sexta-feira, 14 de março de 2008

Os Haitianos e o Futebol




Para o João Marcelo, todos os Ferrabrazes e todas minhas amigas que entendem e acompanham futebol
Já é pública e notória a paixão dos haitianos pelo futebol brasileiro. As incríveis cenas que foram vistas naquela famosa partida entre a seleção local e o Brasil, além do documentário que fala do jogo, comentei algumas vezes sobre o assunto. Mas o haitiano não é um apaixonado exclusivamente pelo futebol brasileiro. Ele é apaixonado por futebol de uma maneira geral.

Outro dia, numa quarta-feira, andando por Jacmel, caminhando desde a minha casa até o centro e de volta para a casa, depois de passar no pequeno mercado & farmácia St. Cyr, que fica no começo da Av. Barranquilla, a rota principal da cidade, e já no mercado havia reparado isto: todos estavam diante da televisão, assistindo ao jogo da Liga dos Campeões da UEFA entre Milan e um outro time. Espantei-me mais vi a reclamação da senhora gorda, dona do mercado, quando Kaká recebeu um cartão amarelo por um carrinho. Seguindo pela Barraquilla, via em cada canto (onde há energia elétrica de inversor ou gerador), especialmente nos pequenos comércios, barbearias, lojinhas e bares uma TV ligada no jogo de futebol e olhares atentos, fixos, acompanhando atentamente cada lance. Homens e mulheres assistindo juntos, naquela tarde, um jogo de futebol, com um interesse que só vi no Brasil em jogos de Copa do Mundo.

Meu amigo João costuma de dizer que Copa do Mundo é coisa de amador. Por isso que mulher gosta. É aquela farra. Ainda mais em jogo do Brasil. Mas em Copa do Mundo tem mulher que acompanha mesmo. Mas depois passa. Não digo isso falando de todas as mulheres e nem estou sendo machista. Tenho amigas que conhecem e gostam de futebol, só acho que não entendem muito porque quando não são Flamengo(a maioria inteligente), torcem por Botafogo (Bel Pacheco), Fluminense (Helena Tinoco) e algumas outras que acompanham seus times. Mas elas são minoria. Que o diga a minha irmã Ana, que em minha homenagem tem acompanhado os jogos do Flamengo na minha ausência.

Mas aqui (talvez elas sejam também minoria) as mulheres assistem jogos da UEFA Champions League. Sabe lá o que é isso? Isso é coisa de profissional do ramo. Tem muito marmanjo apaixonado por futebol que não tem paciência de ver Fenerbahce x Bayer Leverkussen, e os que têm, fazem isso por causa do Zico.

O haitiano parece mesmo ser apaixonado por futebol.

Nos últimos dois dias aqui em Port au Prince experimentei uma sensação nova em relação ao futebol. Assumi minha nacionalidade haitiana e torci pela nossa seleção em dois jogos pelo Pré-Olímpico da Concacaf. Mas o mais divertido e gostoso foi ver Mme. Evance e Rony, os empregados de Laeneck, torcendo animadamente pela seleção de seu país.

A narração do jogo em créole pelo locutor da TV é simplesmente hilária, pois parece rádio. Parece uma narração de rádio com as imagens. John Sutcliffe é o narrador da ESPN em créole. Ele lembra um pouco o Sílvio Luís, pelo bom humor e as constantes intervenções para além do jogo, com um jeito de narrar meio torcedor (não esqueço o famoso: “Queimou o filme do Brasil em Atlanta”, do Sílvio). A correria da voz lembra o José Carlos Araújo dos tempos da Nacional, o atual Luís Penido da Tupi, e o velho Doalcei Camargo, da antiga Tupi. Tem ainda um pouco do tom de epopéia dos saudosos Waldir Amaral e Jorge Curi.

A animação dos dois torcedores com cada lance, alguns deles nem tão perigosos assim, é ainda mais empolgante. Parece carregar uma certa ingenuidade. Pois eles reconhecem a fragilidade de sua seleção, diante de grandes times como Brasil, França, a atual campeã do mundo Itália, a Argentina. Mas este reconhecimento não diminui a paixão. Parecem torcedores do América do Rio, apaixonados e sempre esperançosos de um despertar que não acontece.

Mas hoje, sexta-feira, parece que o Haiti despertou! (Será que o Mequinha vai despertar e escapar do rebaixamento?)

O jogo de quarta-feira entre Haiti e Guatemala foi curioso. No primeiro tempo, o Haiti parecia desorganizado, um bando em campo, dando chutões, fazendo ligação direta entre defesa e ataque. A seleção guatemalteca, por seu turno, parecia mais organizada e consciente. Errava menos passes e, apesar de não ameaçar o gol haitiano, tinha um controle mais efetivo do jogo. E por esta razão, por volta dos 30 minutos do primeiro tempo, chegou a seu gol numa jogada de contra-ataque. O bom atacante da equipe, camisa onze, entrou pelo lado direito da área e tocou na saída do goleiro haitiano.

Se a equipe haitiana parecia desorganizada antes do gol, mostrou realmente que estava totalmente perdida em campo depois dele. O técnico sacou, antes do fim do primeiro tempo, dois jogadores do time, e o único que parecia saber minimamente o que fazer com a bola nos pés era o camisa 9 haitiano, Leonel Saint Preux. Parecia que a Guatemala ia levar fácil o jogo. Desanimei. Fim do primeiro tempo. Mas Mme. Evnace e Rony pareciam mesmo animados, esperançosos e ansiosos pelo segundo tempo. Durante o intervalo não entram as imagens geradas pela ESPN, só as imagens locais, e então, durante o intervalo, há um show, mas bem diferente daquele que a TV Globo mete nos intervalos com os chatos Sérgio Noronha, Falcão e Zé Roberto Right e o bobalhão do Arnaldo César Coelho. Aqui, as engraçadas propagandas da TV haitiana e videoclipes de bandas locais.

O segundo tempo reservava surpresas. E a melhor delas foi ver um time haitiano mais organizado, com boas atuações de Peterson Joseph, James Marcelin e do camisa 10 Jean Sony Alcenat. O Haiti começa aos poucos apertar, pressionar, tocar melhor a bola e errar menos passes. O gol parece questão de tempo, porém, o tempo vai passando e vai ficando cada vez mais difícil de sair um gol de empate. Aos 42 do segundo tempo, uma boa jogada pela esquerda, o cruzamento na área passa por todo mundo e encontra livre na pequena área Leccinel Jean-François. Ele domina e bate em cima do goleiro, a bola ainda volta para ele, para uma segunda chance, impossível perder agora. Parecia o empate, mas providencialmente aparece um zagueiro guatemalteco, a bola sobe e Leccinel tenta ainda mais uma vez, uma puxeta, e fura, a bola sobra para outro zagueiro que tenta sair jogando e sofre falta de Leccinel. Depois, foi só a Guatemala prender um pouco a bola no ataque e fim de jogo. A seleção haitiana sai derrotada.

Com a derrota para a Guatemala, a coisa se complicava para o Haiti, pois o Canadá arrancara um empate contra o México, supostamente a principal força do grupo. O Canadá, com o empate, assumia ares de favorito, posto que empatou e jogou bem contra o México. Já a Guatemala, espera tranqüila o jogo duro com o México, pois mesmo em caso de derrota, decidiria sua sorte, por conta própria contra o Canadá.

Torcendo pelo Haiti lembrei um pouco de como era torcer pela seleção japonesa do Zico. Difícil, pois a gente sempre achava que ia dar certo dessa vez, mas não dava. Apesar de tudo, o Galo saiu cacifado desta história e está subindo de prestígio, já que conseguiu colocar o seu Fenerbahce nas quartas de final da UEFA Champions League. Seria o máximo o Galo conseguir o título com uma equipe turca na Europa...

Pouco antes do jogo, disse a Rony que ganhar do Canadá para o Haiti, era uma missão difícil, mas ganhar do México, é a missão impossível. Mas para o povo da terra de Toussaint L’Ouverture e Jean Jacques Dessalines parece não haver coisa impossível! Disse também brincando que eu era um profeta, o profeta do futebol, e que o Haitia venceria o jogo.
E começa o jogo. O time canadense tem um centroavante Ornoch, enjoado, daquele tipo que vai em todas, divide todas, cava o tempo todo. Mas desta vez, o time hatiano parece ter entrado em campo mais organizado, tocando a bola e ameaçando mais o Canadá. Embora erre muitos passes e perca ingenuamente algumas jogadas, parece que o Haiti tem mais interesse em vencer a partida que os canadenses. Os gritos e a animação de Mme. Evance e Rony são entusiasmantes. Parece que hoje vai. O Haiti vai vencer!
Mas de repente, para meu espanto, mesmo jogando melhor que o Canadá, que sempre ameaça com Ornoch, aos 17 do primeiro tempo, Rosenlund marca o gol do Canadá. Uma ducha fria no entusiasmo haitiano. E no nosso entusiasmo, afinal fica difícil torcer assim...
O primeiro tempo segue com a equipe hatiana pressionando, mas os chutes saem tortos e sem direção. Não parece que o Haiti vai ganhar. Mas repito para meus amigos haitianos: "Eu sou um profeta, e estou dizendo que o Haiti vai ganhar".
Fim do primeiro tempo, intervalo para as simpáticas propagandas haitianas e um clipe de hip hop e outro de um cara cantando aquelas salsas melosas, tipo Rick Martin... Que venha o jogo e a narração animada de Sutcliffe...
Começa o segundo tempo e o Haiti, que já vinha melhor no primeiro tempo, passa a tomar conta do jogo. Alguns contra ataques do Canadá assustam, e numa entrada pela direita da área, junto com o zagueiro Parnel Guernier, Ornoch sofre um penalti (visivelmente o zagueiro hatiano vem segurando ele pela camisa) ignorado pelo árbitro. Comecei a pensar, como diria Sílvio Luís, "a barba da seleção haitiana está crescendo"...
As chances porém começam a ficar mais claras para o Haiti. E mais uma vez, Leonel Saint-Preux joga bem, ao lado de Sony Alcenat. Marcelin, menos brilhante que na partida anterior, parece sólido do meio campo. Bidrece Azor aparece em boas subidas pela esquerda. Haiti mon peyi!!!!
Vinte e sete minutos do segundo tempo... Ali eu vi porque os haitianos são tão apaixonados pelo nosso futebol, e como eles sonhar em emular este futebol que eles acreditam ser de sonhos...
Uma bela tabela pelo lado esquerdo da área, Leonel toca para Sony, Sony devolve dentro da área e Leonel, de primeira, toca para Alain Gustave na entrada da área. Sem deixar a bola cair ele bate de primeira, seco no canto direito do goleiro canadense Wagennar. Golaço! Uma jogada tipicamente "brasileira", a tabela e o chute seco de Gustave, à La Kaká... Lindo gol mesmo... Aí eu me empolguei de vez. E o time haitiano também, sem firula, com muita objetividade e algum talento, eles passam a buscar o gol da vitória, se expondo mais.
O técnico canadense mexe no time, põe um atacante camisa 9, Lombardo. Outro cara enjoado, parece aqueles atacantes argentinos, estilo Palermo, que estão ali, trombando, brigando e, de repente, deixam o seu. Pelo lado esquerdo do time canadense, um lateral, um neguinho enjoado à vera, camisa 12, Diaz Kambere. O jogo fica mais franco, mais aberto e mais animado. Não, não mais animado, pois já estava definitivamente seduzido pela seleção haitiana e não podia mais assistir com aquela neutralidade olímpica que a gente assiste um jogo de Copa do Mundo entre Áustria e Argélia... Não, naquele momento eu meu tornara totalmente haitiano!!!
Num lance na entrada da grande área, numa bola alçada, o goleiro canadense sai mal, rebate e a bola cai nos pés de Judelin Aveska. Ele toca por cima, com um pouco de força... Fora!!!! Ai que este gol não sai. Logo depois, num contra ataque pela direita, Ornoch toca bem para Hemming que toca rápido. Lombardo divide com o zagueiro, ganha e chuta... Mal! Grassedye! Bola por cima...
Aí, a magia da seleção haitiana, que havia me encantado, me conquistou de vez... São 39 do segundo tempo. Depois daquele lance por cima, os haitianos tentaram ainda umas duas vezes por cobertura, sem resultado... Mas veio o lance de magia. Leonel Saint-Preux, que já havia me chamado a atenção na primeira partida, e que vinha jogando bem novamente, pára, da intermediária, olha para o gol e vê Wagennar adiantado. Olhando o lance, voltei no tempo, ao jogo Brasil e Inglaterra na Copa de 2002, cobrança de falta da internediária. Ele toca lindamente por cima e a bola vai morrer mansamente no gol canadense. Eu grito: $#@&%$ GOLAÇO!!!!!
Um gol de sonho, "como aquele do Ronaldinho Gaúcho na Copa de 2002", digo eu para Rony, e como se me ouvisse, Sutcliffe na TV repete as mesmas palavras.
Aí começa o meu desespero... Faltam cinco minutos, mais os descontos... Cadê o Felipão para jogar umas bolas dentro do campo? Cadê aquela manha do Parreira ou do Vanderlei para meter um cara no time e ganhar um tempinho com a substituição??? Cadê aquela esperteza de um Cuca ou de um Papai Joel para fazer o time prender a bola na bandeirinha de corner e ganhar um tempo???? Não, o Haiti é puro entusiasmo! Sutcliffe, Rony e Mme. Evance falam em terceiro gol... E eu, digo: cautela e, misturando português com francês e créole, com alguns palavrões que meus amigos daqui não entendem, "Il faut qui retê la bola... Li beswan retê la pelota"...
Quatro minutos de descontos parecem uma eternidade. Saint Preux carrega a bola pelo lado direito, grito: Vai, fait comme Denílson, retê la pelota, prenn le balon... Diabo, como falo isso em francês ou créole????
A defesa canadense toma a bola e dá um chutão para a frente... Soberano da defesa o goleiro haitiano Placide rebate de soco, o juiz está no meio campo. Vai acabar, c'est fini, allez juiz, allez... Acaba com esse troço.
Fim! Vitória haitiana! Alívio e a descoberta de uma nova paixão que quero curtir muito: o futebol haitiano...
Abraços a todos

Um comentário:

blog disse...

Olá. Gostei muito do seu blog. Passei a me interessar pelo Haiti deposi de ler dois autores haitianos: Dany Laferrière e Patrick Chamoiseau.
Você já assistiu a um documentário sobre quando a seleção brasileira foi jogar um amistoso no Haiti? Chama-se "O dia em que o Brasil esteve aqui". É possível comprá-loi pelo site da Amazon.com. Acho que você iria gostar
Abraço,
Nádia.