quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

No Mercado em Pétion Ville


Voltando aos assuntos mais interessantes deste blog, e não mais falando dos meus desabafos e chorumelas, a manhã de terça-feira acabou sendo uma manhã muito especial, talvez uma das mais legais desde que cheguei.

Enfim, pude sair às ruas não mais no automóvel de meu orientador, mas pegar uma caminhonete (tap tap) e me dirigir ao mercado de rua em Pétion Ville, junto com a cozinheira da casa. Não foi nada de especial, mas foi bom poder andar a pé e me misturar com a gente das ruas, fizemos compras, pude entender muito pouco do que se passava, mas ainda assim valeu muito a pena. Evitei levar a câmera fotográfica, não por temer algo, mas para chamar o mínimo de atenção possível que um blanc (termo em creóle adotado para os estrangeiros) nwa (de noir, negro, como eu) pode despertar nas ruas, com seu (mau) francês cheio de sotaque e sua incapacidade total de se fazer entender em creóle. De qualquer forma, foi bom ir ao mercado, desta vez como um pratik (cliente).

Como já havia dito em outras ocasiões, há de fato uma predominância da presença de mulheres às ruas, no entanto, como já notara muito antes em Jacmel, há de fato homens no mercado, exercendo algumas funções muito específicas, ou parados, observando o movimento, como que controlando algo. Vi, também, homens vendendo especialmente produtos industrializados, roupas, sapatos, cintos, cartões telefônicos e, ainda, relógios e artigos de joalheria.

Como tenho despertado muito cedo aqui, saímos logo após o café da manhã, por volta de umas 7:45 h.. Caminhamos até a saída pelas ruas tranqüilas do elegante bairro de Belvil, para cair na agitação constante da poeirenta Route des Fréres. Esperamos algum tempo até poder pegar uma caminhonete, pois eu e M. Evance precisávamos de dois lugares, elas já vinham todas lotadas ou com apenas um lugar. Aliás, esse negócio dos tap taps é realmente curioso. As pessoas sempre tentam, de modo solidário, dar um jeito de você conseguir embarcar. O difícil é colocar um sujeito de 120 kg e 1,85 m nos estreitos bancos improvisados da traseira de uma caminhonete. As pessoas são quase sempre gentis e generosas, lhe ajudam a subir, a se acomodar, seguram crianças no colo, carregam bolsas. Algumas fazem caretas e sinais de reprovação, mas nem por isso deixam de ajudar. Pa gen place, não tem lugar, dizem, mas tentam, de todo jeito, te ajudar a embarcar.

Enfim, conseguimos embarcar numa delas. Tive a impressão (que se confirmou depois, quando fui com M. Evance a um supermercado na Rt. Delmas) de que praticamente todas as caminhonetes que passam pela Rt. des Fréres vão mesmo para Pétion Ville. Há uma saída que vai para a Rte Delmas, antes de chegar à estação final, que fica defronte ao cemitério. Algumas delas têm escrito na porta da frente o percurso, mas a maioria não. O preço da viagem é baratíssimo 7 gourdes. A subida até Pétion Ville segue pela rota esburacada e poeirenta, sacudindo as pessoas na caçamba do veículo. O trânsito é lento, marcado pelos inúmeros blokis (engarrafamentos), mesmo que se saia de cas muito cedo.

Já havia feito esse percurso uma vez, com Frantz (conto esta história no blog antigo
http://aityannuvel.zip.net/arch2006-12-17_2006-12-23.html ), e me lembrava bem de como chegar à Pétion Ville. Até caminhamos pelo mercado, mas sem o objetivo de comprar nada, diferente desta vez, quando estava com M. Evance, a cozinheira. Ela ia fazer algumas compras que serviriam à preparação do almoço do dia. Disse-lhe que queria ir para comprar algumas frutas, corrossol, que pelo que parece é o nome da graviola em terras haitianas, pois havia tomado o suco na minha ida à Librérie Pleaide, na quinta-feira passada, zoranj, as laranjas, e conhecer um pouco do mercado.

Seriam necessárias algumas muitas idas diárias ao mercado com M. Evance para compreender minimamente o caminho que fizemos, porque compramos certas coisas aqui e não lá, e outras tantas lá e não aqui, como ela negocia os preços, até onde pode se negociar e o jogo de cena necessário para conseguir baixar um preço, enfim, toda a mis en scéne do mercado de rua. Uma das primeiras lições é que não há “idas diárias ao mercado”, vai-se quando se tem necessidade, quando é preciso comprar alguma coisa específica. E M. Evance havia me dito que precisava ir comprar cebolas, principalmente, mas lá veríamos o que mais houvesse para comprar, como de fato ocorreu.

Saltamos do tap tap no final da Rt. de Fréres e seguimos à direita lateralmente ao cemitério. A via muda de nome para Rue Métélus quando continua subindo em direção à Place Boyer, a Fréres acaba justamente ali, na esquina com Delmas, na estação dos tap taps, próxima à entrada principal do cemitério. M. Evance ia rápido, à frente, e ora me chamava atenção para tomar cuidado com os carros: Attention machine la a!

Entramos por uma rua com chão de terra batida, e muita gente com seus produtos pelo chão. Algumas pessoas vendiam peixes e siris, e tais produtos atraíam verdadeiras nuvens de moscas. É difícil não sentir certo desconforto com a visão dos peixes à venda cobertos pelas moscas... Além dos peixes, muitos produtos que se repetiriam adiante: cebolas, pimentas, pimentões, cabeças de alho, alguns legumes e muitos feijões, principalmente o vermelho de grão grande e os verdes em vagens que eram debulhadas na hora em que passávamos pelas mulheres. Vi, quase que imediatamente, os primeiros homens trabalhando no mercado, vendendo relógios e peças em prata ou aço (ou algum metal qualquer, prateado), pulseiras de todos os tipos, alguns pingentes, anéis e correntes.

Vi também algumas “barracas” (por assim dizer, posto que a maior parte dos produtos fica exposta no chão sobre um pano, peneira em palha trançada ou saco de aniagem) que vendiam óleo de soja, diversos produtos industrializados, como sabonetes, colônias, xampus e outros de cozinha: sardinhas em lata, leite em pó, aqueles pequenos caldos em cubo para tempero. Uma constelação de coisas que impressiona o olhar. Íamos rápido, mal podia parar para reparar as coisas. Em dado momento, depois de passarmos por várias pessoas vendendo cebolas, M. Evance parou. Conversou algo com a vendedora num creóle que mal podia entender, estava comprando pimentões. Quando consegui começar a entender, ela dizia à vendedora que estava caro. Repetia que tudo no Haiti é caro, e oferecia um valor pelo lote de pimentões. A vendedora retorquia, colocando mais pimentões e renegociava o preço.

A primeira impressão diante da cena é que nos mercados de rua nada tem preço fixo. Tudo está aberto para a negociação. Há um jogo entre cliente e vendedor onde o preço tem que ser negociado, não há outro caminho. O preço é jogado para cima pelo vendedor e atirado a baixo pelo comprador. É numa espécie de média, que se relaciona com a quantidade comprada e o preço oferecido que se encontra o preço ideal. É importante ter atenção com o fato de que os produtos existem em abundância em todas as demais “barracas” e que seu preço acaba não sendo determinado pela raridade ou exclusividade do produto, mas exatamente das relações entre o comprador (que suponho ser um cliente habitual) e o vendedor. Digo isso porque foi curiosa a forma que circulamos pelo mercado até parar naquela vendedora específica.

Pelo fato de termos passado por diversas pessoas que vendiam as mesmas coisas e sequer M. Evance ter se dado ao trabalho de examinar o seu preço, acabei deduzindo que ela prefere certos produtos com vendedores específicos, sobretudo àqueles que ela saiu de casa com o objetivo de comprá-los, no caso, as cebolas. Percebi depois, quando compramos um abacaxi, que certos produtos são comprados exatamente por essa relação de confiança com o vendedor.

Como me disse a ela que queria comprar frutas, volta e meia parávamos para cotar preços. A certa altura paramos diante de uma vendedora para comprar graviolas. A negociação começa: douz dolá (lembro aos leitores que aqui falamos de dólares haitianos
http://aityannuvel.zip.net/arch2006-12-10_2006-12-16.html ), diz a vendedora. Twa dolá, responde M. Evance, a vendedora ri e diz algo como “madame está louca?”, e responde, imperativamente, com outro preço, diz dolá! M. Evance não cede, e esponde firme: kat dolá! A vendedora repete, diz dolá! M. Evance faz menção de ir embora, rindo, responde à vendedora algo do tipo: Louca está você! Senk dolá! A vendedora cede: néf! M. Evance permanece firme e sai da barraca: senk! Quando parece que a negociação se encerrou com a partida de Evance, a vendedora chama-a, e diz: uit dolá. Evance enfim cede e diz, dako! A negociação está encerrada: a vendedora consegiu vender seu produto e a compradora compra-lo. Ambas parecem sair satisfeitas.

Esse jogo ocorre muitas vezes, pois hoje mesmo (quinta feira) fomos à rua novamente e disse-lhe que precisava comprar um rádio para ir treinando os ouvidos para aprender creóle. Havíamos ido ao supermercado Caribbean, do qual falarei uma outra hora, pois se trata de uma verdadeira sucursal da ONU e da cooperação internacional no país, na volta, estávamos na Route des Fréres para retomar o tap tap de volta à Belvil, quando vi um sujeito na rua vendendo vários rádios diferentes. Perguntei a M. Evance se podia comprar ali, ela perguntou o preço, e daí, nova negociação e de novo o jogo de desdenhar o produto, enfim, a mesma mis-en-scéne que marcou a situação anterior. Acabamos no fim das contas comprando baixando em 50 gourdes (dez dólares haitianos) o radinho de pilha que custaria 200 gourdes.


Fizemos uma espécie de percurso circular, que começa pela via de terra batida e desemboca na Rue Geffard. Seguimos por ela até a Rue Grégoire, nos misturando aos veículos de passeio e tap taps que circulam por Pétion Ville e quevão ao centro de Port au Prince pela Rt. Panaméricaine, pois a “estação” dos tap tap fica exatamente defronte ao posto de gasolina National na esquina entre estas e a Rue Rigaud pela qual seguimos até chegar à Rue Magny que desemboca no Posto Texaco do fim da Rt. Delmas. Descendo por esta, até a porta principal do cemitério, onde fica a estação dos tap tap para descer a Rt. des Fréres. Ali pegamos a condução de volta à Belvil.

Já havia circulado pelo mercado de Tét Boeuf e pelo Marche en Fer, do qual tirei fotos do Blvd. Jean Jacques Dessalines, de onde se podia, nas fotos, ver o mercado de rua nesta área de Port au Prince. Mas quanto mais se chega perto de um mercado, mais impressionante ainda ele se torna, mais sedutor. Não estou exotizando as coisas, nem muito menos as romantizando, pelo contrário, são nestes mercados que vamos encontrar os grandes sinais da miséria daqui, os reflexos de problemas imensos com a gestão da coisa pública pelo Estado e pela Sociedade haitianos (uso o termo sociedade, pela falta de um termo melhor para dar conta do que quero falar). O imenso acúmulo de lixo e a ausência de uma coleta organizada, o caos do trânsito e a constante ameaça de atropelamentos, um quadro que serve justamente para pensar com muita propriedade diversas questões sobre a vida urbana, a vida social haitiana, sua política, sua economia, enfim, a tal constelação de coisas que um mercado de rua coloca de maneira indecifrável diante de nossos olhos.

Beijo enorme,




P.S.: Sofrendo à distância com o Flamengo... Conto depois de minha ida, nesta quarta passada, à Jacmel. A foto, como já expliquei, não foi tirada em Pétion Ville, mas em Jacmel, e serve para dar uma idéia dos mercados de rua do Haiti.

Nenhum comentário: