sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Colóquio na Université Quisqueya

Uma das visões mais recorrentes sobre este país está relacionada ao fato de que as pessoas, por verem através das fotos uma miséria impressionante, pelas notícias dos jornais, que dão conta de um caos social e de um país sob ocupação militar, é que a vida intelectual aqui simplesmente não existe.

Na verdade, trata-se de um preconceito recorrente, sobre países como o Haiti e países africanos. A Índia, por exemplo, por conta do trabalho de intelectuais como Amartya Sen, passou a contar com algum crédito, e também pelo desempenho de intelectuais indianos em outras áreas, sobretudo, na matemática e na área tecnológica. Mas o fato é que ainda olhamos com profundo preconceito a possibilidade de uma produção intelectual de qualidade vinda destes países. Isso até serve para olharmos para nós mesmos, brasileiros, e compreendermos que temos uma produção intelectual respeitável, e que temos autores que figuram nas melhores bibliografias do mundo.

Digo isso principalmente em função de alguns comentários sobre o fato de vir fazer pesquisa no Haiti. As pessoas falam quase sempre como se não existisse nada aqui, exceto um belo material etnográfico, o que é até verdade, mas o país tem uma grande e original produção intelectual. Já falei aqui de Louis Joseph Janvier, e em outras ocasiões de Jean Price-Mars e Antenor Firmin. Este último, costumo dizer que sua contribuição, o extraordinário ensaio intitulado “De L’Egaltié des Races Humaines: Anthropologie Positive”, ignorado por nós e publicado em língua inglesa somente no ano de 2000, mais de um século depois de sua primeira publicação (1885), poderia ser considerada um marco fundamental na antropologia.

Firmin procura em sua obra contestar, valendo-se de uma argumentação positivista, baseada essencialmente em considerações de caráter científico, todo o conjunto de teorias sustentado a partir da obra do Conde de Gobineau, De L’Inegalité des Races Humaines, e dos estudos de Paul Broca, baseados na antropometria, sobre as diferenças entre as raças e a decorrente hierarquia das raças, que serviu de base para as teorias racistas da primeira metade do século e, acima de tudo, para sustentar as teorias nazistas de superioridade da raça ariana.

Como já disse repetidas vezes, falta realmente alguém com disposição e tempo para fazer um trabalho desta magnitude: uma sociologia dos intelectuais do Haiti e suas relações com as demais produções intelectuais. Material de pesquisa não falta...

Disse tudo isso para introduzir o fato de que participei de um colóquio hoje, na Université Quisqueya, uma universidade privada local, sustentada com recursos da AUF (Agénce Univéristaire de la Francophonie) e de outras fontes. Trata-se de uma bela universidade, localizada na esquina da Rue Charéon e Boulevard Harry Truman (Bicentenaire), bem no centro de Port au Prince. Uma das diferenças essenciais entre esta e a Université d’Etat trata-se justamente do volume de recursos disponíveis: algumas salas com ar condicionado e gerador para as constantes quedas de energia.
O Colóquio, intitulado “Gouvernance démocratique et developpement”, foi organizado pelas Universidades Quisqueya e D’Etat, pela FOKAL, uma ong voltada para a educação e pelo Institut Français d’Haïti. Reunindo alguns intelectuais locais e gente vinda da França e de universidades francófonas, o debate desta sexta feira foi marcado por algumas visões sobre a “crise do Estado Haitiano” e algumas questões sobre democracia e governança.

De cara, antecipo para os meus 12 leitores (o número vem crescendo) que não gosto deste termo “governança”. Sempre que ouço, dá uma certa dor no ouvido, ainda mais que aí no Brasil o termo é caro à imprensa, sobretudo a comentaristas políticos como Merval Pereira, Alexandre Garcia e comentaristas de economia como Miriam Leitão.

Não estou preocupado, nem com a etimologia do termo, nem com seu significado exato. Acho que uma palavra tem mais importância pelo uso que as pessoas fazem dela. E falar em governança, no fundo, no fundo, é falar de “gerenciamento”. O termo vem do setor privado, e se refere à gestão eficaz, eficiente. Já dá para ver onde isso vai dar, né? Referir-se a Estado e Governança, para mim, me parece falar de formas de gestão “eficaz” do Estado baseadas em conceitos da gestão privada.

Mas fui para o colóquio de espírito desarmado. Sobretudo porque meu orientador daqui ia falar e, embora tenha lá minhas divergências com algumas concepções dele sobre a situação do Haiti, trata-se de uma visão respeitável, digna de atenção. Seu trabalho intelectual tem grande significado nas análises sobre a crise haitiana e ao lado de Michel Rolf-Trouillot é uma das visões mais respeitáveis sobre o país. Sem contar o fato de ser um especialista no meu tema de pesquisa, o vodu haitiano.

Mesmo desarmado, não dá mesmo para aturar certas coisas.
Entendo a importância de um certo universalismo para dar conta de certas questões. Ele é, de certo modo, essencial para que enfrentemos questões como direitos humanos, liberdades individuais, direitos da mulher, enfim, uma gama de questões complexas que são necessárias como um estatuto político-normativo sobre a universalidade da experiência humana. Mas nem tudo pode estar sob este estatuto. Aliás, essa é talvez uma questão difícil de ser enfrentada: os limites de uma visão político-normativa sobre os direitos humanos e as diversas nuances da experiência humana.
Não posso admitir, senão como crença, a idéia de que os seres humanos sob a face da terra aspiram às mesmas coisas. Portanto, a idéia de que a democracia é uma aspiração à qual todas as sociedades “evoluídas” devem perseguir, me incomoda terrivelmente. Não que eu seja contra isso, vejam bem, não se trata disto. Creio realmente que os regimes democráticos são os melhores para o desenvolvimento da vida humana e para a preservação dos direitos essenciais do homem. Mas não aceito a relação direta que um dos palestrantes do colóquio insistia em reforçar, de maneira até certo ponto silogística: “a democracia é a melhor forma de governo porque é boa, ela é boa porque é a melhor forma de governo”. O professor francês parecia querer ensinar àquela audiência de “bárbaros” haitianos que eles têm que entender que a democracia é boa porque é. E ainda insistia na falsa relação entre desenvolvimento econômico e democracia. Sim, há desenvolvimento econômico sob condições democráticas, mas isso não tem relação direta. Os casos de Cingapura, no limite, e da China, colocam em xeque esta relação.

O problema era principalmente que o seu discurso demasiadamente didático e que aos poucos revelava uma noção de Estado que se baseia essencialmente na redução do volume e do raio de ação deste. Não considerou o douto professor que nos países latino-americanos o desenvolvimento se fez através do Estado. Que é justamente na capacidade de investimento público que reside o motor do crescimento econômico nos países pobres. Qual seria a saída que ele preconizava para o Haiti?
O mais duro era ainda perceber uma noção evolucionista do desenvolvimento das instituições políticas. Sim, porque uma sociedade só evolui quando atinge um certo patamar que países como a França dele atingiu. Ele nem se prestou a discutir o rescaldo do incêndio pós-colonial que vem estourando nos biddonvilles da França. Que há um problema violento de inclusão que vem colocando em xeque todo o universalismo francês. Como lidar com o particular quando o centro de sua cosmologia é universalista? Deixa estar...
Depois, falou M. Mirlande Manigat, possivelmente futura candidata à presidência. Sua fala se deteve essencialmente na discussão do conceito de governança e o conceito adotado pelo Banco Mundial de “boa governança”. Pouco, apesar de arrancar alguns aplausos e respeitos da platéia. M. Manigat falou que o conceito de governança em si mesmo já encerra uma noção positiva sobre a forma eficaz de gestão pública, blá, blá, blá.

Sinceramente, M. Manigat não me impressiona. Seu sobrenome é de longa tradição no Haiti. É apenas mais uma liderança intelectual que vem das elites, não creio que seja capaz de promover as transformações políticas necessárias ao país, e pelo que conversei com Laeneck, é avessa às alianças políticas. No meu parco entendimento, não é possível governar país algum sem alianças. Aliás, a sensação de que um colóquio desta ordem onde estão ausentes as lideranças da sociedade civil, os partidos políticos, as organizações sindicais e estudantis não me parece que vá muito longe, senão num tipo de diagnóstico impressionista sobre a vida real das pessoas das camadas populares do país.
A fala de Laeneck reflete um pouco das idéias gerais de uma certa corrente de intelectuais do Haiti. Sua argumentação é refinada e muito bem sustentada na grande tradição de estudos sobre a história do país, da cisão entre mundo rural e urbano, que se reflete nos graves problemas da vida urbana de Port au Prince e nos problemas do campesinato haitiano, na imensa tradição sociológica haitiana, da qual ele é um dos grandes autores. Tudo muito bem organizado e argumentado, se eu não sentisse neste caso a ausência de aportes etnográficos, de contato com a vida das ruas das cidades, sobretudo da capital do país, pela qual passamos todos os dias de janelas e portas do carro muito bem fechadas.
Incomoda, sobretudo, o argumento de que o Estado haitiano faz aliança com “bandidos” e “engendra a violência nos bairros pobres de Port au Prince”. Que “tipos como Aristide e Préval são sustentados pela manipulação dos bairros pobres por esses bandidos”. Não sei... Essa idéia de criminalização de certos agentes políticos é muito comum e não dá conta do real problema. É uma estratégia recorrente contra movimentos como o MST e os movimentos urbanos de trabalhadores sem teto. Sabemos claramente o que ela significa: desqualificar o debate político, através da criminalização de certos agentes públicos da sociedade civil.
Uma das comunicações, a despeito de seu título se referir a “uma mudança necessária de paradigmas”, nos dava sensação que o colóquio deixava era justamente de repetição constante de paradigmas consagrados na análise de quadros como “falência do Estado”, “incapacidade de gestão pública”, “descolamento do Estado da vida social e política do país”, etc. Faltava justamente alguém que argumentasse no sentido de discutir, como sugeriu Lygia Sigaud quando esteve aqui, novas formas de regulação social que não passem necessariamente por estes modelos analíticos consagrados. Não se trata de jogar, de maneira chapada, os tipos ideais de estado sobre a realidade e constatar o descompasso entre concepções teóricas e a vida prática.
Enfim, a despeito das críticas, sobretudo pelas intervenções da platéia e as conversas paralelas às falas, em creóle, das quais pude pegar pouca coisa, é um bom exercício de reflexão. Falta, como já disse, incorporar à discussão outros elementos, tanto no campo teórico, quanto e, sobretudo, no campo prático, trazendo para o debate sobre a gestão pública os principais agentes interessados: as organizações da sociedade civil do país.

Na verdade, o que sinto é que faltam lideranças populares que confrontem candidaturas óbvias, como àquelas que já são poder, àquelas que já foram poder e as elites do país, de diferentes extrações. O colóquio foi um bom encontro com uma vida universitária de alto nível, onde os debates se sustentam em argumentos de grande qualidade. E isso não ocorreu nem numa universidade americana ou da Europa, mas aqui mesmo no Haiti. O Haiti é aqui. E tem muito mais coisa do que podemos imaginar de longe.
Abraço

Um comentário:

Newton Campos disse...

Muito boa a análise e interessante seu ponto de vista. Parabéns pelo trabalho.