segunda-feira, 24 de março de 2008

Traduzindo...

Uma amiga reclamou que eu não colocava a tradução de alguns diálogos em créole no blog.
Talvez ela tenha razão, pois vou contando as coisas como numa conversa, porém confiando que as pessoas estão entendendo o sentido das coisas, muito mais que sua tradução literal.
No antigo blog postei algumas frases em créole para mostrar as diferenças entre esta língua e o francês. Mas para ajudar essa amiga, vou traduzir algumas coisas que podem ter ficado obscuras na postagem anterior.

O espaço dos comentários ao blog também serve para esclarecer estas dúvidas...

Mas aí vai:

"Mwen blanc, pa fou" quer dizer "Madame, eu sou gringo, não maluco". Disse isso porque não poderia pagar o preço que ela me pedia pelos ovos. "Fè pri nan mache an" quer dizer, literalmente, "fazer o preço no mercado", que quer dizer negociar os preços das coisas à venda. "Ban mwen bon pri" quer dizer "faça (ou dê) para mim um bom preço". "Blanc" é estrangeiro e "blanc nwa", estrangeiro negro. "Fè pratik" quer dizer, "fazer pratik", ou seja, se tornar cliente.

"Ban mwen monnaie" significa "Me dá o meu troco". "Voler" ou "vagabond", ladrão, safado, etc...

A "poulè peyi", como disse, corresponde à nossa galinha caipira.

"Li blanc, pa fou" quer dizer "ele é gringo, não maluco"... "Twá dolá" vem de "trois dollars", referidos é claro, aos dólares haitianos, que cada "dolá ayisien" equivale a cinco gourdes (gouds). "Bon maché" quer dizer boas compras ou bom preço. "Non messi" é "Non, merci", ou seja não obrigado e "pas ankò", "pas encore", que quer dizer "não ainda" ou melhor dizer, "não neste momento".

"Chadèk" é a grapefruit e "ogniôn", cebola...

Acho que é isso...


Abraços

sexta-feira, 21 de março de 2008

Madam, mwen blanc, pa fou! (Ou « fè pri nan maché a »)


Tem sido curiosa a minha experiência diária em Jacmel, às vezes que vou ao mercado para comprar comida. Quando falo mercado, entenda-se, me refiro aos mercados de rua e não aos supermercados, onde os preços são determinados ou por código de barra, nos supermercados mais modernos como o “Caribbean”, ou pela etiqueta, nos mais simples, como os daqui de Jacmel. O fato é que no mercado de rua os preços não vêm escritos nos produtos, e nem é como nas nossas feiras livres, onde há um espaço para regatear o preço, mas este quase sempre está afixado em uma placa. Desta maneira, a prática de “fè pri nan maché à” é constante. “Ban mwen bon pri, madam”, e começa a negociação...

O problema é que ser um “blanc”, quer dizer, um estrangeiro (no meu caso, um “blanc nwa”), sempre leva o comerciante a elevar o preço, às vezes de forma exorbitante... Por isso, quando vou ao mercado, rodo, rodo, dou voltas e voltas e chego para fazer as compras. Já “fè pratik” em algumas barracas. Por exemplo, a senhora onde comprei pratos, talheres e utensílios domésticos, lá eu já estou me tornando “pratik”, ou seja, cliente.

Às vezes fico um pouco irritado com os moto-táxis, pois alguns deles, quando percebem que você é estrangeiro, tentar meter uma mixaria a mais no bolso. A distância entre o centro da cidade e minha casa, normalmente custa 15 gourdes (três dólares haitianos). Mas uns e outros, mais malandros, querem cobrar vinte. Quase sempre tenho dinheiro trocado, o que dificulta as coisas para o malandro, mas outro dia dei 20 gourdes e o cara fez ainda uma cara de que estava esperando mais dinheiro, e eu cá com a minha cara de “E aí negão? E o meu troco????”, quando ele viu que eu não ia dar mais dinheiro, ainda teve a cara de pau de dizer (em créole): “Está certo!”. Eu disse “Ban mwen monnaie!” (“meu troco”) e ele, insistiu... Fiquei puto, mas não quis arranjar confusão... Saí dizendo entre os dentes: “Voler!!!”.

Mas não é sempre que essas coisas acontecem. E no mercado elas às vezes são engraçadas. Pois bem... Há algumas coisas que não compreendo bem, mas o sistema de pesos e medidas das coisas é bem peculiar. É mais menos como o nosso “lote” das feiras. Outras coisas, porém, são muito diferentes. O diversos feijões que se encontra por aqui são vendidos por uma medida que é uma espécie de caneca ou pelo “sachet” (saquinho). Os ovos, são vendidos de três em três.

Aliás, foi comprando ovos que vivi uma situação engraçada...

Cheguei diante de uma senhora, com seus produtos espalhados pelo chão. Lá ela tinha vários produtos, entre eles, algumas galinhas e uma bacia daquelas esmaltadas com ovos. Os ovos aqui no Haiti são de dois tipos: os americanos, de Miami, encontrados em supermercados e os ovos de “poulè peyi”, a galinha “nacional”, comprados em mercados de rua. Na verdade, essa designação se opõe aos ovos e aves importados especialmente da República Dominicana. A poulè peyi se diferencia, sobretudo, pela forma em que ela é criada e alimentada. Ao contrário das aves gordas alimentadas por ração, a poulè peyi é como a nossa galinha caipira, criada solta, ciscando nos terreiros.

Fui lá para comprar ovos para a minha vizinha, que de antemão havia me dito que eles custariam qualquer coisa em torno de 8 dólares haitianos (40 gourdes). Com esse preço na cabeça, já sabia como poderia negociar, qual a margem e quanto poderia estar perdendo...

Não é que a dona ao ver a minha cara de “gringo” perguntando “combien cout ça?”, disparou: “20 dolá”... Eu disse, “Coumanman!” (uma expressão de um personagem cômico local). Repeti a pergunta: “Madam, combien?”, pegando 6 ovos... Ela repetiu, sabendo que como todo gringo, é preciso que se dê o preço em gourdes, “100 gouds”. Eu, malandramente, disse: “Madam, mwen blanc, pa fou!!! Ban mwen twa dolá!”. Ela riu e comentou com as outras: “Li blanc, pa fou!”. Rimos juntos, e ela disse: “di gouds” e eu “uit!!!”. Madame fechou negócio, rindo ainda mais, comentando com as outras, “Mesye là, li blanc, pa fou!”.

Aos poucos, se vai aprendendo os preços e as estratégias. Normalmente, quando um preço parece absurdo, não é um engano, ele é um absurdo. Já me explicaram por aqui que a melhor estratégia é oferecer a metade da metade do valor dado (1/4 do preço apresentado) para conseguir chegar à metade do preço, supostamente um “bon maché”. Mas varia. O pior é quando você acha que está sendo enganado, dá uma volta pelo mercado inteiro e descobre que o melhor preço era aquele que te foi oferecido e parecia absurdo.

O preço da chadek, por exemplo, que é a grapefruit, está sendo considerado alto, um dólar haitiano pela unidade, conseguir menos que isso será um “bon maché”. Mas não raro, é muito difícil ter uma idéia de quanto possa custar. Cinco cebolas médias por quatro dólares haitianos me pareciam um bom negócio, mas já me advertiram que não. Que estou pagando um pouco caro. Esse preço pode ser justo para a mesma quantidade de cebolas grandes.

Mas estou aprendendo, dando um jeito, me virando sem falar muito créole, sendo simpático e bonachão, rindo junto as vendedoras, fazendo caretas, comprando, respondendo carinhosamente os chamados: “Cherri, ogniôn?”, “Bon chadek, cherri”. E eu, “Non messi, “non madam, pas ankò”... Mas realmente a que fez mais sucesso foi mesmo a frase do título da postagem: Mwen blanc, pa fou...


Abraços




P.S.: É engraçado dizer que sou "blanc"... Mas como expliquei essa é a designação genérica de estrangeiro...

domingo, 16 de março de 2008

Pílulas... Para dor de cabeça!!!!



  • Ok, parabéns ao Botafogo... Depois de quatro anos, quinze jogos, várias choradeiras, conseguiu vencer, apertado, ao time reserva do Flamengo...
  • Este é o mapa de Jacmel. Naturalmente, como alguns já sabem, a casa não fica em nenhuma destas ruas, na verdade ela está na direção "Vers Cayes-Jacmel", depois do Aeroporto, numa localidade chamada MEYER. Logo, eu posso tirar onda, afinal, moro no Meyer, onde ninguém bobéia, nem vaciléia, nem pega mocréia...
  • De cabeça inchada... Meus dois times perderam hoje...
  • O México deu um sapeca iaiá de 5 x 1 no Haiti. O pior é que tal resultado não foi bom para nenhum dos dois. Passou o Canadá, que goleou a seleção da Guatemala.
  • Parece que o despertar do Mequinha foi como o da seleção haitiana: fogo de palha...
  • Mais ou menos como um certo time que venceu os reservas do Flamengo e acabou de fora das finais... Calma Bel, tô falando do Fluminense... Mas Botafogo de Palha também não soa tão estranho assim...
  • Minha amiga botafoguense, Bel Pacheco, ao ler o blog recomendou a mim um pouco mais de humildade para melhorar a pele... Sim, vou seguir seu conselho, afinal, FREGUÊS TEM SEMPRE RAZÃO! Beijos, Bel!!!
  • Alguns leitores andam bem sumidos... Acho que voltamos ao número mágico de 9 leitores...

Abraços a todos

sábado, 15 de março de 2008

Au Coeur du Péché": um Brasil no Haiti para além da Minustah


Pelas coisas que venho contando para vocês aqui no blog, a maioria dos meus 13 leitores deve pensar que o Brasil no Haiti são duas coisas: A Minustah e o Zé Renato. Destes treze leitores, alguns mais informados, porque diretamente interessados na minha presença aqui (como meu orientador Federico e a turma do NuCEC), sabem que o Viva Rio está com algumas ações por aqui na área de Bel Air, junto a alguns grupos organizados deste bairro. Mas pouca gente imagina que algumas figuras brasileiras passaram a ser bem conhecidas dos haitianos e freqüentam diariamente os lares haitianos...


Pacô, Pretá, Afonsô, Pai Helinhô, Tancinhá, Toní, Barbarrá... Alguns dos meus leitores nem imaginam quem sejam estes, mas aqueles habituados a assistir telenovelas, saberão que estes são nomes de personagens de uma telenovela brasileira, do ano de 2004, chamada “Da cor do pecado”. Aqui, conhecida como “Au Coeur du Péché”, a novela parece ter conquistado os haitianos. Não há um momento que eu não veja alguém diante da TV prestando atenção às cenas divertidas da Mamãe Sardinha e sua família e de pai Helinhô e Tancinhá, aos dramas de Pretá e Pacô para ser felizes juntos, ao carinho de Afonsô com o neto Raí, aos vilões terríveis Barbarrá e Toní.


Chega a ser engraçado olhar a TV em diferentes horários da tarde até à noite, e ter a impressão que a novela parece ser transmitida o dia todo, nos mais diversos horários. Também é curioso ver os capítulos parecendo passar fora de ordem, repetir-se várias vezes ao dia e em dias diferentes. Independente disto e de ser dublada em francês a novela é um sucesso.


Outro sucesso são as revistas da novela. Como as revistas do Brasil, onde são contados todos os capítulos da novela, com fotos variadas, aqui algumas revistas sem as mesmas cores e padrão gráfico, lembrando um pouco algo feito em um gráfica de fundo de quintal. São inúmeras as revistas que as adolescentes vindas das escolas param defronte, nas bancas de rua com livros usados e revistas espalhados pelo chão, para olhar os capítulos de Au Coeur du Péché...


Além da Minustah, do Futebol, le feulleton televisée brésilien, Au Coeur du Péché é mais um sinal de nossa presença por aqui.



Abração


Mal entendido produtivo

Para meu amigo Guilherme Sá, um pedido formal de desculpas

Há certas situações que pela inesperada atitude das partes nela envolvidas produzem tamanho ruído na comunicação, que tudo o que se diz depois deixa de fazer sentido, em função da confusão de sons e vozes que se misturam. As vezes que sou obrigado a entender o que está sendo dito em créole são assim. Para não ser chato e ficar constantemente dizendo: "Pardon?", somos obrigados a entender, às vezes de maneira torta o que foi dito.

O problema maior é quando este tipo de coisa ocorre entre pessoas que falam a mesma língua. Certa entonação, o mau uso de algumas palavras ou algumas ironias podem soar como grandes ofensas e deixar de lado o sentido real de certas coisas. Esse é sempre o maior temor quando entramos em certos debates intelectuais. Certas ironias podem soar fortes demais e certas provocações adquirem um tom exagerado de desafio. Mas nem sempre as coisas são como parecem ser.

Vejo as pessoas aqui às vezes, falando alto em créole, gesticulando muito, parecendo estar em pesado conflito quando, de repente, riem juntas às gargalhadas. Para mim, tratava-se de um conflito, um mal entendido. Mas nem sempre, apenas o tom da conversa parece ir numa direção quando ela vai para outro. Se falasse créole fluentemente talvez entendesse mais rápido o que se passava. Nem sempre é assim...

Em debates com amigos as coisas às vezes são assim. Uma barulhada e uma troca de farpas nem tanto gentis assim e, de repente, risos às gargalhadas. Algumas vezes, depois de algumas garrafas de cerveja, mesmo entre grandes amigos, uma frase boba, mal colocada, gera um mal estar imenso.

Certos mal entendidos, no entanto, podem produzir idéias interessantes do ponto de vista intelectual, mesmo que às vezes dois amigos saiam meio queimados por conta de coisas que um e outro não entendam sobre o que foi dito.

Meu amigo Guilherme leu a postagem que dediquei a ele e de maneira desarmada e sincera me fez algumas questões usando categorias de análise que não utilizo e/ou não domino perfeitamente. Encarei que sua postagem era uma provocação, no bom sentido do termo, ao pensamento e respondi nestes termos (provocativos) e com alguma ironia, que agora reconheço desnecessária. Nem de longe quis ofender meu amigo e nem levantar alguma bandeira de posição intelectual A ou B. Não "sou da paz", mas não faço guerra também. E ainda mais "guerra santa".

Falei, no entanto, e apesar de certas ironias, de maneira sincera também sobre o não uso de certas categorias e respondi dentro dos termos que utilizo.

Peço aqui desculpas ao meu amigo por dizer que ele tem uma "obsessão lévi-straussiana pela divisão natureza/cultura". Não quis ofendê-lo com isso. Pelo contrário, considero que sua "obsessão" é assaz produtiva e gerou seu brilhante trabalho de doutorado que, no meu parco entendimento, é um trabalho brilhante explorando uma temática extraordinária: a relação humanos/não humanos e os termos em que estas relações se dão. Temia que qualquer discussão mais profunda fosse parecer demasiado pernóstica, e por isso fui bastante superficial em algumas respostas e vejo o quão profundo é o interesse de Guilherme no meu trabalho (que sei que é grande) e nas questões que, juntos, podemos explorar no futuro.

E voltando ao ponto anterior, sobre os termos em que se dão as relações entre humanos/não humanos, no caso da pergunta de Guilherme, humanos/objetos, quando ele me pergunta se são "naturais" ou "sociais", lhe respondi que por convicção (sincera) não acredito em relações "naturais", mas que esta são sempre "sociais". Com isso entraríamos em uma profunda questão filosófica a qual não me encontro sinceramente preparado para enveredar (ainda), mais uma vez fui bastante superficial, pois iríamos ao encontro de uma suposta "ontologia" dos objetos, termo que não utilizo, categoria de análise que não trabalho. Utilizo com mais freqüência a noção de "vida social dos objetos" ou "história social dos objetos" conforme estas são cunhadas a partir dos trabalhos de Kopytoff e Appadurai.

Depois lhe expus que o estatuto destas relações pode operar a partir de eixos analíticos distintos e, mesmo reconhecendo a rentabilidade etnográfica de certas categorias de análise com as quais não opero, sugeri que a idéias de que os objetos não sejam algo em si mesmos mas representem coisas que as pessoas e suas relações atribuem a estes pode ser rentável para pensar algumas coisas dentro do universo social do vodu.

E por último, aproveitando a última frase, disse-lhe que recusava o termo cosmologia, porque não tenho o hábito de usá-lo, e de fato evito-o o máximo que posso. Não para denegar certas vertentes antropológicas, mas pelas implicações do termo, preferindo noções com as quais estou mais familiarizado, tais como, "mundo social", "campo conceitual", "universo de sentidos", mesmo que isso signifique uma certa redução do espectro do pensamento nativo.

Mais uma vez peço imensas desculpas ao meu amigo se lhe pareci rude ou excessivamente irônico, e reconheço que as questões que ele me coloca são bastante ricas para pensar profundamente diversas questões do meu campo.

Um abraço

sexta-feira, 14 de março de 2008

Os Haitianos e o Futebol




Para o João Marcelo, todos os Ferrabrazes e todas minhas amigas que entendem e acompanham futebol
Já é pública e notória a paixão dos haitianos pelo futebol brasileiro. As incríveis cenas que foram vistas naquela famosa partida entre a seleção local e o Brasil, além do documentário que fala do jogo, comentei algumas vezes sobre o assunto. Mas o haitiano não é um apaixonado exclusivamente pelo futebol brasileiro. Ele é apaixonado por futebol de uma maneira geral.

Outro dia, numa quarta-feira, andando por Jacmel, caminhando desde a minha casa até o centro e de volta para a casa, depois de passar no pequeno mercado & farmácia St. Cyr, que fica no começo da Av. Barranquilla, a rota principal da cidade, e já no mercado havia reparado isto: todos estavam diante da televisão, assistindo ao jogo da Liga dos Campeões da UEFA entre Milan e um outro time. Espantei-me mais vi a reclamação da senhora gorda, dona do mercado, quando Kaká recebeu um cartão amarelo por um carrinho. Seguindo pela Barraquilla, via em cada canto (onde há energia elétrica de inversor ou gerador), especialmente nos pequenos comércios, barbearias, lojinhas e bares uma TV ligada no jogo de futebol e olhares atentos, fixos, acompanhando atentamente cada lance. Homens e mulheres assistindo juntos, naquela tarde, um jogo de futebol, com um interesse que só vi no Brasil em jogos de Copa do Mundo.

Meu amigo João costuma de dizer que Copa do Mundo é coisa de amador. Por isso que mulher gosta. É aquela farra. Ainda mais em jogo do Brasil. Mas em Copa do Mundo tem mulher que acompanha mesmo. Mas depois passa. Não digo isso falando de todas as mulheres e nem estou sendo machista. Tenho amigas que conhecem e gostam de futebol, só acho que não entendem muito porque quando não são Flamengo(a maioria inteligente), torcem por Botafogo (Bel Pacheco), Fluminense (Helena Tinoco) e algumas outras que acompanham seus times. Mas elas são minoria. Que o diga a minha irmã Ana, que em minha homenagem tem acompanhado os jogos do Flamengo na minha ausência.

Mas aqui (talvez elas sejam também minoria) as mulheres assistem jogos da UEFA Champions League. Sabe lá o que é isso? Isso é coisa de profissional do ramo. Tem muito marmanjo apaixonado por futebol que não tem paciência de ver Fenerbahce x Bayer Leverkussen, e os que têm, fazem isso por causa do Zico.

O haitiano parece mesmo ser apaixonado por futebol.

Nos últimos dois dias aqui em Port au Prince experimentei uma sensação nova em relação ao futebol. Assumi minha nacionalidade haitiana e torci pela nossa seleção em dois jogos pelo Pré-Olímpico da Concacaf. Mas o mais divertido e gostoso foi ver Mme. Evance e Rony, os empregados de Laeneck, torcendo animadamente pela seleção de seu país.

A narração do jogo em créole pelo locutor da TV é simplesmente hilária, pois parece rádio. Parece uma narração de rádio com as imagens. John Sutcliffe é o narrador da ESPN em créole. Ele lembra um pouco o Sílvio Luís, pelo bom humor e as constantes intervenções para além do jogo, com um jeito de narrar meio torcedor (não esqueço o famoso: “Queimou o filme do Brasil em Atlanta”, do Sílvio). A correria da voz lembra o José Carlos Araújo dos tempos da Nacional, o atual Luís Penido da Tupi, e o velho Doalcei Camargo, da antiga Tupi. Tem ainda um pouco do tom de epopéia dos saudosos Waldir Amaral e Jorge Curi.

A animação dos dois torcedores com cada lance, alguns deles nem tão perigosos assim, é ainda mais empolgante. Parece carregar uma certa ingenuidade. Pois eles reconhecem a fragilidade de sua seleção, diante de grandes times como Brasil, França, a atual campeã do mundo Itália, a Argentina. Mas este reconhecimento não diminui a paixão. Parecem torcedores do América do Rio, apaixonados e sempre esperançosos de um despertar que não acontece.

Mas hoje, sexta-feira, parece que o Haiti despertou! (Será que o Mequinha vai despertar e escapar do rebaixamento?)

O jogo de quarta-feira entre Haiti e Guatemala foi curioso. No primeiro tempo, o Haiti parecia desorganizado, um bando em campo, dando chutões, fazendo ligação direta entre defesa e ataque. A seleção guatemalteca, por seu turno, parecia mais organizada e consciente. Errava menos passes e, apesar de não ameaçar o gol haitiano, tinha um controle mais efetivo do jogo. E por esta razão, por volta dos 30 minutos do primeiro tempo, chegou a seu gol numa jogada de contra-ataque. O bom atacante da equipe, camisa onze, entrou pelo lado direito da área e tocou na saída do goleiro haitiano.

Se a equipe haitiana parecia desorganizada antes do gol, mostrou realmente que estava totalmente perdida em campo depois dele. O técnico sacou, antes do fim do primeiro tempo, dois jogadores do time, e o único que parecia saber minimamente o que fazer com a bola nos pés era o camisa 9 haitiano, Leonel Saint Preux. Parecia que a Guatemala ia levar fácil o jogo. Desanimei. Fim do primeiro tempo. Mas Mme. Evnace e Rony pareciam mesmo animados, esperançosos e ansiosos pelo segundo tempo. Durante o intervalo não entram as imagens geradas pela ESPN, só as imagens locais, e então, durante o intervalo, há um show, mas bem diferente daquele que a TV Globo mete nos intervalos com os chatos Sérgio Noronha, Falcão e Zé Roberto Right e o bobalhão do Arnaldo César Coelho. Aqui, as engraçadas propagandas da TV haitiana e videoclipes de bandas locais.

O segundo tempo reservava surpresas. E a melhor delas foi ver um time haitiano mais organizado, com boas atuações de Peterson Joseph, James Marcelin e do camisa 10 Jean Sony Alcenat. O Haiti começa aos poucos apertar, pressionar, tocar melhor a bola e errar menos passes. O gol parece questão de tempo, porém, o tempo vai passando e vai ficando cada vez mais difícil de sair um gol de empate. Aos 42 do segundo tempo, uma boa jogada pela esquerda, o cruzamento na área passa por todo mundo e encontra livre na pequena área Leccinel Jean-François. Ele domina e bate em cima do goleiro, a bola ainda volta para ele, para uma segunda chance, impossível perder agora. Parecia o empate, mas providencialmente aparece um zagueiro guatemalteco, a bola sobe e Leccinel tenta ainda mais uma vez, uma puxeta, e fura, a bola sobra para outro zagueiro que tenta sair jogando e sofre falta de Leccinel. Depois, foi só a Guatemala prender um pouco a bola no ataque e fim de jogo. A seleção haitiana sai derrotada.

Com a derrota para a Guatemala, a coisa se complicava para o Haiti, pois o Canadá arrancara um empate contra o México, supostamente a principal força do grupo. O Canadá, com o empate, assumia ares de favorito, posto que empatou e jogou bem contra o México. Já a Guatemala, espera tranqüila o jogo duro com o México, pois mesmo em caso de derrota, decidiria sua sorte, por conta própria contra o Canadá.

Torcendo pelo Haiti lembrei um pouco de como era torcer pela seleção japonesa do Zico. Difícil, pois a gente sempre achava que ia dar certo dessa vez, mas não dava. Apesar de tudo, o Galo saiu cacifado desta história e está subindo de prestígio, já que conseguiu colocar o seu Fenerbahce nas quartas de final da UEFA Champions League. Seria o máximo o Galo conseguir o título com uma equipe turca na Europa...

Pouco antes do jogo, disse a Rony que ganhar do Canadá para o Haiti, era uma missão difícil, mas ganhar do México, é a missão impossível. Mas para o povo da terra de Toussaint L’Ouverture e Jean Jacques Dessalines parece não haver coisa impossível! Disse também brincando que eu era um profeta, o profeta do futebol, e que o Haitia venceria o jogo.
E começa o jogo. O time canadense tem um centroavante Ornoch, enjoado, daquele tipo que vai em todas, divide todas, cava o tempo todo. Mas desta vez, o time hatiano parece ter entrado em campo mais organizado, tocando a bola e ameaçando mais o Canadá. Embora erre muitos passes e perca ingenuamente algumas jogadas, parece que o Haiti tem mais interesse em vencer a partida que os canadenses. Os gritos e a animação de Mme. Evance e Rony são entusiasmantes. Parece que hoje vai. O Haiti vai vencer!
Mas de repente, para meu espanto, mesmo jogando melhor que o Canadá, que sempre ameaça com Ornoch, aos 17 do primeiro tempo, Rosenlund marca o gol do Canadá. Uma ducha fria no entusiasmo haitiano. E no nosso entusiasmo, afinal fica difícil torcer assim...
O primeiro tempo segue com a equipe hatiana pressionando, mas os chutes saem tortos e sem direção. Não parece que o Haiti vai ganhar. Mas repito para meus amigos haitianos: "Eu sou um profeta, e estou dizendo que o Haiti vai ganhar".
Fim do primeiro tempo, intervalo para as simpáticas propagandas haitianas e um clipe de hip hop e outro de um cara cantando aquelas salsas melosas, tipo Rick Martin... Que venha o jogo e a narração animada de Sutcliffe...
Começa o segundo tempo e o Haiti, que já vinha melhor no primeiro tempo, passa a tomar conta do jogo. Alguns contra ataques do Canadá assustam, e numa entrada pela direita da área, junto com o zagueiro Parnel Guernier, Ornoch sofre um penalti (visivelmente o zagueiro hatiano vem segurando ele pela camisa) ignorado pelo árbitro. Comecei a pensar, como diria Sílvio Luís, "a barba da seleção haitiana está crescendo"...
As chances porém começam a ficar mais claras para o Haiti. E mais uma vez, Leonel Saint-Preux joga bem, ao lado de Sony Alcenat. Marcelin, menos brilhante que na partida anterior, parece sólido do meio campo. Bidrece Azor aparece em boas subidas pela esquerda. Haiti mon peyi!!!!
Vinte e sete minutos do segundo tempo... Ali eu vi porque os haitianos são tão apaixonados pelo nosso futebol, e como eles sonhar em emular este futebol que eles acreditam ser de sonhos...
Uma bela tabela pelo lado esquerdo da área, Leonel toca para Sony, Sony devolve dentro da área e Leonel, de primeira, toca para Alain Gustave na entrada da área. Sem deixar a bola cair ele bate de primeira, seco no canto direito do goleiro canadense Wagennar. Golaço! Uma jogada tipicamente "brasileira", a tabela e o chute seco de Gustave, à La Kaká... Lindo gol mesmo... Aí eu me empolguei de vez. E o time haitiano também, sem firula, com muita objetividade e algum talento, eles passam a buscar o gol da vitória, se expondo mais.
O técnico canadense mexe no time, põe um atacante camisa 9, Lombardo. Outro cara enjoado, parece aqueles atacantes argentinos, estilo Palermo, que estão ali, trombando, brigando e, de repente, deixam o seu. Pelo lado esquerdo do time canadense, um lateral, um neguinho enjoado à vera, camisa 12, Diaz Kambere. O jogo fica mais franco, mais aberto e mais animado. Não, não mais animado, pois já estava definitivamente seduzido pela seleção haitiana e não podia mais assistir com aquela neutralidade olímpica que a gente assiste um jogo de Copa do Mundo entre Áustria e Argélia... Não, naquele momento eu meu tornara totalmente haitiano!!!
Num lance na entrada da grande área, numa bola alçada, o goleiro canadense sai mal, rebate e a bola cai nos pés de Judelin Aveska. Ele toca por cima, com um pouco de força... Fora!!!! Ai que este gol não sai. Logo depois, num contra ataque pela direita, Ornoch toca bem para Hemming que toca rápido. Lombardo divide com o zagueiro, ganha e chuta... Mal! Grassedye! Bola por cima...
Aí, a magia da seleção haitiana, que havia me encantado, me conquistou de vez... São 39 do segundo tempo. Depois daquele lance por cima, os haitianos tentaram ainda umas duas vezes por cobertura, sem resultado... Mas veio o lance de magia. Leonel Saint-Preux, que já havia me chamado a atenção na primeira partida, e que vinha jogando bem novamente, pára, da intermediária, olha para o gol e vê Wagennar adiantado. Olhando o lance, voltei no tempo, ao jogo Brasil e Inglaterra na Copa de 2002, cobrança de falta da internediária. Ele toca lindamente por cima e a bola vai morrer mansamente no gol canadense. Eu grito: $#@&%$ GOLAÇO!!!!!
Um gol de sonho, "como aquele do Ronaldinho Gaúcho na Copa de 2002", digo eu para Rony, e como se me ouvisse, Sutcliffe na TV repete as mesmas palavras.
Aí começa o meu desespero... Faltam cinco minutos, mais os descontos... Cadê o Felipão para jogar umas bolas dentro do campo? Cadê aquela manha do Parreira ou do Vanderlei para meter um cara no time e ganhar um tempinho com a substituição??? Cadê aquela esperteza de um Cuca ou de um Papai Joel para fazer o time prender a bola na bandeirinha de corner e ganhar um tempo???? Não, o Haiti é puro entusiasmo! Sutcliffe, Rony e Mme. Evance falam em terceiro gol... E eu, digo: cautela e, misturando português com francês e créole, com alguns palavrões que meus amigos daqui não entendem, "Il faut qui retê la bola... Li beswan retê la pelota"...
Quatro minutos de descontos parecem uma eternidade. Saint Preux carrega a bola pelo lado direito, grito: Vai, fait comme Denílson, retê la pelota, prenn le balon... Diabo, como falo isso em francês ou créole????
A defesa canadense toma a bola e dá um chutão para a frente... Soberano da defesa o goleiro haitiano Placide rebate de soco, o juiz está no meio campo. Vai acabar, c'est fini, allez juiz, allez... Acaba com esse troço.
Fim! Vitória haitiana! Alívio e a descoberta de uma nova paixão que quero curtir muito: o futebol haitiano...
Abraços a todos

Provocando sem querer provocar

Olha, eu não quero provocar os botafoguenses não...
Mas falando sério...
Se não ganhar dessa vez, dos reservas do Flamengo...
Vai virar a maior piada da década...
São 15 jogos... São mais de 4 anos...
Sei não... O Manga deve estar até hoje se arrependendo do que dizia...

Saudações Rubro Negras

quinta-feira, 13 de março de 2008

Pobreza e Oportunismo

É incrível perceber que quanto mais pobre o país maior pode ser o oportunismo de algumas pessoas. Imagino que meus 13 leitores conhecem muito bem a história de Sílvio Santos e seu “Baú da Felicidade”. A história do famoso “self-made man” brasileiro, que começou a vida como camelô e se tornou um dos mais famosos e ricos milionários da comunicação no país. A fortuna de Sílvio aumentou consideravelmente nos tempos do “Milagre Econômico”, auge da ditadura militar, quando a inflação disparava, através de uma singela e esperta caixa de capitalização chamada Baú da Felicidade.

Através do sistema do “Baú da Felicidade” as pessoas pagavam mensalmente uma quantia determinada durante seis meses, que lhes garantia ao fim do carnê a compra de eletrodomésticos e produtos nas lojas próprias do Baú (até coisa de 10 anos atrás ainda havia uma ali, na Sete de Setembro, bem pertinho do IFCS), no valor total do carnê de mensalidades. O interessante é que ao fim de seis meses, com a inflação galopante, o dinheiro recolhido perdia o seu valor e os produtos, ao contrário, aumentavam seus preços. Em outras palavras, digamos que o sujeito depositasse mensalmente no Baú da Felicidade algo em torno de 20 reais por mês, ao fim deste período de seis meses ele retiraria na loja um produto de 120 reais. Acontece que quando ele começava a pagar o carnê, uma televisão de 29’ custava isso, no entanto, ao fim de seis meses, com a inflação, ele conseguia, quando muito, comprar um ferro elétrico ou um liquidificador.

Mas o carnê do Baú ainda lhe dava outros direitos. Entre eles o de “Rodar o Pião” no programa da TV e concorrer a automóveis e prêmios em dinheiro. Bastava para isso que você não atrasasse as mensalidades do Baú, e com isso estava habilitado a participar dos sorteios semanais que lhe levariam ao programa Sílvio Santos para concorrer ao grande prêmio do automóvel zero km. Num país onde a loteria esportiva era o grande sonho de ascensão social das pessoas pobres (lembro do “Dudu da Loteca” e do desdentado Miron), o Baú era até mais vantajoso, porque você recebia “ao fim do carnê todo o seu dinheiro de volta em mercadorias do Baú da Felicidade”. Faltava dizer que não era com “juros e correção monetária”. Lembro ainda hoje do jingle do “Atrasildo Atrasado”:

Esta é a história de Atrasildo Atrasado
Que vivia atrapalhado porque em tudo se atrasava
Perdia o ônibus, o trem e o serviço
Não cumpria compromisso
Sua vida não dava...
Certo dia o Atrasildo foi chamado
Por ter sido premiado com um carro do Baú
Mas seu carnê também estava atrasado e Atrasildo, desolado, ficou triste pra chuchu
Mas o que o pobre do Atrasildo não sabia é que a Esposa, que alegria
Havia pago a prestação
Graças a ela que de nada se esquecia seu carnê estava em dia
Ele ganhou o seu carrão

Os atrasos nas prestações ainda faziam você correr o risco de perder o investimento, pois, ao parar de pagar, perdia o direito a retirar seu dinheiro em mercadorias. A idéia brilhante é que o Baú retinha uma poupança das pessoas por um período de seis meses, podendo investir este valor em diversas aplicações de curto e médio prazo, na época de alta rentabilidade e devolver este dinheiro desvalorizado pela inflação em mercadorias ordinárias, e com isso ainda fazer a pessoa acreditar que estava fazendo um bom negócio.

Hoje parece ridículo que as pessoas possam ter acreditado nisso, mas nem tanto. Penso isso quando vejo as propagandas sobre marketing de rede e seus fiéis seguidores...

Nesse nosso mundo globalizado internético, os sonhos do homem médio comum não variam muito. Aqui como em muitos países pobres, pobres como o nosso Brasil, as pessoas sonham com uma boa casa, um belo carro, uma boa educação para os filhos, plano de saúde, uma aposentadoria confortável. Sonhos vendidos diariamente pelas muitas loterias nas TVs do Brasil, nos grandes negócios, nas “grandes oportunidades” abertas pelo marketing de rede. Sim, porque quanto mais pobre e quanto menos alternativas para um engajamento formalizado no mercado de trabalho, mais fácil fica para que essas “oportunidades de enriquecer” apareçam.

Tenho um colega que quase sempre manifesta o desejo incofessável de acreditar na idéia de um indivíduo maximizador, voltado exclusivamente para o cálculo e para adequação entre fins e meios. Para ele essa seria a única justificativa possível para que tal tipo de “oportunidade de negócio” prospere e atinja tantas pessoas.

Encontre alguém disposto a me dar US$ 500 e me indicar mais cinco pessoas dispostas e dar a ele US$ 500, que indiquem cada uma delas, pelo menos mais duas pessoas, que indicarão mais duas, e mais duas e ao infinito, e eu me tornarei o mais novo milionário do mundo. E tem mais, eu vou lhe dar 100 dólares para cada pessoa que você incluir no sistema. E é claro, que você não está “me dando” dinheiro, pois você adquire com este valor um kit de produtos de primeira qualidade, exclusivos, que são a última novidade em tecnologia, ou para garantir a saúde, o emagrecimento, o aumento do pênis, a conquista infinita de todos os seus sonhos...

Fácil, não?

Pois bem, foi assim a conversa que ouvi outro dia numa reunião em Jacmel...

Voltava para casa, e como a casa de Chantale fica a meio caminho entre a vila de Jacmel e minha casa, pretendia passar por lá para me informar de algumas coisas necessárias para a chegada do nosso grupo de pesquisa à Jacmel no mês que vem. Liguei e Chantale me disse que gostaria muito que fosse a uma reunião que ela estava me convidando. Disse que era uma coisa muito importante, que certamente me interessaria.

Imaginei que tivesse algo a ver com a vida política ou social de Jacmel, posto que tinha dito a ela no dia anterior que me interessava profundamente por tudo que dissesse respeito à vida cotidiana de Jacmel. Essa é também uma forma de diluir um pouco o foco sobre o vodu, para que, de alguma forma, ele apareça naturalmente nas conversas, de forma menos direcionada para a pesquisa. No dia anterior ela havia me contado sobre uma “caixinha” que ela e algumas pessoas fazem, para que mensalmente alguém retire ou quem tem alguma necessidade especial. Disse que isso me interessava e que queria conversar sobre isso com calma.

Fui lá para a tal reunião que imaginava que seria na sua casa. Porém, ao chegar lá encontrei a moça que trabalha lá e outras mulheres na varanda da frente da casa trançando cabelos. Ela me disse algo em créole que julguei ter entendido, mas na dúvida, resolvi ligar novamente para Chantale, e realmente havia entendido. A reunião era num restaurante boate (como vou descobrindo gradualmente que são muitos) que durante o dia (é claro) funciona somente com serviço de refeições, sobre um depósito de bebidas.

Entrei e logo Chantale me recebeu, dando-me uma bela caneta, com o logo GTN – Global Track Networks, ela me diz que é para anotar as coisas e fazer perguntas. Vejo um sujeito vestido num terno elegante, à frente de um laptop, falando em creóle que já viveu e estudou nos EUA, falando que as riquezas do mundo estão todas concentradas nas mãos de apenas 1% da população mundial, que Deus criou o mundo e a riqueza para todos, blá, blá, blá.

Pensei: igreja evangélica... Menos mal... Pensei na Diana Lima, e achei um bom mote para discutirmos juntos alguma questão como esta, fazendo uma comparação Brasil / Haiti. Ainda mais que o cara falava de Deus numa linguagem meio empresarial... A Teologia da Prosperidade chegou ao Haiti.

Mas logo depois a impressão se desfez, Não era mesmo igreja. Era só discurso empresarial, atravessado de algumas considerações sobre as virtudes do marketing de rede. Uma rápida crítica à Amway, e estamos diante dos mais novos e revolucionários produtos.

O melhor foi a explicação do cara para a escolha de sua empresa pelo Haiti. Porque eles não visam antes o lucro, mas a promoção da pessoa humana e a distribuição das riquezas do mundo. Falou que o sistema da Global Track Networks foi criado por um brasileiro. Foi quando Chantale me olhou, como se dissesse algo assim: “Olha, você também faz parte disto”. O cara migrou para os EUA (para o Wisconsin, creio eu) e lá criou este sistema, que está sendo implantado no Haiti, na Somália (?) e no Brasil (?????).

A tal apresentação foi se desenrolando e eu, entre o tédio e a irritação, queria me mandar logo, me livrar daquela coisa cacete em que eu havia me metido. Mas vieram então os formulários de “aplicação” para entrar no sistema...

Deixa eu ver se compreendo bem... Hum... US$ 500 em cheque ou grana viva... Sei... Mas pode pagar em cartão de crédito... Basta preencher o formulário, dando o número de seu cartão (Visa, American ou Mastercard) e o código de segurança de três números... Hum... Isso não me cheira bem... E para cada pessoa indicada a entrar no sistema, você recebe US$ 100... Hum... Eu te dou quinhentos e para recuperar meu “investimento”, eu tenho que colocar nessa fita mais cinco amigos meus... Eis a deixa!

Educadamente disse à Chantale que não era um “homem de negócios”, que era um intelectual. Ela, encantada como todo seguidor da religião do marketing de rede, disse que o próprio Gary (o cara da apresentação) havia estudado nos EUA, era doutor em alguma coisa lá de marketing e vendas... Eu ainda assim, disse que não era a minha praia, e que não tinha amigos suficientes no Haiti para colocar no “sistema”. Ela ainda insistiu que eu poderia chamar meus amigos do Brasil. Eu tive que dizer por fim que não me interessava. E vi sua decepção num muxoxo, e até uma certa irritação, quase dizendo para mim: Se não te interessa, vaza! Vazei...

Mas fiquei pensando no Baú da Felicidade, nos self-made men que surgem a cada dia nestas “preciosas oportunidades”... Joguei fora a minha chance de me tornar o próximo milionário... Lembrei ainda do fim dos anos 80, quando surgiram as “pirâmides”, que foram um belo golpe criado por algum espertalhão, mas que as pessoas juravam que podiam com isso botar a mão numa grana boa, na ilusão de que o dinheiro circula sempre de uma forma que vai voltar para as suas próprias mãos.

Sim, assim é mole... Como eu disse, se cada amigo meu me der US$ 500 e, digamos, que eu possa conhecer algo em torno de umas 100 pessoas... São 50.000 dólares... Se cada amigo indicar cinco pessoas, já estou com 300.000 e por aí vai...

O que mais impressiona é que lugares como o Haiti, onde o emprego é escasso, o trabalho mal remunerado, a qualificação é baixa, essas oportunidades aparecem quase como uma tábua de salvação que vai libertar os indivíduos de suas dificuldades endêmicas... Impressiona mais ainda é que caímos nessa conversa aí mesmo no Brasil, porque o emprego é escasso, o trabalho mal remunerado e a qualificação é baixa...

Pra pensar...



O corpo, a morte leva
A voz some na brisa
A dor sobe para as trevas
O nome, a obra imortaliza
Súplica, João Nogueira e Paulo César Pinheiro



Para meu amigo Guilherme Sá, que pediu que eu falasse do vodu...



Uma das coisas que mais faço desde que fui morar em Jacmel é caminhar. Minha casa fica a cerca de 3 km do centro da vila de Jacmel, logo, qualquer coisa que tenho que fazer, com exceção de comer os deliciosos akra malanga e beber a minha boa Prestige, que faço no Ballade, o bar restaurante na esquina de minha casa, sou obrigado a andar essa distância para fazê-la.


Como tenho dito, há um problema crônico no transporte público no Haiti. Não há ônibus formalmente instituídos, tal como conhecemo-los, os táxis idem e, em Jacmel, a grande força do transporte público são os moto-táxis. Já vi algumas vezes um dois (talvez o mesmo carro?) circulando com o sinal de “táxi” sobre ele, pelas ruas do centro de Jacmel. Mas ainda não faço a mínima idéia de como ele funciona. E como tenho, ou pelo menos tinha, pavor de andar de motocicleta, o que mais faço é andar. As caminhonetes passam sempre lotadas, mas já utilizei algumas vezes. O bom é conseguir subir nelas no centro e de lá seguir “à kote Ballade là” pelo preço de 2 dólares haitianos (10 gourdes). Porém, o meio de transporte mais rápido é mesmo a motocicleta.


Sempre tive pânico de motocicleta... Desde as queimaduras na parte interior da batata da perna que as meninas assanhadas da minha adolescência tinham até os tombos terríveis que alguns amigos tomaram, o pior deles o que meu amigaço Beto tomou em 1992, quando passou 6 meses com os dois braços e uma perna inteira engessados, ou do Marcelo que praticamente perdeu a sola do pé, e ainda meu primo Leandro, que fraturou as duas pernas e viu seu amigo, que ia de carona, morrer num acidente com moto... Enfim, motocicletas sempre representaram para mim um perigo permanente... Mas desde que cheguei à Jacmel, tenho sido sistematicamente obrigado a abandonar meu medo e montar em motocicletas e... “kote Ballade là, souplè”.


Enfim, em Jacmel (estou no momento em PaP) faço diariamente longas caminhadas. Especialmente quando acordo (muito) cedo “pou pwomennen nan la campagne”. Saio para fazer algumas caminhadas pelas estradinhas de terra batida que seguem da rua onde moro em direção ao mar. Passeios que rendem belas fotos. Em Jacmel os dias são realmente longos, pois desperto em torno das 6 horas da manhã, quando já há alguma luz. Não perdi, ainda, o hábito de dormir tarde. Então, às vezes vou dormir às 23 horas, ou às vezes mais tarde. Como já disse, não tenho nem internet em casa e nem luz o tempo todo. Normalmente a luz só chega por volta das 18 horas ou pouco antes de escurecer. Então, trabalho enquanto a bateria do laptop agüenta, e depois saio para fazer esses passeios.


Desde a minha primeira viagem ao Haiti e à Jacmel, em especial, comentei que achei impressionante a quantidade de pequenos túmulos ou conjuntos de túmulos próximos às casas, pelos caminhos que passei. Na estrada de PaP à Jacmel, principalmente a partir de Leógane, são inúmeras casas, os “lakou”, conjuntos de casas de famílias ou parentes próximos, onde é possível ver de tão perto os túmulos e as pessoas sentadas fazendo suas coisas normalmente, como se aquilo fosse mais um objeto da casa, um móvel, uma árvore ou, quem sabe, uma pessoa.Vi algumas vezes alguns deles com coroas de flores, vasos e velas acesas, mas sempre cercados de gente e próximos às casas.


Um dos passeios a pé que fiz foi até Cyvadier, uma localidade a cerca de 4 km da minha casa. Lá existe um hotel que tem o mesmo nome da localidade, com uma boa praia e o dono/administrador é um jovem extremamente simpático, onde é possível beber um suco ou uma cerveja gelada. Caminhei bastante neste dia, pois fui também por outras direções, onde poderia ver e fotografar o mar, antes de retomar a Route Barranquilla.


Neste dia o meu espanto com essa proximidade entre os túmulos dos mortos e as pessoas vivas chegou ao seu limite mais extremo, quando vi um grupo de crianças brincando tranqüilas sobre um túmulo com flores ainda frescas. Comecei a pensar nas idéias de poluição que são ensinadas para nós entre estas duas dimensões. Os mundos dos vivos e dos mortos em nossa cultura são radicalmente separados. Mesmo as religiões tratam essa separação de uma maneira muito precisa, estabelecendo limites, por vezes rigorosos entre estas dimensões.


Os restos dos mortos têm um caráter “poluidor” muitas vezes. A presença de um morto é um sinal de perturbação, seja ela visível ou invisível àqueles que crêem. O direito de enterrar os mortos, por exemplo, já foi objeto de conflito no Brasil Colônia com a criação do primeiro cemitério público em Salvador, contra os interesses das ordens religiosas e dos próprios fiéis que acreditavam ter o direito de enterrar os seus mortos nas paróquias e freguesias onde eles viviam, e não num terreno pré-determinado pelas leis públicas (o historiador João José Reis tem um estudo publicado sobre o tema). Mas de qualquer forma, neste caso ao menos, não se tratava de enterrar os seus mortos na própria casa, mas no cemitério da paróquia. Não é pouco significativa essa separação entre os mundos de vivos e mortos no campo das religiões.


Os ritos das mais diversas tradições religiosas estabelecem uma separação física entre estas duas dimensões de uma maneira radical. Mesmo os egípcios, que acreditavam numa existência post-mortem tão importante quanto àquela vivida, a ponto de terem desenvolvido diversas técnicas de conservação do corpo físico dos mortos e nos casos de reis e pessoas ricas, muitas vezes sepultarem junto com o morto suas riquezas materiais e as pessoas mais próximas de seu convívio. Enfim, não vou me alongar muito para dizer o quão estranho me é ver pessoas vivas e túmulos convivendo de forma tão natural como se não houvesse limites entre vivos e mortos.


Não falo nem do ponto de vista religioso, que me interessa particularmente, mas do ponto de vista das relações entre as pessoas. Mesmo o mais incrédulo ateu ou o agnóstico convicto hão de considerar que mortos e vivos não se misturam. Para estes principalmente, pois com o fim da existência física, o que resta ali é carne que vai apodrecer e virar partículas de carbono com o passar dos anos. A pessoa que existiu não existe mais. Mas de qualquer forma, estas pessoas não experimentam estar próximos de túmulos e nem vêem isso como algo natural ou agradável.


Aqui, vivos e mortos vivem num mesmo mundo. O que nos leva ao universo social do vodu. Mortos e vivos formam uma unidade indissolúvel, onde não se trata necessariamente de uma separação entre corpo físico e alma imaterial, mas de uma compreensão sobre a existência humana. As pessoas, no campo conceitual do vodu, são mais do que sua existência física, sendo esta apenas uma das possíveis dimensões da existência. O ser humano, a pessoa, é antes um conceito para além da matéria física da qual ela é feita. Logo, nem mesmo a noção de alma e a dicotomia corpo/alma, podem dar conta deste “conceito”, porque, como insisto não se trata de falar em duas metades, mas de uma unidade conceitual.


Ora, neste sentido, a morte pode não ser um lugar “poluidor”, porque ela passa a “não existir” de fato. Túmulos são apenas sinais de uma existência física que se encerra, mas que permanece constantemente junto dos vivos, que requer destes, atenção e cuidados. Que eventualmente se manifestam sob diversas formas requerendo dos vivos o cumprimento de suas obrigações com os mortos. Os mortos estão presentes o tempo todo e exigem o cumprimento de certas formalidades, não querem ser esquecidos, por isso, podem estar ali, o tempo todo, como alguém que nunca foi embora de fato, ou que deixou algo para que não fosse esquecido.


Quando estive aqui pela primeira vez imaginei que estes pequenos túmulos fossem apenas uma mera coincidência, em função de estarmos no campo, e que as cidades no campo não tivessem cemitérios públicos, como aqueles que vira em Port au Prince, Pétion Ville, Delmas. Porém, a minha surpresa e meu espanto aumentaram no ano passado, quando estive novamente em Jacmel, e circulando por uma área que ainda não conhecia da cidade, vi seu cemitério municipal. A coisa fica ainda mais confusa, se julgasse que as sepulturas no campo fossem túmulos pequenos e humildes, mas já vi grandes jazigos, de famílias “conhecidas” e mesmo o menor dos túmulos, nas mais humilde casa, não é uma cova rasa, marcada apenas com uma cruz. Há sempre uma pequena construção em alvenaria sobre estas sepulturas, indicando um cuidado particular em erguer um túmulo para o morto da família.


Ainda não sei exatamente como caminharão as minhas investigações por aqui, mas certamente estes túmulos e essa onipresença da morte deverão ser objetos de investigação. Mesmo que eu pretendesse me restringir exclusivamente aos aspectos econômicos da religião vodu, estes cuidados com os mortos pressupõem uma série de custos e despesas que são parte importante de uma discussão sobre a economia das religiões.


Bem, espero poder voltar a escrever com mais freqüência para os amigos...



Abraços e saudades






P.S.: Em pânico com o futuro do Fla na Libertadores, mas convencido que o 30° Título Carioca do Flamengo caminha célere... Fé em Deus e em São Judas Tadeu, nosso leal interventor.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Novidade

Ando meio sem disposição para postar mensagens...
Então, como "novidade" resolvi investir nas coisas antigas para ver se renovo o espaço.
Coloquei ao lado direito da página o link das postagens do antigo blog, desta maneira, quem está chegando agora começa a entender a história desde o seu começo, a minha primeira vinda ao Haiti. Quem já conhece, pode recordar algumas histórias... Enfim...
Já, já recupero a disposição de escrever e teremos novas notícias e postagens.

Beijo a todos!

terça-feira, 4 de março de 2008

Sem romantismo




Quando contei, ainda no blog antigo, a minha viagem de tap tap de Jacmel à Port au Prince, imagino que muitas pessoas ficaram encantadas com a possibilidade de viajar em um meio de transporte tão pitoresco e particular. Para quem conheceu, em meados dos anos 80, parecia ser como a viagem de ônibus para o paraíso de Visconde de Mauá. O ônibus velho, onde se misturavam pessoas, animais e cargas, a estrada de terra, sinuosa, cheia de pinguelas e precipícios, um clima de paz, amor e aventura, que fazia de uma viagem precária de quatro horas num ônibus desconfortável numa estrada ruim, uma doce e agradável festa.
É, pode haver certo romantismo e nostalgia no tipo de narrativa que faço, que nos levaria a um lugar mágico, onde o que é na realidade precário e desconfortável se converte numa grande aventura por um mundo novo e desconhecido. A verdade é que encarar rotineiramente tal viagem pode não ser tão romântico assim...
A distância entre Port au Prince e Jacmel não chega a ser superior a 70 km. No entanto, a viagem por este trecho, com muita sorte, pode durar no mínimo 3 horas. Para se ter uma idéia, seria mais ou menos como viajar durante as mesmas três horas para ir do Rio de Janeiro à Petrópolis ou Maricá. Digamos ainda que tal viagem seja feita na véspera de um feriado, por volta das 18:00 horas, no maior pico possível na Ponte Rio-Niterói ou na Rio-Petrópolis. Ok, bem vindo ao inferno dos veranistas. Agora, imagine isso cotidianamente, como algo que ocorre todos os dias no trânsito entre as duas cidades, Port au Prince e Jacmel. Ou você desiste de seu veraneio na praia ou na serra, ou começa a pensar nas alternativas para fugir desta loucura.
O problema é que as alternativas parecem não ser muitas...
Mesmo em um veículo particular, viajando em um bom ritmo pela estrada, você levaria, ainda assim, um bom e precioso tempo. Engarrafamentos constantes e estradas precárias é a regra por aqui.
Anteontem (domingo) saí de Belvil, na Route des Fréres, Pétion Ville, às 6:30 da manhã. A pé até a entrada do bairro, para pegar a primeira condução, uma caminhonete que vai até a “estação”, no cemitério de Pétion Ville. Com a mochila nas costas, com laptop e outras coisas, e uma bolsa de viagem cheia de coisas para a casa, que comprei em PaP (escorredor de louça, facas de cozinha, uma cafeteira, tábua de carne, entre outras coisas) caminhei por cerca de 10 minutos até a saída, onde peguei a caminhonete. Ia acompanhando Mme. Evance, que folga aos domingos, e vai para a sua casa na região próxima à Canapé Vert. Durante a semana ela dorme no emprego, na casa de Laeneck.
A viagem não se estende por algo mais que três ou quatro quilômetros ladeira a acima e, sem engarrafamentos, durou algo em torno de 30 minutos. Saltamos perto do cemitério de Pétion Ville e cruzamos a Delmas, em direção à esquina desta com a Av. Panaméricaine, no posto de gasolina National, de onde partem as caminhonetes que descem a avenida rumo ao “Centreville”, o centro da capital Port au Prince, rumo ao Champ Mars. De lá também partem as caminhonetes que seguem para o mesmo destino, pela Rt. Delmas. Como não havia caminhonetes ali, seguimos para a Rue Lamarre, esquina com Villate, e ali aguardamos por uma caminhonete que servisse para mim, que ia para o Champ Mars, e para Mme. Evance.
Mesmo quem está habituado a pegar as caminhonetes e tap taps pode se confundir com elas, e não saber exatamente qual delas vai para o destino que deseja. Todas vão para o Centreville, mas pelas diferentes rotas: Delmas, Panaméricaine ou Canapé Vert. Nossa espera deve ter durado algo em torno de dez minutos, e depois de “embarcados” no pequeno caminhão com desconfortáveis bancos de madeira, foram ainda mais cinco minutos até partir. Como na havia engarrafamentos, chegamos ao Canapé Vert em vinte minutos, onde Mme. Evance saltou, fazendo recomendações de que mantivesse atento para descer no Champ Mars, informou ao motorista, que deu um ok. Bem somando tempo que viajei até agora, sem sair do eixo Pétion Ville/PaP já temos uma hora e quinze minutos de viagem.
Saltei no Champ Mars, onde tinha três opções para chegar à Portail Leogane, onde fica a “estação” dos tap taps para Jacmel e diversas cidades: a primeira era pegar um táxi, que não conheço bem, a segunda, pegar uma caminhonete que vem da Delmas 65 para Portail Leogane e a terceira era andar a curta distância de pouco mais de 600 m entre o Champ Mars e a “estação”. Claro que optei por andar, pois conhecia melhor o caminho a pé, mesmo sem tê-lo feito, pelas tantas vezes que passei de carro por ali, para ir à Université Quisqueya, para ir à Jacmel, quando estivemos no Oloffson, etc.
Aliás, foi ótimo andar pelo Champ Mars e ver as pessoas por lá, os homens adultos jogando futebol como crianças, as pessoas fazendo jogging, passeando simplesmente pela bela praça e seus monumentos que contam as histórias dos heróis da libertação nacional do Haiti. Como tinha pressa, não parei muito para olhar, porém, como preciso voltar ao Centreville de PaP para resolver coisas no Ministério das Relações Exteriores local, relativas à minha permanência no país, devo voltar em breve à PaP e aproveitar para ver com mais calma o Champ Mars.
Segui pela Rue Capoix, onde saltei, dobrei a Rue Magny, bem defronte ao Museu D’Art Haïtien, que visitei em minha primeira viagem ao Haiti, no ano de 2006, e penso que já é hora de voltar por lá. Segui em direção a Rue O. Durand, onde ficam as faculdades de Direito e Economia, de Odontologia e de Medicina da Université D’Etat. Em frente à faculdade de Direito e Economia fica a embaixada dos Estados Unidos, que está sendo transferida para o Blvd. 15 de Octobre, bem distante da confusão do centro de PaP, uma espécie de fortaleza, numa área com pouquíssimas construções e bem mais próxima ao aeroporto Toussaint L’Ouverture.
Caminhei por esta rua até o Estádio Sílvio Cator, onde jogou a seleção brasileira quando esteve aqui. No dia anterior, haviam jogado a equipe do Aigle Noir, atual campeão nacional, e ao que parece, time de maior torcida, contra o Violette. Neste domingo jogariam Dom Bosco, time pelo qual se destacou o recém falecido Manno (Emanuel) Sanon, um dos maiores craques da história do futebol haitiano, comparado pelos jornais locais com Kaká, e a equipe da Associação Desportiva de Cap Haïtien. Passando do Estádio, mais uns 100 m, estamos na “estação” dos Tap tap.
Chegando lá, como já disse no post anterior, falando da gentileza e da solicitude dos haitianos, parei no mesmo lugar onde havia desembarcado na sexta feira, quando vim de Jacmel para PaP, porém, um homem me perguntou: “Les Cayes?”, eu respondi, “Non, Jacmel”. Imediatamente ele apontou um ônibus, tipo aqueles escolares bem antigos, de filme americano. Na porta, um sujeito com pequenos bilhetes carimbados com o nome de uma associação de condutores de veículos e o trecho da viagem: Jacmel/PaP. Como achei que a passagem custava 25 dólares haitanos (125 gourdes), dei-lhe 150 gourdes, ele rapidamente perguntou para onde eu ia, eu disse: Jacmel, ele me devolveu 50 gourdes e disse que a viagem custava apenas 20 dólares.
Antes que alguém imagine que se trata de uma “estação rodoviária”, organizada, com guichês, placas informando as linhas e plataformas, informo-lhes que não é bem esse o caso. Tudo é muito improvisado e meio tumultuado. Várias pessoas vendendo inúmeras coisas. Mulheres nas ruas vendendo comida (de um modo geral o haitiano come muito nas ruas): frango ou cabrito frito, banane pisée, riz ak pwa (arroz com feijão), macarrão. Vendedores de água e refrigerantes, biscoitos, pequenos mercados. Aliás, em Portail Leogane há também um grande mercado de rua. Tudo se confunde e se mistura de uma maneira que não dá para saber bem onde as coisas são ou estão.
Saber como ir e para onde ir para um estrangeiro, que domina mal o creóle, depende realmente da generosidade e da boa vontade das pessoas. E elas são generosas e solícitas. Com isso, entrei em no tal ônibus escolar. Sentei no fundo, no último lugar (pelo menos supunha eu que era), numa espécie de tábua acolchoada, sobre o estepe do ônibus. Ali ainda havia bolsas, malas e sacos de cereais em grão (arroz e milho). Encostei-me em um deles achando que iríamos sair logo, afinal, o ônibus estava cheio.
De repente: Avancê!
Entra um homem, com algo em volta dos 50 anos de idade e vai se colocar no canto, da janela, ao lado do rapaz que estava ao meu lado sobre a tábua acolchoada e o estepe. Aos poucos, dos bancos que são para duas pessoas, são estendidas tábuas, continuações dos assentos vão sendo ocupadas até o ônibus lotar ao máximo. Estou no fundo do ônibus, na sua saída de emergência, quando um sujeito bate na porta e pede para abrir. Não acreditei. Será que vai entrar mais alguém? Não, o sujeito me manda levantar para meter no ônibus mais dois grandes sacos de arroz. Ficava até um pouco mais confortável, tinha agora onde encostar com um pouco mais de conforto.
São 8:30 h da manhã. Já faz duas horas que saí da casa de Laeneck para ir à Jacmel. Começa, enfim, a viagem. Finalmente, absolutamente lotado, sem qualquer possibilidade de locomoção e de segurança para os passageiros em seu interior o ônibus sai. Quero dizer que este é um dos meios de transporte mais seguros, pois os clássicos e coloridos tap taps e os caminhões adaptados para passageiros, são ainda mais desconfortáveis e inseguros. Como disse antes, não quero glamourizar as coisas. Estou contando como é que me senti na última viagem.
Sem engarrafamentos o ônibus segue pela Bicentenaire (Blvd. Harry Truman) até Bizoton, onde segue por uma outra rota ainda mais precária, mas com menos veículos. O ônibus sacode e pela janela entra uma poeira fina da estrada.
Depois de Gressier a rota fica um pouco menos acidentada até Leogane. Aí passamos por algumas concentrações grandes de gente, mercados que se formam e “estações” de veículos, tal como aquela de Port au Prince. O ritmo tem que ser um pouco mais lento. Estamos mais ou menos à metade do caminho, pois ainda temos que começar a subida. São mais de 9:40 h da manhã. Viajei algo em torno de 30 km, e isto até agora já levou três horas.
Em Carrefour Dufort começa a subida. Ali também fica a bifurcação, de um lado, seguimos para Jacmel, subindo à direita em direção ao sudoeste do país. De outro lado, seguindo para o Departamento de Grande Anse, cuja capital é a cidade de Jéremie, e o departamento Sul, cuja capital é Les Cayes. De qualquer forma, para ir à Jéremie, é necessário seguir pela rota para Les Cayes. Na subida há incontáveis pequenas cidades e seus mercados de beira de estrada. O ônibus segue por um longo maciço, e depois de quase três horas de viagem, avista-se ao longe a Baía de Jacmel. Começa a descida.
No caminho da descida ainda nos deparamos com bem vindas obras de recapeamento da estrada. Não fosse o fato de ser uma estrada estreita, de mão dupla, sem acostamento, tais obras não causariam grande transtorno. Ao passar pelo fim das obras, reparo a ausência de um sinalizador. Como estou no fundo do ônibus, também não notara sua ausência no começo do trecho de mais de 500 m de obras em uma descida sinuosa. Chegamos na parte plana da rota que leva à Jacmel. Cruzamos um rio com pouca água, em função da estação seca. Mais duas pontes e enfim, a “estação” de Jacmel. Faltam quinze minutos para o meio dia. Chantale me disse para ligar assim que chegasse, pois ela e um amigo iriam me pegar na “estação” que é fora dos limites da cidade.
Foram cinco horas e quinze minutos de estrada e agora, aguardava por mais 20 minutos a chegada de Chantale.
Bem, o fato é que, gentilmente, Chantale me convidou para almoçar em sua casa e com isso, chegamos lá por volta das 13:15 h. Na minha casa, que fica à 3 km do centro da vila de Jacmel eu só chegaria por volta das 16 horas.
Essa viagem num tap tap ou num caminhão “adaptado” pode ser ainda mais dura e cansativa. Sem romantismo e sem glamour, deve ser realmente difícil conviver com a precariedade do transporte público no Haiti. Não há como negar o quão pode ser infernal um dia de viagem como esse. O incrível é que na sexta feira Chantale havia viajado junto comigo para Port au Prince e voltado no fim da tarde para Jacmel. Imagino que ela deva ter passado pelo menos entre sete e dez horas viajando naquele dia. De fato, o percurso de Jacmel ao Portail Leogane, em Port au Prince, às vezes, leva menos tempo, pois se escapa dos engarrafamentos da capital. Naquela sexta mesmo, havíamos levado três horas para ir de Jacmel ao centro da Capital. Levei ainda mais uma hora para chegar à Rte. des Fréres, à Belvil.
P.S.: As fotos são de dentro de dois ônibus diferentes, no entanto, o procedimento é o mesmo: o ônibus só sai quando está absolutamente lotado, sem lugares.

As duas viagens que fiz, de ida e volta de Jacmel à PaP (Port au Prince), serviram para pensar uma série de coisas sobre este país e suas pessoas. Uma vez, quando voltava daqui de Jacmel para a casa de Laeneck, logo após fechar o negócio do aluguel da casa, vendo as críticas que Loulou Smarth, um sociólogo de quem já falei aqui, grande amigo de Laeneck, e este faziam à desordem das ruas, e tudo mais o que falavam sobre os “problemas do subdsenvolvimento haitiano”, com certa irritação, perguntei-lhei o que ele gostava em seu país. Loulou não notou a minha irritação e, se notou, foi gentil demais em sua resposta.


Falou que amava o povo daqui, o clima, o país e suas belezas naturais, e todas as coisas, mesmo as ruins. Que havia vivido no México nos anos 70 e 80, e que lá vira também grandes problemas, talvez provocados pelas mesmas razões: pobreza endêmica, desigualdades sociais, ausência de políticas voltadas para as populações pobres, para lhes proporcionar saúde, educação e alimentação adequadas, mas que vira também agentes políticos capazes de transformar a vida política do país e algumas instituições bastante fortalecidas. A própria UNAM (Universidade Autônoma do México), as organizações populares, enfim, coisas que também vê no Haiti, que estão, de alguma forma desarticuladas. E voltou-se enfim para o problema do Estado Haitiano, que historicamente possui uma relação tensa com a sociedade, e para as elites nacionais (da qual, de alguma forma, como intelectual ele faz parte) que não se interessam em mudar as coisas de um lado ou, de outro lado, são desarticuladas (no caso os partidos e organizações políticas, e os intelectuais).


Há entre nós, brasileiros, um hábito saudável de falar mal de nós mesmos. De fazer piada com o que é ruim e administrar um cotidiano às vezes por demais adverso e cheio de percalços. Creio que neste ponto, mais uma vez, somos povos muito parecidos, brasileiros e haitianos. Mas por outro lado, vejo neste jeito de falar mal de si mesmo, pelo menos entre os intelectuais e as elites às quais pude ter acesso, uma certa melancolia ou rancor, quase um desespero diante de um mundo que é impossível de transformar. Já as pessoas das ruas, os empregados domésticos, a “gente comum” do país, ao contrário, parece lidar com grande desembaraço com um país onde tudo parece ir contra você, contra a sua sobrevivência diária. Sei que meu entusiasmo com essas coisas pode ser exagerado, mas é isso que venho sentindo aqui desde que cheguei e cada vez que ando sozinho ou com gente como Chantale, minha amiga de Jacmel, e Mme. Evance, ou que sentia quando andei com Fritz, na conversa com Polo Dubois, da livraria Pleiade.


Há de fato precariedade, pobreza, dificuldades, sujeira e lixo nas ruas, transporte incipiente e desorganizado, mas as pessoas seguem suas vidas com grande desembaraço. Onde parece impossível, as pessoas vão vivendo. É claro que isso não quer dizer que isso aqui é uma maravilha, ao contrário, às vezes parece um inferno, às vezes irrita demais e nos cansa, um lugar onde falta (quase) tudo. Às vezes assusta, ver o estado de conservação das carnes no mercado de Jacmel, por exemplo, e pensar como e onde vou comprar as coisas para comer. Pensar que o melhor é comprar uma galinha viva e matar, depenar e limpar, eu mesmo, mas pensar depois que com 6 a 10 horas de eletricidade por dia, não sei como vou conservar na geladeira sem que se deteriore. E por aí vai...


Laeneck vive me advertindo dos perigos das ruas daqui, como se a gente deste país fosse virtual e naturalmente perigosa. Sim, há um clima de violência no ar algumas vezes, uma violência latente, como “um barril de pólvora com uma pessoa fumando tranquilamente em cima dele”, tal como vemos no nosso mui amado e gentil Rio de Janeiro. Não é isso que sentimos às vezes por aí, cada vez que se queima um ônibus, cada vez que há um tiroteio nas ruas e uma morte por bala perdida, a cada ação do BOPE ou da CORE nos morros, a cada conflito entre facções criminosas.
O curioso disso é que Laeneck insiste que aqui no Haiti não há vontade do Estado em combater o crime, a violência nas ruas, em organizar o espaço público, em disciplinar a vida nas ruas, fala de UMA AUSÊNCIA DO ESTADO... Qual é o discurso mais freqüente sobre as crises que afetam a vida nas ruas do Rio de Janeiro e, atualmente, na maior parte das grandes capitais do país? Falta de ação e de interesse do Estado. Ausência de sua ação em áreas capitais da vida urbana. Ou ainda, sua incapacidade de chegar às áreas onde realmente se faz necessário. Quantas vezes não cansamos de ver as matérias do Jornal Nacional sobre crianças de rincões distantes do país que viajam em caminhões precários, durante horas, para assistir aula. Onde é o Haiti?


Cada vez mais estou convencido que o perigo das ruas daqui, do qual Laeneck fala tanto, não é maior do que aquele ao qual estamos tão habituados. Ele só é maior na medida em que não conhecemo-lo ou controlamos sua extensão. Quanto mais habituados ao país e necessitando de menos mediações para chegar aos lugares, mais conhecemos os riscos e podemos controlar-lhes. Em um ano creio que saberei lidar com mais facilidade com as coisas.


É óbvio que algumas imagens que temos daqui são demasiado chocantes. Vendo a pobreza de certos lugares, a sujeira e lixo acumulado nas ruas, e as imagens de violência das crises políticas, da parte do Estado e interpessoal, e mesmo assumindo a distância necessária sobre a categoria violência, quase sempre uma forma de acusação, imagens de gente sendo apedrejada, linchamentos, não são fáceis de lidar. Sim, há perigos. Mas não há perigos num lugar onde ônibus são queimados com gente dentro ou que pessoas são “assadas no microondas”?


É compreensível, de certo modo, a imagem que Laeneck faz às vezes de seu povo, e entendo que ele apenas preza pela minha segurança pessoal, como faríamos com qualquer estrangeiro, ou mesmo alguém de outro estado do Brasil, que chegasse ao Rio de Janeiro, essa imagem que ele faz é por vezes exagerada. Diz ele que as pessoas roubam a sua bolsa nas caminhonetes e tap taps ou nos mercados de rua. Sim, pode ser, como o fazem nos ônibus do Rio, não os assaltantes com armas na mão, que ainda não vi por aqui, mas batedores de carteiras, que podem agir também no meio do Saara, nas ruas de Madureira, no Camelódromo.


O que vejo, no entanto, quando pego uma caminhonete, é uma grande gentileza e uma imensa disposição de ajudar, uma solidariedade e uma simpatia, não com um blanc nwa (estrangeiro) como eu, mas com todo mundo que sobe numa caminhonete. Pa gen place cherri (não tem lugar, meu caro(a)) ou Avancê (avance para dar espaço) são palavras frequentemente ao entrar numa caminhonete, mas as pessoas querem dar um jeito para você embarcar. Seguram-te para não cair, ajudam a sentar, pegam as suas bolsas cheias e assentam elas em algum lugar.

Parece que as pessoas estão sempre dispostas a te ajudar. Sabem que você não compreende bem a língua, percebem e tentam fazer com que as coisas fiquem mais claras e compreensíveis, repetem várias vezes a mesma frase, pacientemente. No que diz respeito, por exemplo, à dificuldade de fazer a conversão rápida entre gourdes e dólares haitianos, até agora não houve uma vez sequer que alguém tenha sido desonesto. Já houve situações em que eu cheguei a dar dinheiro demais e a pessoa fez questão, didaticamente, de me devolver. Houve algumas vezes também que, por teste, dei dinheiro demais, e as pessoas devolvem. Já cometi também uma indelicadeza, quando achei que um sujeito havia me cobrado demais por uma garrafa de água mineral. Fiquei tão sem graça, que não sabia onde me esconder. De fato, quando notam que você é estrangeiro, eles muitas vezes dão logo o preço em gourdes, para economizar trabalho.

Laeneck me disse outro dia, ao ter que circular por pelo menos três postos de gasolina em busca de combustível para o carro, que o problema do Haiti é que as coisas são excessivamente informais, não há a menor previsibilidade das coisas. Posso até concordar que é a vida fica demasiado complicada quando não podemos contar com as coisas ali, organizadas, prontas para utilizar. Talvez por ser acostumado com a nossa desordem brasileira e ver a quão organizada ela pode ser diante de outros países, não me incomode tanto com as coisas daqui. Por outro lado, de fato a imprevisibilidade, por exemplo, com o transporte público daqui é assustadora.

Quando Laeneck fala de seu incômodo com essa informalidade, às vezes me rio, e pergunto se ele não está falando do Brasil. O mais engraçado é que quando digo a ele, ele ri também e acha curiosas as semelhanças entres os dois países. Claro que as coisas são muito diferentes aqui. Há uma carência e precariedade maior, sem dúvida alguma. Mas há uma incrível semelhança, como venho insistindo. Sobretudo quando olhamos para os dois povos e suas instituições de cada país, Brasil e Haiti. O Haiti é aqui, mas pode ser aí também. Aliás, pode ser em um monte de lugares.

No ano passado, junto com meu orientador de tese Federico Neiburg e com outro professor e grande amigo, Fernando Rabossi, tive a oportunidade de ministrar um curso sobre Estados Nacionais em perspectiva antropológica. A experiência foi mais do que reveladora, sobretudo porque me serviu para pensar uma série de coisas relativas à minha partida para o campo para realizar esta pesquisa. Quando olho agora as coisas daqui, pensando no Brasil, as conversas com intelectuais daqui, especialmente Laeneck, reflito sobre as representações de certos intelectuais sobre os dois países.

As leituras de “Comprendre Haiti”, de Laeneck Hurbon (Paris: Karthala, 1987), e “Carnavais, Malandros e Heróis”, de Roberto Da Matta, são reveladoras sobre os dois países e sobre seus intelectuais. Há uma idéia subjacente de que os dois países têm um problema, uma espécie de pecado original, que é difícil superar, sobretudo pelos objetos de comparação subjacentes às duas obras: os EUA, de Da Matta e a sombra da “civilização” francesa e sua república, para Laeneck. Se para Da Matta, o holismo brasileiro não consegue forjar uma sociedade individualista republicana, de um lado, de outro lado, para Laeneck, a divisão essencial do país em duas metades separadas e incapazes de se somar, jamais poderá formar uma sociedade uma e uma república comme il faut.

Porém, é óbvio, estados nacionais não nascem prontos, são fruto de longos processos históricos, de crises, conflitos e tensões que vão ordenando e, às vezes, direcionando as forças sociais. E como já disse repetidas vezes, os modos de regulação social não estão exclusivamente no Estado, como pensam muitos.

Isto me leva exatamente ao debate que travei recentemente na casa de Laeneck com um cientista político francês, radicado em Guadaloupe, onde leciona numa universidade local, que participou daquele colóquio que falei aqui, na Université Quysqueia, sobre Estado, Governança e Desenvolvimento logo quando cheguei.
Quando falei de minha pesquisa, do interesse pelos mercados e de nosso entusiasmo com o “dólar haitiano”, enquanto moeda, ele minimizou. Disse que não se tratava de uma moeda, mas de uma unidade de conta, pois não existia enquanto meio físico, e que moedas, do ponto de vista da economia, têm que ter o selo do Estado. Disse que já havia vivido no Congo, e que o mesmo processo já havia ocorrido com relação a conversão dos francos belgas na moeda local após a independência. Que era uma tendência das pessoas manterem as unidades de conta, apesar das novas moedas.

Falei para ele que não era o caso... Como brasileiro, em 40 anos de vida, conheci pelo menos cinco moedas diferentes, e em nenhuma destas situações havia presenciado algo deste tipo. Que não se tratava disto. Falei que umas das funções da moeda é justamente ser uma unidade de conta e insisti com ele sobre as discussões antropológicas sobre dinheiro, falei de Keith Hart e seu “Heads and Tails”, de Viviana Zelizer e a multiplicação de moedas, que há uma série de discussões na antropologia que se interessam não pelo que o dinheiro é “oficialmente”, ou seja, para economistas ou para Estados nacionais, mas para as pessoas que usam ele no dia a dia e o que dizem sobre este dinheiro. Irredutível, ele insistia que em todos os processos pós-coloniais na África, onde vivera, eram marcados por estas conversões, mas que no fim, prevalecia a visão daquilo que o Estado entende como moeda.
Achei interessante seu ponto de vista, mas discordei veementemente, pois expliquei algumas vezes a ele que as pessoas quando vêem uma moeda de 5 gourdes não falam em 5 gourdes, mas em um dólar haitiano. Logo, como antropólogo, me interessa essencialmente o que dizem as pessoas e como elas operam o mundo a partir do que dizem sobre ele. Disse a ele que palavras criam mundos. E de fato, acredito nisso...
Aliás, a tradição cristã diz: “No princípio era o Verbo(...) e o Verbo se fez carne e habitou entre nós”. Nada mais interessante para pensar como as palavras podem de fato mover mundos. Para antropólogos, principalmente, mais do que discursos palavras exprimem modos de agir, o que se diz sobre as coisas feitas é fundamental para a compreensão das coisas que presenciamos e descrevemos.
Ele insistia, pois do ponto de vista da economia, uma moeda só existe enquanto um símbolo reconhecido publicamente, afiançado pelo Estado. Foi aí que disse a ele, que o Estado não é o único lugar de regulação e de consenso social. E que se os agentes sociais criam uma outra moeda, pois afinal uma das funções da moeda é ser uma unidade de conta, reconhecida publicamente, e o que torna o caso do dólar haitiano excepcional para a análise é justamente a capacidade que os atores sociais têm de construir um consenso que foge às normas econômicas estabelecidas no âmbito do Estado.

Uma vez, no meio de um engarrafamento na “estação” dos tap taps na esquina entre as ruas Gregóire, a Av. Panamericaine e a Rte. Delmas, ficamos, eu e alguns amigos brasileiros que aqui estavam para um Fórum de Pesquisadores, nos perguntando como é que se fazia para funcionar aquele tráfego intenso das 18:00 h. E as pessoas nos ajudavam a passar com o carro, saindo do meio da confusão das caminhonetes que iam para de Pétion Ville para o centro de Port au Prince. Assim são os hatianos, informais, mas solícitos e dispostos a fazer as coisas funcionarem da melhor forma.
Não tenho uma visão romântica das coisas daqui. Pelo contrário e meu próximo post tem a ver exatamente com isso. Não vejo de forma glamourizada a loucura do cotidiano daqui, nem quero ser aquele antropólogo politicamente correto que fica sendo generoso o tempo todo com aquilo que não compreendo e que me é estranho. Mas devo admitir que, certas vezes, não posso concordar com algumas críticas às “coisas que não funcionam”, sem pensar uma solução para elas.

Insisto apenas em um ponto, quanto mais conheço as pessoas daqui, mais é possível se encantar com elas e concordar com Loulou: o povo daqui é sensacional. São herdeiros e portadores de uma das histórias mais incríveis da humanidade, são gentis, hospitaleiros e generosos. Talvez aqui, como disse Sérgio Buarque de Hollanda sobre o brasileiro, estamos diante do homem cordial, não por ser um povo gentil, mas justamente por ser um povo que age segundo o coração, tal como os brasileiros, tal é nossa própria imagem, vejo no Haiti um espelho do Brasil. Para o bem e para o mal.
Abraços a todos
Saudades, mas adorando Jacmel
P.S.: Mengão na Libertadores... É hora de calar o Estádio Centenário, como eles um dia calaram o Maracanã. A Nação Rubro Negra deve isto ao Brasil