segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

Prefete Duffaut: imagens de poesia

Para Patrícia e para minha tia Anna

Todo mergulho em um país novo pressupõe um contato com um conjunto de coisas novas às quais nem sempre conseguimos dar conta. Desde a primeira vez que vim ao Haiti, em novembro/dezembro de 2006, fiquei encantado ao conhecer a obra do pintor Prefete Duffaut. Falei dele inclusive com uma amiga querida, doutoranda em antropologia como eu, agora em fase de escrita da tese, Patrícia Reinheimer, que ela devia conhecer sua obra e os movimentos artísticos daqui, posto que o tema de sua tese esteja relacionado com as idéias de nacionalidade, o lugar do artista, enfim, uma maneira de aproximar um pouco mais as pessoas queridas deste país tão singular.

Pois bem, sábado pela manhã, por acaso, Laeneck não quis ir à FOKAL para a mesa de encerramento do Colóquio. Disse-me estar cansado para dirigir até o centro de Port au Prince e, sobretudo, estava desinteressado das discussões daquele dia. Já havíamos ido pela manhã à casa de Michel Hector, onde conversamos longamente com este, e com Luc (Loulou) Smarth, sociólogo e professor da Université d’Etat. No caminho da descida para Port au Prince ele me perguntou se queria mesmo ir ao Colóquio. Disse que para mim era indiferente, que podíamos voltar. Ele fez uma chamada telefônica e disse que íamos passar para ver um amigo seu.


Demoramos a achar a entrada da rua, pois mesmo um haitiano habituado a dirigir por aqui, este pode errar as entradas da Route Delmas. Enfim, achamos a tal entrada, seguimos por ela e fomos ter com o cineasta Arnold Antonin, diretor e documentarista daqui. Muito simpático, quando soube do meu interesse pelo vodu, falou-me de um de seus filmes sobre um oungan e de uma cena específica envolvendo dinheiro. Antes de partirmos perguntei a ele como faria para ver os seus filmes e ele, gentilmente, deu à Laeneck quatro dos seus filmes. Segundo Laeneck, um deles é inclusive premiado no exterior.


Como soube que a base de minha pesquisa era Jacmel, disse-me ainda Antonin que dois daqueles filmes eram sobre duas personalidades da cidade. Um deles era justamente Prefette Duffaut. Por esta razão me interessei imediatamente pelo filme e, com efeito, assisti a ele na manhã de domingo após o café da manhã, no meu computador.

Foi incrível conhecer a figura de Duffaut. O filme começa com uma cena um tanto bizarra, em seu atelier, Duffaut sai de um caixão todo pintado por ele mesmo. Aliás, antes dessa cena, uma bela citação de um compositor e cantor francês, Philippe Chatel, que diz assim: Façam com que os sonhos devorem suas vidas, afim de que a vida não devore seus sonhos. O subtítulo do filme é sugestivo e se relaciona intimamente com a obra de Duffaut: piedade e urbanismo imaginário.

São exatamente estes dois temas que atravessam de maneira permanente os quadros de Duffaut. Uma intensa relação com a fé e as crenças daqui do Haiti, de um lado e, de outro lado, as cidades. Há outros elementos que podemos perceber claramente em suas pinturas, mas esses dois são os eixos que sustentam a obra do pintor haitiano. O centro das imagens que ele produz é exatamente a noção de piedade e o mundo espiritual haitiano. São facilmente identificáveis em suas pinturas as divindades, sobretudo, cristãs, Jesus Cristo e a Virgem Maria, mas também os signos e divindades do vodu, colocando no mesmo universo de sentidos estas duas coisas: a religião católica e a religião dos loas.

Vemos então, no centro de um quadro, a Virgem Maria, ladeada por dois tambores do vodu, entre oferendas e sinais gráficos referidos aos loas. Muitas escadas, escadas que sobem e descem como experiência humana com seus altos e baixos, como a relação com os deuses. Subimos e descemos, atravessamos caminhos, seguimos em direção aos deuses e divindades, sem a noção exata se de fato vamos chegar a algum lugar. Os quadros de Duffaut sempre chegam ao lugar mais alto. Há uma impressionante sensação de elevação em suas imagens, elas sempre parecem apontar para o alto.

As águas também estão presentes o tempo todo em seus quadros, seja pelo fato de estarmos aqui no Haiti, numa ilha, onde a água nos cerca de todos os lados, seja porque a Virgem é sincretizada com Ezili, ou La Sirene (A Sereia) ou La Maitresse Dlo (a Senhora das Águas). O que interessa é que em seus quadros há uma abundância de água, que pode vir justamente do fato de ser oriundo de Jacmel e, além de pintor, Duffaut é carpinteiro e construtor de barcos. Mar e céu de encontram permanentemente em seus quadros, se confundindo, dividindo o mundo entre os dois azuis.

Seu trabalho se aproxima muito das obras surrealistas fazendo uma fusão entre temas do imaginário religioso e o lugar do cotidiano da cidade, que se encontram unidos da mesma forma em que se encontram na experiência diária de cada pessoa. Também é possível divisar a explosão demográfica que o país experimenta a partir dos anos 60, através de suas cidades lineares construídas nas encostas das montanhas. Esse é também um encontro feliz nas obras deste grande artista, o mar, o céu e as montanhas, a paisagem natural do Haiti marcada pela intervenção permanente do homem no espaço: as cidades.

O espaço em Duffaut é exatamente assim: uma fuga permanente. Interessante notar que o artista faz um uso muito particular da perspectiva, criando um plano onde as imagens projetadas na tela parecem estar ao mesmo tempo, projetadas de modo bidimensional e ocupando um espaço tridimensional. Como também já disse antes, suas obras dão uma impressão de se projetar para o alto, apontar para cima, colocar-nos diante da idéia de um plano superior que observa e nos guarda de modo permanente. Não sou especialista em arte, me perdoem aqueles que conhecem melhor do métier, minhas impressões aqui são de alguém que olha e reflete, de maneira naïf, sobre o que vê.

Aliás, pode haver quem ache que a obra de Duffaut seja naïf. Não creio. Pelo contrário, está longe disso. Para um homem de mais de 80 anos de idade, que começou sua carreira em torno dos anos 50, ou seja, sua obra apresenta exatamente essa maturidade, que começa a brotar a partir dos anos 80. O uso dos grafismos e das composições geométricas das imagens vai ganhando força em seu trabalho à medida que este amadurece.

Os grafismos utilizados pelo pintor para compor as imagens também nos remetem a um outro aspecto interessante de sua obra. O uso das formas geométricas aproxima seus quadros dos grafismos véve do vodu. Logo, vemos em Duffaut mais uma vez o imaginário religioso marcando a forma que ele enxerga e apresenta o mundo, um mundo Haiti, em suas pinturas. Uma mescla de signos diversos que implicam numa visão singular de arte.

Há que se lamentar que muito pouco se conheça deste excepcional pintor no Brasil e também da obra do cineasta Arnold Antonin, que realizou um filme cheio de sensibilidade sobre um artista genial. Seria uma excelente oportunidade para nós se o trabalho de Antonin pudesse ser visto em alguma mostra no Rio de Janeiro e também que nos chegassem as pinturas de Duffaut. Quem sabe quando eu voltar se tiver tempo e disposição, possa encontrar algum amigo disposto a produzir este encontro com as obras de Duffaut e Antonin, que seriam reveladoras para nós brasileiros.

Beijo para tod@s


P.S.: Saudações Rubro Negras!!!

2 comentários:

Regato.dos.Pirilampos disse...

Zé, fico curiosa para entender como se estrutura o campo artístico hoje no Haiti (se é que há um estruturado). Lá nos arquivos da UNESCO há referências sobre a participação de uma representação haitiana na exposição que inaugurou a organização em 1946. Imagino que um debate parecido ao estabelecido no Brasil, nos EUA, França sobre a legitimidade da representação figurativa tenha também se estabelecido por aí. Como terá sido o impacto das ideologias de Estado durante o pós-Segunda Guerra aí no Haiti? Essa é a pergunta crucial para compreender os discursos artísticos nesse mesmo período naqueles países acima citados.

Zé Renato disse...

Pat, há um dado importante no pós-guerra do Haiti, pois trata-se do período da ditadura de François “Papa Doc” Duvalier, que chega ao poder pelo voto em 1947, com aquilo que se chama de discurso noiriste, de forte apelo popular, contra uma suposta (?) “elite mulata”. Há também, um outro dado importante sobre o período que antecede a participação destes artistas haitianos nesta exposição: a criação em 1941 do Bureau d’Ethnologie por Jacques Roumain, que pode ser vista como um desdobramento dos movimentos intelectuais ligados à publicação de Ainsi parla l’oncle, de Jean Price-Mars em 1928. A partir desta obra há um intenso movimento de valorização da cultura nacional e das origens africanas desta cultura. Não sei te dizer exatamente, mas acho que tem caldo estudar estas questões por aqui em perspectiva comparada. E tem grana: a própria Unesco, a Sephis e por aí vai...