terça-feira, 4 de março de 2008


As duas viagens que fiz, de ida e volta de Jacmel à PaP (Port au Prince), serviram para pensar uma série de coisas sobre este país e suas pessoas. Uma vez, quando voltava daqui de Jacmel para a casa de Laeneck, logo após fechar o negócio do aluguel da casa, vendo as críticas que Loulou Smarth, um sociólogo de quem já falei aqui, grande amigo de Laeneck, e este faziam à desordem das ruas, e tudo mais o que falavam sobre os “problemas do subdsenvolvimento haitiano”, com certa irritação, perguntei-lhei o que ele gostava em seu país. Loulou não notou a minha irritação e, se notou, foi gentil demais em sua resposta.


Falou que amava o povo daqui, o clima, o país e suas belezas naturais, e todas as coisas, mesmo as ruins. Que havia vivido no México nos anos 70 e 80, e que lá vira também grandes problemas, talvez provocados pelas mesmas razões: pobreza endêmica, desigualdades sociais, ausência de políticas voltadas para as populações pobres, para lhes proporcionar saúde, educação e alimentação adequadas, mas que vira também agentes políticos capazes de transformar a vida política do país e algumas instituições bastante fortalecidas. A própria UNAM (Universidade Autônoma do México), as organizações populares, enfim, coisas que também vê no Haiti, que estão, de alguma forma desarticuladas. E voltou-se enfim para o problema do Estado Haitiano, que historicamente possui uma relação tensa com a sociedade, e para as elites nacionais (da qual, de alguma forma, como intelectual ele faz parte) que não se interessam em mudar as coisas de um lado ou, de outro lado, são desarticuladas (no caso os partidos e organizações políticas, e os intelectuais).


Há entre nós, brasileiros, um hábito saudável de falar mal de nós mesmos. De fazer piada com o que é ruim e administrar um cotidiano às vezes por demais adverso e cheio de percalços. Creio que neste ponto, mais uma vez, somos povos muito parecidos, brasileiros e haitianos. Mas por outro lado, vejo neste jeito de falar mal de si mesmo, pelo menos entre os intelectuais e as elites às quais pude ter acesso, uma certa melancolia ou rancor, quase um desespero diante de um mundo que é impossível de transformar. Já as pessoas das ruas, os empregados domésticos, a “gente comum” do país, ao contrário, parece lidar com grande desembaraço com um país onde tudo parece ir contra você, contra a sua sobrevivência diária. Sei que meu entusiasmo com essas coisas pode ser exagerado, mas é isso que venho sentindo aqui desde que cheguei e cada vez que ando sozinho ou com gente como Chantale, minha amiga de Jacmel, e Mme. Evance, ou que sentia quando andei com Fritz, na conversa com Polo Dubois, da livraria Pleiade.


Há de fato precariedade, pobreza, dificuldades, sujeira e lixo nas ruas, transporte incipiente e desorganizado, mas as pessoas seguem suas vidas com grande desembaraço. Onde parece impossível, as pessoas vão vivendo. É claro que isso não quer dizer que isso aqui é uma maravilha, ao contrário, às vezes parece um inferno, às vezes irrita demais e nos cansa, um lugar onde falta (quase) tudo. Às vezes assusta, ver o estado de conservação das carnes no mercado de Jacmel, por exemplo, e pensar como e onde vou comprar as coisas para comer. Pensar que o melhor é comprar uma galinha viva e matar, depenar e limpar, eu mesmo, mas pensar depois que com 6 a 10 horas de eletricidade por dia, não sei como vou conservar na geladeira sem que se deteriore. E por aí vai...


Laeneck vive me advertindo dos perigos das ruas daqui, como se a gente deste país fosse virtual e naturalmente perigosa. Sim, há um clima de violência no ar algumas vezes, uma violência latente, como “um barril de pólvora com uma pessoa fumando tranquilamente em cima dele”, tal como vemos no nosso mui amado e gentil Rio de Janeiro. Não é isso que sentimos às vezes por aí, cada vez que se queima um ônibus, cada vez que há um tiroteio nas ruas e uma morte por bala perdida, a cada ação do BOPE ou da CORE nos morros, a cada conflito entre facções criminosas.
O curioso disso é que Laeneck insiste que aqui no Haiti não há vontade do Estado em combater o crime, a violência nas ruas, em organizar o espaço público, em disciplinar a vida nas ruas, fala de UMA AUSÊNCIA DO ESTADO... Qual é o discurso mais freqüente sobre as crises que afetam a vida nas ruas do Rio de Janeiro e, atualmente, na maior parte das grandes capitais do país? Falta de ação e de interesse do Estado. Ausência de sua ação em áreas capitais da vida urbana. Ou ainda, sua incapacidade de chegar às áreas onde realmente se faz necessário. Quantas vezes não cansamos de ver as matérias do Jornal Nacional sobre crianças de rincões distantes do país que viajam em caminhões precários, durante horas, para assistir aula. Onde é o Haiti?


Cada vez mais estou convencido que o perigo das ruas daqui, do qual Laeneck fala tanto, não é maior do que aquele ao qual estamos tão habituados. Ele só é maior na medida em que não conhecemo-lo ou controlamos sua extensão. Quanto mais habituados ao país e necessitando de menos mediações para chegar aos lugares, mais conhecemos os riscos e podemos controlar-lhes. Em um ano creio que saberei lidar com mais facilidade com as coisas.


É óbvio que algumas imagens que temos daqui são demasiado chocantes. Vendo a pobreza de certos lugares, a sujeira e lixo acumulado nas ruas, e as imagens de violência das crises políticas, da parte do Estado e interpessoal, e mesmo assumindo a distância necessária sobre a categoria violência, quase sempre uma forma de acusação, imagens de gente sendo apedrejada, linchamentos, não são fáceis de lidar. Sim, há perigos. Mas não há perigos num lugar onde ônibus são queimados com gente dentro ou que pessoas são “assadas no microondas”?


É compreensível, de certo modo, a imagem que Laeneck faz às vezes de seu povo, e entendo que ele apenas preza pela minha segurança pessoal, como faríamos com qualquer estrangeiro, ou mesmo alguém de outro estado do Brasil, que chegasse ao Rio de Janeiro, essa imagem que ele faz é por vezes exagerada. Diz ele que as pessoas roubam a sua bolsa nas caminhonetes e tap taps ou nos mercados de rua. Sim, pode ser, como o fazem nos ônibus do Rio, não os assaltantes com armas na mão, que ainda não vi por aqui, mas batedores de carteiras, que podem agir também no meio do Saara, nas ruas de Madureira, no Camelódromo.


O que vejo, no entanto, quando pego uma caminhonete, é uma grande gentileza e uma imensa disposição de ajudar, uma solidariedade e uma simpatia, não com um blanc nwa (estrangeiro) como eu, mas com todo mundo que sobe numa caminhonete. Pa gen place cherri (não tem lugar, meu caro(a)) ou Avancê (avance para dar espaço) são palavras frequentemente ao entrar numa caminhonete, mas as pessoas querem dar um jeito para você embarcar. Seguram-te para não cair, ajudam a sentar, pegam as suas bolsas cheias e assentam elas em algum lugar.

Parece que as pessoas estão sempre dispostas a te ajudar. Sabem que você não compreende bem a língua, percebem e tentam fazer com que as coisas fiquem mais claras e compreensíveis, repetem várias vezes a mesma frase, pacientemente. No que diz respeito, por exemplo, à dificuldade de fazer a conversão rápida entre gourdes e dólares haitianos, até agora não houve uma vez sequer que alguém tenha sido desonesto. Já houve situações em que eu cheguei a dar dinheiro demais e a pessoa fez questão, didaticamente, de me devolver. Houve algumas vezes também que, por teste, dei dinheiro demais, e as pessoas devolvem. Já cometi também uma indelicadeza, quando achei que um sujeito havia me cobrado demais por uma garrafa de água mineral. Fiquei tão sem graça, que não sabia onde me esconder. De fato, quando notam que você é estrangeiro, eles muitas vezes dão logo o preço em gourdes, para economizar trabalho.

Laeneck me disse outro dia, ao ter que circular por pelo menos três postos de gasolina em busca de combustível para o carro, que o problema do Haiti é que as coisas são excessivamente informais, não há a menor previsibilidade das coisas. Posso até concordar que é a vida fica demasiado complicada quando não podemos contar com as coisas ali, organizadas, prontas para utilizar. Talvez por ser acostumado com a nossa desordem brasileira e ver a quão organizada ela pode ser diante de outros países, não me incomode tanto com as coisas daqui. Por outro lado, de fato a imprevisibilidade, por exemplo, com o transporte público daqui é assustadora.

Quando Laeneck fala de seu incômodo com essa informalidade, às vezes me rio, e pergunto se ele não está falando do Brasil. O mais engraçado é que quando digo a ele, ele ri também e acha curiosas as semelhanças entres os dois países. Claro que as coisas são muito diferentes aqui. Há uma carência e precariedade maior, sem dúvida alguma. Mas há uma incrível semelhança, como venho insistindo. Sobretudo quando olhamos para os dois povos e suas instituições de cada país, Brasil e Haiti. O Haiti é aqui, mas pode ser aí também. Aliás, pode ser em um monte de lugares.

No ano passado, junto com meu orientador de tese Federico Neiburg e com outro professor e grande amigo, Fernando Rabossi, tive a oportunidade de ministrar um curso sobre Estados Nacionais em perspectiva antropológica. A experiência foi mais do que reveladora, sobretudo porque me serviu para pensar uma série de coisas relativas à minha partida para o campo para realizar esta pesquisa. Quando olho agora as coisas daqui, pensando no Brasil, as conversas com intelectuais daqui, especialmente Laeneck, reflito sobre as representações de certos intelectuais sobre os dois países.

As leituras de “Comprendre Haiti”, de Laeneck Hurbon (Paris: Karthala, 1987), e “Carnavais, Malandros e Heróis”, de Roberto Da Matta, são reveladoras sobre os dois países e sobre seus intelectuais. Há uma idéia subjacente de que os dois países têm um problema, uma espécie de pecado original, que é difícil superar, sobretudo pelos objetos de comparação subjacentes às duas obras: os EUA, de Da Matta e a sombra da “civilização” francesa e sua república, para Laeneck. Se para Da Matta, o holismo brasileiro não consegue forjar uma sociedade individualista republicana, de um lado, de outro lado, para Laeneck, a divisão essencial do país em duas metades separadas e incapazes de se somar, jamais poderá formar uma sociedade uma e uma república comme il faut.

Porém, é óbvio, estados nacionais não nascem prontos, são fruto de longos processos históricos, de crises, conflitos e tensões que vão ordenando e, às vezes, direcionando as forças sociais. E como já disse repetidas vezes, os modos de regulação social não estão exclusivamente no Estado, como pensam muitos.

Isto me leva exatamente ao debate que travei recentemente na casa de Laeneck com um cientista político francês, radicado em Guadaloupe, onde leciona numa universidade local, que participou daquele colóquio que falei aqui, na Université Quysqueia, sobre Estado, Governança e Desenvolvimento logo quando cheguei.
Quando falei de minha pesquisa, do interesse pelos mercados e de nosso entusiasmo com o “dólar haitiano”, enquanto moeda, ele minimizou. Disse que não se tratava de uma moeda, mas de uma unidade de conta, pois não existia enquanto meio físico, e que moedas, do ponto de vista da economia, têm que ter o selo do Estado. Disse que já havia vivido no Congo, e que o mesmo processo já havia ocorrido com relação a conversão dos francos belgas na moeda local após a independência. Que era uma tendência das pessoas manterem as unidades de conta, apesar das novas moedas.

Falei para ele que não era o caso... Como brasileiro, em 40 anos de vida, conheci pelo menos cinco moedas diferentes, e em nenhuma destas situações havia presenciado algo deste tipo. Que não se tratava disto. Falei que umas das funções da moeda é justamente ser uma unidade de conta e insisti com ele sobre as discussões antropológicas sobre dinheiro, falei de Keith Hart e seu “Heads and Tails”, de Viviana Zelizer e a multiplicação de moedas, que há uma série de discussões na antropologia que se interessam não pelo que o dinheiro é “oficialmente”, ou seja, para economistas ou para Estados nacionais, mas para as pessoas que usam ele no dia a dia e o que dizem sobre este dinheiro. Irredutível, ele insistia que em todos os processos pós-coloniais na África, onde vivera, eram marcados por estas conversões, mas que no fim, prevalecia a visão daquilo que o Estado entende como moeda.
Achei interessante seu ponto de vista, mas discordei veementemente, pois expliquei algumas vezes a ele que as pessoas quando vêem uma moeda de 5 gourdes não falam em 5 gourdes, mas em um dólar haitiano. Logo, como antropólogo, me interessa essencialmente o que dizem as pessoas e como elas operam o mundo a partir do que dizem sobre ele. Disse a ele que palavras criam mundos. E de fato, acredito nisso...
Aliás, a tradição cristã diz: “No princípio era o Verbo(...) e o Verbo se fez carne e habitou entre nós”. Nada mais interessante para pensar como as palavras podem de fato mover mundos. Para antropólogos, principalmente, mais do que discursos palavras exprimem modos de agir, o que se diz sobre as coisas feitas é fundamental para a compreensão das coisas que presenciamos e descrevemos.
Ele insistia, pois do ponto de vista da economia, uma moeda só existe enquanto um símbolo reconhecido publicamente, afiançado pelo Estado. Foi aí que disse a ele, que o Estado não é o único lugar de regulação e de consenso social. E que se os agentes sociais criam uma outra moeda, pois afinal uma das funções da moeda é ser uma unidade de conta, reconhecida publicamente, e o que torna o caso do dólar haitiano excepcional para a análise é justamente a capacidade que os atores sociais têm de construir um consenso que foge às normas econômicas estabelecidas no âmbito do Estado.

Uma vez, no meio de um engarrafamento na “estação” dos tap taps na esquina entre as ruas Gregóire, a Av. Panamericaine e a Rte. Delmas, ficamos, eu e alguns amigos brasileiros que aqui estavam para um Fórum de Pesquisadores, nos perguntando como é que se fazia para funcionar aquele tráfego intenso das 18:00 h. E as pessoas nos ajudavam a passar com o carro, saindo do meio da confusão das caminhonetes que iam para de Pétion Ville para o centro de Port au Prince. Assim são os hatianos, informais, mas solícitos e dispostos a fazer as coisas funcionarem da melhor forma.
Não tenho uma visão romântica das coisas daqui. Pelo contrário e meu próximo post tem a ver exatamente com isso. Não vejo de forma glamourizada a loucura do cotidiano daqui, nem quero ser aquele antropólogo politicamente correto que fica sendo generoso o tempo todo com aquilo que não compreendo e que me é estranho. Mas devo admitir que, certas vezes, não posso concordar com algumas críticas às “coisas que não funcionam”, sem pensar uma solução para elas.

Insisto apenas em um ponto, quanto mais conheço as pessoas daqui, mais é possível se encantar com elas e concordar com Loulou: o povo daqui é sensacional. São herdeiros e portadores de uma das histórias mais incríveis da humanidade, são gentis, hospitaleiros e generosos. Talvez aqui, como disse Sérgio Buarque de Hollanda sobre o brasileiro, estamos diante do homem cordial, não por ser um povo gentil, mas justamente por ser um povo que age segundo o coração, tal como os brasileiros, tal é nossa própria imagem, vejo no Haiti um espelho do Brasil. Para o bem e para o mal.
Abraços a todos
Saudades, mas adorando Jacmel
P.S.: Mengão na Libertadores... É hora de calar o Estádio Centenário, como eles um dia calaram o Maracanã. A Nação Rubro Negra deve isto ao Brasil

Um comentário:

Fábia disse...

Oi Zé, me chamo Fábia e ontem estive com a Virna que me falou de vc, sou muito amiga da Ana que é também do museu.
Então estive fuçando seu blog, a Virna deve me passar seu e-mail.
O que acontece é que tenho a possibilidade de ir para o haiti, então queria trocar uma ideia contigo. Seu blog é uma ótima fonte mas quero te fazer umas perguntas objetivas, pois tenho 2 filhos pequenos etc. Vou entrar em contato com vc, abraço Fábia.