede. Uma rápida crítica à Amway, e estamos diante dos mais novos e revolucionários produtos.
O melhor foi a explicação do cara para a escolha de sua empresa pelo Haiti. Porque eles não visam antes o lucro, mas a promoção da pessoa humana e a distribuição das riquezas do mundo. Falou que o sistema da Global Track Networks foi criado por um brasileiro. Foi quando Chantale me olhou, como se dissesse algo assim: “Olha, você também faz parte disto”. O cara migrou para os EUA (para o Wisconsin, creio eu) e lá criou este sistema, que está sendo implantado no Haiti, na Somália (?) e no Brasil (?????).
A tal apresentação foi se desenrolando e eu, entre o tédio e a irritação, queria me mandar logo, me livrar daquela coisa cacete em que eu havia me metido. Mas vieram então os formulários de “aplicação” para entrar no sistema...
Deixa eu ver se compreendo bem... Hum... US$ 500 em cheque ou grana viva... Sei... Mas pode pagar em cartão de crédito... Basta preencher o formulário, dando o número de seu cartão (Visa, American ou Mastercard) e o código de segurança de três números... Hum... Isso não me cheira bem... E para cada pessoa indicada a entrar no sistema, você recebe US$ 100... Hum... Eu te dou quinhentos e para recuperar meu “investimento”, eu tenho que colocar nessa fita mais cinco amigos meus... Eis a deixa!
Educadamente disse à Chantale que não era um “homem de negócios”, que era um intelectual. Ela, encantada como todo seguidor da religião do marketing de rede, disse que o próprio Gary (o cara da apresentação) havia estudado nos EUA, era doutor em alguma coisa lá de marketing e vendas... Eu ainda assim, disse que não era a minha praia, e que não tinha amigos suficientes no Haiti para colocar no “sistema”. Ela ainda insistiu que eu poderia chamar meus amigos do Brasil. Eu tive que dizer por fim que não me interessava. E vi sua decepção num muxoxo, e até uma certa irritação, quase dizendo para mim: Se não te interessa, vaza! Vazei...
Mas fiquei pensando no Baú da Felicidade, nos self-made men que surgem a cada dia nestas “preciosas oportunidades”... Joguei fora a minha chance de me tornar o próximo milionário... Lembrei ainda do fim dos anos 80, quando surgiram as “pirâmides”, que foram um belo golpe criado por algum espertalhão, mas que as pessoas juravam que podiam com isso botar a mão numa grana boa, na ilusão de que o dinheiro circula sempre de uma forma que vai voltar para as suas próprias mãos.
Sim, assim é mole... Como eu disse, se cada amigo meu me der US$ 500 e, digamos, que eu possa conhecer algo em torno de umas 100 pessoas... São 50.000 dólares... Se cada amigo indicar cinco pessoas, já estou com 300.000 e por aí vai...
O que mais impressiona é que lugares como o Haiti, onde o emprego é escasso, o trabalho mal remunerado, a qualificação é baixa, essas oportunidades aparecem quase como uma tábua de salvação que vai libertar os indivíduos de suas dificuldades endêmicas... Impressiona mais ainda é que caímos nessa conversa aí mesmo no Brasil, porque o emprego é escasso, o trabalho mal remunerado e a qualificação é baixa...
Pra pensar...
Zé
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