Na postagem anterior andei discorrendo sobre as dificuldades de uma casa nova. Mais do que nunca, ter acesso a uma ferramenta como um blog e infelizmente, por conta da conexão, da minha máquina ou do diabo que o carregue, não conseguir colocar aqui os mapas e fotos que eu queria, além do vídeo apresentando as instalações do Instituto me deixam absolutamente frustrado.
Não bastasse isso tudo, encontro-me imobilizado em Belvil, um aprazível recanto que muito pouco tem a ver com a maioria das fotos que fiz e alguns viram. Por conta do excessivo zêlo de meu anfitrião e orientador haitiano, infelizmente ainda não pude circular sozinho pelas ruas de Pétion Ville, Delmas e Port au Prince, nem muito menos me dirigir ao meu destino final, Jacmel, a aprazível capital do Departamento Sudeste, onde realizarei minha pesquisa.
Está realmente difícil.
Quando percebo que tal zêlo com estrangeiros é um comportamento quase natural, fico ainda mais irritado. Estou aqui para fazer uma pesquisa de antropologia, o que me concede algum direito de correr certos riscos: falar com as pessoas, ser abordado por tipos estranhos, circular pelas ruas chamando atenção por ser (de fato) diferente das pessoas... Enfim, algumas coisas que acabam acontecendo quase de maneira natural em qualquer percurso de pesquisa de campo.
Desculpem o mau humor... Mas é que as coisas não estão (ainda) ocorrendo como eu queria que fossem, ocorrendo como eu projetei antes de vir para cá.
Não é nenhum inferno.
Aliás, falar em inferno me leva à ruas pelas quais tenho circulado mais como um passante do que como um flaneur...
* * *
Muita gente que pode ver as fotos através do Orkut (dica para ver as quase 140 fotos que já disponho) têm me falado que se assustou com a pobreza daqui. Ela é de fato assustadora à primeira vista, pois talvez quem mora num centro urbano realmente não tenha a oportunidade de ver em regiões mais pobres do norte e nordeste do Brasil, as condições em que vivem algumas pessoas.
Um grande amiga, após ver as fotos, falou que as coisas aqui dão a impressão de que o tempo parou, eu lhe respondi que a gente podia fazer o exercício de pensar que o tempo justamente andou para a frente, para o futuro da humanidade. Disse isso num exercício de reflexão sobre as mazelas que atingem este país, que elas parecem estar no futuro projetado por alguns estudiosos: pobreza generalizada e concentração de renda nas mãos de uma minoria, desemprego crônico, crises institucionais, escassez de água e de energia (ontem circulamos por mais de cinco postos de gasolina para conseguir abastecer o carro), falta de energia elétrica, desmatamento das florestas e ausência de definição entre as estações, desertificação de algumas áreas, esgotos e lixo incontroláveis... Nossa! Será tudo tão ruim assim?
Não me parece. No entanto, não podemos tapar o sol (intenso aqui, em pleno inverno, máxima de 33° e a mínima em torno de 22°) com a peneira. São graves os problemas por aqui. Mas costumo pensar, com ar de esperança, que se pudermos resolver alguns destes problemas aqui, no resto do mundo será muito mais fácil. E tem solução.
NO século XIX, com sua revolução escrava, o Haiti apontava para o futuro de todas as transformações que viriam. Aqui se fez um projeto radical em torno dos direitos do homem. Enquanto a Revolução de 1789 tornou livres os homens brancos, dando-lhes o direito de votar e escolher, no Haiti fizeram-se livres todos os homens, independente de sua cor. Aqui foi o primeiro sopro da modernidade e, ao mesmo tempo, o lugar onde a modernidade parece ter levado mais tempo para chegar.
Não seria talvez daqui que pudessem vir as soluções necessárias para um monte de problemas que afligem o mundo?
Por acaso, quando despertei hoje, caiu em minhas mãos um livro do Dr. Pradel Pompilus, um importante intelectual e escritor haitiano, chamado "Profils de Grands Écrivains Haïtiens" (Perfis de Grandes Escritores Haitianos). Neste livro pude ler os perfis de três autores que me chamaram grande atenção quando da minha primeira vinda ao país e que resultaram até em uma comunicação que apresentei no X Fábrica Idéias, sobre Antenor Firmin e Jean Price Mars. O terceiro, ainda não fiz muitas referências, mas entendo que seu papel pode ter sido fundamental no debate do século XIX contra as teorias racistas de Gobineau e de Paul Broca: Louis Joseph Janvier, ao lado de Firmin.
Estes autores nos reportam a algumas idéias importantes sobre a tradição intelectual do Haiti e seu papel de vanguarda, antecedendo mesmo movimentos importantes como a Négritude, e intelectuais e ativistas como Sédar Senghór, Aimé Cesaire e Franz Fanon. Price Mars é conhecido como o pai da Négritude, tendo inspirado fortemente Cesaire. Mas retrocedendo ainda mais no tempo as figuras de Firmin e Janvier merecem um especial destaque, um olhar que a sociologia dos intelectuais ainda não fez e, com efeito, podemos perder muito da clareza sobre a luta contra o preconceito de raça no mundo.
Uma breve citação de um texto de Janvier:
]"Pour moi - et j'ai déja expliqué tout ao long dans ma "Republique d'Haïti et seus visiteurs" - tous les Haïtiens sans exception sont dés nègres. Par conséquent il est absurde et pueril soutenir, d'insinuer même que j'établis des distinctions de couleur entre les Haïtiens.
Il serait désirer qu'un Haïtien, quelle que soit la couleur de sa peau, écrivît, spécialiment pour son pays, un livre court et précis où il serait demontré que le mulâtre est un hybride e qu'il n'existe pas la race mulâtre; que noirs e mulatres devaient vouloir se qualifier nègres".
Janvier, Louis-Joseph (1884) "Les Affaires d'Haïti"
O brilhante autor haitiano, ainda no século XIX, demonstra uma lucidez que tem faltado a certos intelectuais brasileiros contemporâneos...
Que estranho país este, que pode se dar ao luxo de ter um intelectual desta estatura e ao mesmo tempo viver em permanente crise social e econômica????
Para pensar...
Abraços
Zé
P.S.: Ansioso pelo Fla x Flu... Pena não estar por aí...
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